Direitos e Incentivos
Já escrevi sobre isto antes, quando ninguém aqui vinha (1, 2). Mas num comentário recente o leitor que assina António deu exemplos de duas confusões que, por serem quase universais, me parecem o maior obstáculo para resolver com justiça os problemas dos direitos de autor.
Primeiro, confundir o direito de autor com o direito de propriedade, e assim tratar da mesma forma a regulação comercial e o uso pessoal. Se me roubam as calças eu fico sem elas, e é disso que o direito de propriedade me protege. Não interessa se roubam para vestir ou para vender. Mas não me podem privar de uma ideia, que não é um bem material escasso. Ideias podem ser partilhados sem ninguém ficar com menos.
Se ouço música sem pagar não estou a tirar nada ao autor. Nem as calças, nem a música, nem dinheiro. O alegado prejuízo é um custo de oportunidade: ele podia ter-me vendido algo que não comprei. Mas ele não tem o direito de vender como tem o direito que não lhe roubem as calças. Só é legítimo vender a alguém que queira comprar, e qualquer um tem o direito de não comprar se não quiser.
Por isso não faz sentido haver leis que protejam o «direito de vender» obrigando a comprar, seja por proibir que se cante no duche ou que se faça fotocópias para um amigo. No máximo, que se regule as vendas para que seja o autor a vender, mas sempre respeitando a compra como acto voluntário. Compre para não ir preso não é comércio livre.
O outro problema é confundir o direito de autor com o direito de ser remunerado pelo trabalho que se faz. O artista presta um serviço, e tem o direito de ser pago como qualquer outro profissional: pelo serviço que presta. O médico é pago pela cirurgia e não por cada dia que o paciente viva. O professor é pago pelas aulas e não pelo ordenado que o aluno vai ganhar. O compositor tem exactamente o mesmo direito. Ironicamente, são os direitos de autor que privam o autor desse direito. Se o compositor recebe um ordenado para criar uma música o «direito de autor» reverte para o cliente, que agora é dono da música e pode até proibir o autor de a tocar.
O cliente que compra um bem ou serviço é dono de uma instância específica, não da categoria toda. Aquela viagem, aquela operação. Médicos e agências de viagens podem cobrar cada vez que prestam o mesmo serviço. Um compositor não. Se cobra por compor uma música fica sem direitos sobre uma categoria de músicas. Os médicos e agentes de viagens estão safos porque ninguém pode ser dono de categorias como todas as viagens a Cuba ou todas as apendectomias. O músico está tramado porque alguém pode ser legalmente dono da categoria de todas as músicas semelhantes àquela que encomendou.
Este modelo de direitos de autor foi criado para subsidiar e regular a distribuição, o fabrico de discos e a impressão de livros. Mas foi apropriado por uma industria que convenceu o público que a música, como arte, é inventar uma melodia engraçada e não fazer mais nada o resto da vida, a ganhar 5% da venda de cada CD. A composição colectiva, a obra derivada ou adaptada, o improviso, a actuação ao vivo, e o músico como um artista profissional que recebe pelo trabalho que faz, tudo isso sai a perder neste sistema perverso. Um sistema que avalia a inovação artística pelo número de cópias vendido, e que exige leis para coagir o comprador alegando que isso é que é justo.
A solução é acabar com esta treta. Restringir os direitos de autor a certas aplicações comerciais onde são necessários para garantir a produção e distribuição de certos produtos (CDs, filmes, livros). Mesmo nesses casos, com âmbito e duração limitados para promover a distribuição sem impedir a criatividade. E deixar de fora tudo o que não tiver fins lucrativos. Isto vai inviabilizar a máquina que produz Spice Girls e Backstreet Boys, Mas é bom para a música como arte deixar o público investir em mais artistas e espectáculos que em meia dúzia de fenómenos publicitários com milhões de CDs iguais vendidos à cópia.
1- 6-6-06, Os direitos do autor...
2- 9-6-06, ...e o autor de direito.
Exmo. Ludwig,
ResponderEliminarEstou aqui num impasse, pois não estou a vêr como se obteria uma solução para esta questão.
