sexta-feira, julho 06, 2007

... e paternalismo.

Uma pessoa escolhe chocolate, outra escolhe baunilha. Se uma prefere chocolate e a outra prefere baunilha, é deixá-las escolher. Mas se ambas preferem chocolate e uma escolheu por engano ou porque não sabia que havia chocolate já se justifica intervir. Paternalismo? Talvez. Como pai não me compete decidir o que os meus filhos gostam, mas se vejo que se enganam escolher ao contrário do que preferem sinto-me no dever de os corrigir.

Pode ser paternalista restringir os ingredientes das bebidas. Uma alternativa seria apenas obrigar o fabricante a enumerar os ingredientes, e cada um que decidisse se queria dicloro-difenil-tricloroetano ou N-L-alfa-aspartil-L-fenilalanina-1-metilester na gasosa. Mas podemos assumir que ninguém no seu perfeito juízo vai querer beber insecticida, enquanto alguns podem preferir adoçante por ter menos calorias. Proibir o DDT na gasosa e permitir o adoçante elimina erros com consequências sérias e não impõe preferências a ninguém. Paternalismo, provavelmente, mas no bom sentido.

Obrigar o motociclista a usar capacete justifica-se, em parte, pelos que a falta de capacete prejudica os outros. Sem capacete um toque ligeiro pode ser fatal ou incapacitante, aumentando os prémios dos seguros e problemas legais. Mas também se justifica obrigar a usar capacete pela nossa dificuldade de tomar certas decisões de forma informada e racional. Não estão em causa diferenças de preferência. Podemos assumir que ninguém no seu perfeito juízo quer espatifar o cérebro no asfalto. O problema é que estamos mal equipados para este tipo de decisão.

A maioria de nós julga ser um condutor acima da média. É impossível, mas revela um dos problemas. Sobrestimamos a nossa capacidade. E racionalizamos as más decisões. Se não morrer disso é doutra coisa, há quem ande a vida toda sem capacete e morra de ataque cardíaco, e assim por diante. Evitamos considerar consequências desagradáveis e não somos naturalmente dotados para avaliar riscos que estão para além da nossa experiência directa. O resultado de permitir andar de mota sem capacete seria muita gente escolher o contrário daquilo que prefere. Como quem escolhe baunilha por não se lembrar que há chocolate, escolhiam andar sem capacete por não considerar devidamente os riscos.

O tabaco levanta os mesmos problemas. O adolescente que começa a fumar não dá importância ao risco de cancro ou de doença cardíaca. Ninguém aos 18 se preocupa com o que lhe vai acontecer aos 50. Sobrestima a capacidade de deixar de fumar, racionaliza a decisão, e acaba por escolher de forma contrária aos seus interesses. Daí o enorme mercado de livros com técnicas para deixar de fumar, pastilhas e remédios, terapias, consultas, hipnose e patetices alternativas. Tanta gente comprar tanta coisa que não funciona mostra bem o desespero de quem quer deixar de fumar e não consegue.

Fumar um cigarro não é um acto voluntário informado. Quando começa a fumar o fumador não tem a informação mais importante: quanto é que lhe vai custar deixar o tabaco. Alguns têm sorte na roleta bioquímica e deixam o vício sem problema. Mas outros só tarde demais descobrem que não é só uma questão de «força de vontade». O que não justifica que se proíba o tabaco na vida privada de cada um. A saúde dos fumadores vale menos que a nossa privacidade. Até a saúde dos cães, gatos, e filhos dos fumadores, que não têm culpa nenhuma, vale menos que a nossa privacidade. Sou contra que se ande a espreitar para as casas das pessoas só para ver se alguém fuma.

Mas esta situação justifica o paternalismo nas restrições à publicidade, na proibição do tabaco nas escolas, na proibição da venda a menores, e em todas essas coisas que se pode fazer sem invadir a privacidade de ninguém e que compensam em parte os erros sistemáticos que levam muitos a começar a fumar mesmo contra os seus interesses.

O que não tem nada a ver com a lei proposta, que apenas proíbe que fumem para cima dos outros. Só me deu para falar disto porque o chavão do «paternalismo» é muito usado por quem defende o direito de partilhar o seu cancro mesmo com quem não o quer.

22 comentários:

  1. Não tenho, em princípio, o direito de agir de forma a que outra pessoa corra um risco mensurável de ficar doente. Nem tenho, em princípio, o direito de agir de modo a provocar desconforto noutra pessoa.

    Estas regras são do senso comum, mas também é do senso comum que as duas acções que me são proibidas se situam em +planos muito diferentes em termos de gravidade.

    Escrevi «em princípio» porque é sempre possível imaginar uma situação em que as acções referidas me são não só permitidas, como exigíveis eticamente.

    Por exemplo, quanto à primeira: se vir uma casa a arder com um bebé lá dentro e se o extintor que tenho à minha disposição contiver substâncias cancerígenas, por certo não vou deixar de o usar e de salvar o bebé mesmo que com isso lhe provoque um cancro quando ele tiver 50 anos.

    Quanto à segunda: se estou num lugar público, ao ar livre, a fumar um charuto, e outro utilizador do mesmo espaço se mostra incomodado com o cheiro, tenho todo o direito de pôr num lado da balança o incómodo dele e no outro o meu prazer.

    Se me proíbem isto, então não há razão para que não proíbam os pais de crianças pequenas e ruidosas de frequentar com elas os jardins públicos.

    O risco do fumo pode, em princípio, ser medido; o incómodo, não, a não ser pelo bom-senso e pelo compromisso.

    ResponderEliminar
  2. Li algures que o consumo continuado de aspartame está associado a risco de câncro.

