segunda-feira, abril 02, 2007

O Mafaguinho Atómico contra o Supra-Empírico A Priori

No seu longo post acerca dos mafaguinhos (1), o Bernardo Motta põe uma questão importante:

«O caso da palavra "átomo" (em grego, literalmente "sem partes", ou "indivisível") é excelente. Para Demócrito, significava uma partícula sem partes. Nos tempos modernos, a palavra continua a ser usada, mas a fissão do átomo (separação da tal supostamente indivisível partícula) é fenómeno central na produção de energia eléctrica por via nuclear!
Então em que ficamos, Ludwig?
Se me permite, dizer que a palavra "Deus" é um mafaguinho é uma redonda treta! Para si, que é sensível às tretas, será que a palavra "átomo" não será também uma treta?»

Consideremos quatro formas de ser ou não ser mafaguinho. Primeiro: «Deus é brlrt29», o expoente máximo de mafaguinho em que se define um termo com um termo indefinido. Ficamos na mesma. Segundo: «Deus transcende o tempo e o espaço». Melhor, mas não muito. Sabemos o que é transcende, tempo, e espaço, mas o conjunto não tem sentido. É como dizer «Deus é a raiz quadrada do grito azul». Mafaguinho.

O átomo de Demócrito não é mafaguinho: «partícula indestrutível de matéria». Faz sentido. Está errado, mas sem sentido nem errado podia estar. Assim, terceira: um termo definido por um conjunto de termos com significado não é mafaguinho. Mas o significado é a relação entre o termo e o que ele significa. Temos assim a quarta forma: dar significado ao termo ligando-o directamente ao observável.

O conceito moderno de átomo não depende de uma definição linguística. O significado vem pelo espectrómetro de massa, pela difracção de raios X, pela estequiometria de uma reacção, pela radiação, pela microscopia electrónica. É como «Escocês» ou «gato», que já têm um significado antes de inventarmos a definição que o descreve. É o mais longe de mafaguinho que conseguimos chegar.

Isto é relevante para a discussão do supra-empírico, ideal, ou a priori, desse tal conhecimento não empírico que um ser racional pode ter sem qualquer percepção. Note-se que percepção não é só ver e ouvir. A dimensão e posição do nosso corpo, as emoções e o tempo que passa, também são percepções. A própria consciência é a percepção dos nossos pensamentos. Tudo isto é empírico, e tudo isto é intencional. Ou seja, é acerca de algo. Não há percepção, consciência, significado ou conhecimento sem que seja de alguma coisa. E esse «de alguma coisa» é necessariamente empírico.

Consideremos um ser puramente racional de capacidades ilimitadas. Tem memória infinita, dura para sempre, mas não tem qualquer percepção. É razão pura. Não tem emoções, não sente o tempo ou o espaço, não vê nem cheira nem ouve. É uma máquina de Turing universal*. Na sua memória pode guardar ou gerar todas as sequências de símbolos: o «2+2=4», o «não comas doces antes do jantar», e o «Deus é brlrt29». Todas as geometrias, lógicas e matemáticas, e infinitos disparates sem sentido. Mas sem conhecimento empírico o ser de razão pura não sabe o que é dois, ou mais, ou igual. Tem todos os símbolos mas não tem o significado de nenhum. Tem todo o conhecimento que é possível a priori mas não conhece nada.

Sem o empírico nenhuma ideia tem significado, e só a posteriori é que há conhecimento.

* Assumo que a razão é computável. Quem discordar que adapte o exemplo, mas neste contexto não faz diferença. Mais sobre a máquina de Turing na Wikipedia.

1- Bernardo Motta, 29-3-07, Ludwig e os "mafaguinhos"

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