Eu compreendo e apoio a distribuição da música a baixo custo, mas, ficam aqui diversas questões por resolver.
-O direito de autor garante-me que só o autor pode tocar e ter proveito da sua música. Até aqui tudo bem. Mas, se uma rádio vende públicidade e atrai ouvintes, passando a música de alguém, qual o valor que a o autor deve receber? Ou vende a música e o direito de difusão da mesma, ou alguém que não ele vai tirar todo o proveito da música.
-E quem distribuir música via P2P, ou site de distribuição, pode fazer essa distribuição? Se o faz, está a vender públicidade nos sites ou a vender o programa que assegura o sistema de P2P, que apenas se destina a distribuir o conteudo de terceiros.
-A solução é, apenas o autor poder distribuir a sua música, com ou sem custos para quem recebe as cópias, o que nos leva de volta à velha questão. A distribuição pode ser vendida a uma empresa especializada (não devia poder ser assim, mas, isso é outra questão), que pelos "custos" que tem a pagar dividendos aos accionistas, os repercurte em quem consome. E a questão é: Quem é que pode distribuir algo que esteja sujeito a direitos de autor? E para este efeito, distribuir é vender cópias fisicas, distribuir em formato digital por partilha não gratuita (e mesmo na net alguém tira proveito do tempo/dimensão/meio de partilha por muito ilusória que seja a gratuiticidade), via airplay de rádio, etc.
É que no meio disto tudo, quem recebe menos dinheiro da venda de discos e livros, são os autores.
No caso das ideias que alguém tem, e que todos passamos a conhecer, não podemos tirar proveito pela difusão da mesmas, nem utilizar em proveito próprio sem compensar o autor das mesmas. O que costuma acontecer é que o autor vende a ideia a alguém, que age como patrono e sustenta o autor, a troco de poder tirar o proveito económico da ideia que comprou. Se assim não for, o reverso da medalhe é que quem vai tirar todo o proveito das ideias alheias, são as empresas de maior dimensão.
Imaginemos, que eu, António, invento um processo de gerar energia a custo zero. Dada a minha incapacidade para produzir os meios de geração dessa energia, alguma empresa de grande dimensão o fará, e eu posso continuar na minha "miséria" relativa, e eles a encher os bolsos. Em absurdo, levando esta ideia ao extremo, os inteligentes vão continuar a ser miseráveis, e alguns tubarões nunca pararão de crescer. O mesmo acontece com a música e a literatura. Quem cria, se não retem os direitos, e/ou não os pode vender, não tem proveito possível, e a actividade está condenada à extinção.
«Quem cria, se não retem os direitos, e/ou não os pode vender, não tem proveito possível, e a actividade está condenada à extinção.»
ResponderEliminarCaro António,
Esta afirmação é correcta no sentido que reconhece estes beneficios como um incentivo à criatividade e não como um direito do autor que a sociedade deve proteger.
De resto está errada. Há muitos exemplos de quem cria sem essas recompensas. Os matemáticos, cientistas, professores, e todos os programadores que participam em projectos gratuitos como o Linux e grande parte da computação científica.
E acho muito duvidoso que os artistas deixassem de criar sem este tipo de direitos de autor. Afinal, foi o que fizeram até 1887, quando foi assinada a convenção de Berna.
Sim Ludwig, mas tens de reconhecer que até 1887 não era tão fácil como hoje reproduzir obras alheias.
ResponderEliminarA verdade é que se eu escrever um livro, vender um exemplar a alguém por 10e e esse alguém der um exemplar a toda a gente no mundo através da internet, lá vai todo o meu esforço de o escrever.
Terei de alterar o modelo de negócio para disponibilizar o primeiro exemplar apenas depois de me pagarem um determinado valor. Por exemplo:
-escrevia um livro e dava a toda a gente, confiando que as pessoas iriam gostar.
-depois punha no meu site um anúncio a dizer "se eu receber donativos até ao valor XXX, dou-vos o próximo que escrever", e ia vivendo dos meus livros dessa forma.
Claro que se toda a gente pensasse racionalmente do ponto de vista económico teríamos o problema da "freee ride": ninguém pagava com esperança que outros pagassem. Na verdade eu estaria à mercê da "irracionalidade económica" das pessoas. Daquelas que pagariam para que elas e outras tivessem acesso ao livro ao invés de esperar que outras paguem para elas terem acesso.
Felizmente, para este efeito, já vimos que isto é um modelo de negócio perfeitamente sustentável. Talvez mais eficiente que o actual.
Ou não?
Aqui está a grande questão.
Sempre foi fácil (e legal) reproduzir receitas. Não parece que isso seja um entrave à criatividade culinária.
ResponderEliminarE eu já escrevi duas teses, duas dúzias de artigos e umas duzentas páginas de posts sem cobrar nada a ninguém :)
Quanto ao modelo de negócio que propões, é viável e nada irracional. Estás a assumir que para todos os fans tem mais valor receber o livro à borla que participar activamente financiando a sua escrita, mas em muitos casos é ao contrário. Se o Terry Pratchett fizesse uma dessas seria para mim um prazer dar-lhe o dinheiro adiantado. O livro teria para mim ainda mais gozo.
A grande caça às borlas que a internet e o P2P criaram deve-se a dois fenómenos. Por um lado a percepção (correcta) que maior parte do dinheiro que pagamos por estas coisas vai para os bolsos das pessoas erradas. Por outro lado, toda a gente gosta de borlas mas muitos acabam por comprar também o original quando vêm que gostam do produto e querem ter mais que um ficheiro no computador.
Ludwig:
ResponderEliminarO exemplo das receitas é péssimo, porque ninguém (ou praticamente ninguém) tem como profissão "criar receitas". Os cozinheiros têm como principal função cozinhar.
Se existisse tanta gente que tivesse como profissão escrever como existe gente que tem como profissão criar receitas, a literatura estaria mal servida...
Posto isto, creio que não leste com atenção aquilo que escrevi.
Pois quando dizes: «Estás a assumir que para todos os fans tem mais valor receber o livro à borla que participar activamente financiando a sua escrita», esqueceste que eu escrevi que considero mais plausível a assunção contrária: «Felizmente, para este efeito, já vimos que isto é um modelo de negócio perfeitamente sustentável.».
Ou seja: tal como tu, considero que é mais plausível que este modelo de negócio funcione. Mas ao contrário de ti, tenho algumas dúvidas, por isso é que acrescentei: «Ou não? Aqui está a grande questão.»
A verdade é que este modelo de negócio ainda só vinga em pequenos nichos, e não podemos saber se ele seria sustentável em relação a todo o mercado. Se existe gente suficiente a agir dessa forma para sustentar a actividade musical actual, ou sequer próxima.
Eu gostaria de acreditar que sim, e tenho algumas boas razões para isso. Mas também dúvidas...
Caros,
ResponderEliminarEsse modelo comigo funciona...
Ninguém me paga, e eu continuo a compôr música, e a gastar dinheiro para a fazer.
Mas, se alguém que não eu, tentar tirar rendimento da minha criação, sou capaz de me chatear e falar dois ou três décibeis mais alto, e outras coisas...
Estou com o "João Vasco" a 99% e com o Ludwig a 50%... Acho que deviamos desenvolver o modelo, e patentear o mesmo para nosso proveito futuro. Depois vendemos livros a explicar o modelo e ficamos 33% de uma ideia mais ricos, cada um...
Só para clarificar o conceito de gratuiticidade. O P2P é feito por software, pago, que quando é à borla, vem cheio de janelas de publicidade. Alguém que não o autor está a receber proveito por difundir o trabalho alheio.
A rádio vende públicidade, porque alguém quer ouvir música, o matemático, físico, ou outro qualquer "ico" recebe ordenado/bolsa para pensar e desenvolver ideias... Só aos músicos é que querem copiar o trabalho sem pagar... No meu caso, como já disse, faço porque gosto, mas, não tenciono sustentar ninguém...
Este anónimo anterior, foi acidente. Sou o António e não o "anónimo"...
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