    ResponderEliminar
  3. Para impedir o consumo de tabaco não precisarias de violar a privacidade das pessoas: apenas impedir a venda.
    Se o tabaco fosse como a Canabis, cuja venda não pdoe ser legalizada, o seu consumo seria menor.
    Estarias de acordo com esta possibilidade? Pelos argumentos que apresentas, ela pareceria razoável.

    Eu estou contra restringir ambas as substâncias. E também estou contra a proibição da venda de alcool (apesar dos indivíduos que querem deixar o vício da bebida, etc...), e contra a proibição de alimentos com altos teores de colestrol, ou poliinsaturados, ou calorias (e certamente que as pessoas não tomam uma decisão livre e informada, pois se há tantos obesos, e gente a querer abandonar o vício de comer esses alimentos, etc...)

    Acho que aqui não estamos de acordo.


    E a antiga lei não era algo diferente. A lei não vem permitir que se lance fumo para qualquer indivíduo, mas apenas para a aquele que o consente (e fá-lo quando entra num espaço privado em que fumar é permitido).

    ResponderEliminar
  4. Francisco,

    Estudos em ratos mostram um aumento na probabilidade de linfomas. Mas os resultados só foram reprodutíveis só com quantidades exageradas, e usam ratos especialmente susceptíveis a cancros (senão tinham que usar milhões de ratos).

    Mesmo as quantidades mais baixas em que se detecta um efeito em alguns estudos e não noutros equivalem nos humanos a um consumo diário de um ou dois litros de bebidas destas.

    Não conheço qualquer estudo epidemiológico em humanos que tenha detectado uma correlação entre aspartame e cancro.

    ResponderEliminar
  5. João Vasco,

    Não estou de acordo porque a proibição de venda é um meio muito pouco eficaz e com efeitos secundários indesejados. Além do problema ético da proibição em si, é como reparar televisores à martelada.

    Concordo contigo que se devia legalizar a venda de cannabis, e provavelmente de outras drogas, pois seria uma forma melhor de regular a sua produção e consumo.

    Mas não me parece um mau paternalismo restringir a publicidade ao alcool, tabaco, e heroína, ou proibir o seu consumo nas escolas, mesmo que fossem todos legais.

    ResponderEliminar
  6. Quanto à lei só permitir que se lance fumo a quem consente, isso é treta quando quem «consente» é um empregado que será despedido se não consentir.

    Para ser como tu descreves tinha que ser assim: quando alguém quer fumar num espaço fechado com outras pessoas tem que perguntar se todos consentem. Se alguém não consente o fumador não pode fumar. Se essa for a lei, tudo bem, desde que a lei assuma que o empregado nunca consente para evitar pressões do patronato.

    ResponderEliminar
  7. José Luiz

    «Quanto à segunda: se estou num lugar público, ao ar livre, a fumar um charuto, e outro utilizador do mesmo espaço se mostra incomodado com o cheiro, tenho todo o direito de pôr num lado da balança o incómodo dele e no outro o meu prazer.»

    Ao ar livre, sim, concordo que terão que ser ambos postos na balança. Mas note que quando pomos coisas dessas na balança em geral consideramos que é quem incomoda os outros que está a fazer algo de mal. Musica aos altos berros, jogar futebol na praia ao pé das pessoas, deixar lixo no chão (incluindo cinza e beatas), etc.

    Quanto às crianças ruidosas, há muitos sitios onde são proibidas (espectáculos, bares, cinemas excepto sessões especiais para miudos ruidosos). Mas com crianças a balança deve também considerar a sua imaturidade e menor responsabilidade de não incomodar os outros.

    ResponderEliminar
  8. «Não estou de acordo porque a proibição de venda é um meio muito pouco eficaz e com efeitos secundários indesejados. Além do problema ético da proibição em si, é como reparar televisores à martelada.»

    Entendo isto. Mas quero perguntar-te o seguinte: se a proibição fosse eficaz, estarias de acordo?
    Eu vejo o "problema ético" da proibição como sendo o problema da limitação das liberdades individuais. Mas se tu achas que a escolha do consumo de substâncias que fazem tanto mal à saúde (seja o tabaco, o alcool, as drogas, ou comida muito pouco saudável) nunca pode ser uma decisão livre, então só não as proibes porque acharias um meio pouco eficaz de limitar o seu consumo? Se fosse eficaz utilizarias esse meio?


    «Para ser como tu descreves tinha que ser assim: quando alguém quer fumar num espaço fechado com outras pessoas tem que perguntar se todos consentem. Se alguém não consente o fumador não pode fumar. Se essa for a lei, tudo bem, desde que a lei assuma que o empregado nunca consente para evitar pressões do patronato.»

    A Holanda tem um negócio chamado "coffe shops" onde os turistas vão lá e fumam os chamados "charros". Se fores a um desses locais, e alguém estiver a fumar um, achas mesmo que não consentiste levar com o fumo no momento em que entraste lá? E o empregado que escolheu trabalhar lá? Se o negócio fosse proibido ele não teria esse emprego, mas sendo o negócio permitido ninguém o obrigou a aceitar: ele apenas teve essa opção. E vou ser claro nisto: qualquer pessoa pode entrar nessas lojas, e até pode entrar lá para comer um bolinho apenas. Mas se entra, sabe ao que vem: não faz sentido ficar indignado porque vai levar com o fumo de "charros" alheios.
    Há vários aspectos em que vejo a Holanda como um país que respeita as liberdades individuais: por regular o negócio da prostituição (em vez do vazio legal que existe cá); por permitir a eutanásia, etc...
    Eu pensava, optimisticamente, que em Portugal (e na Europa) se iria avançar nesse sentido. Em vez disso, vejo o oposto.
    E realmente vejo a população a aceitá-lo com alegria. E isso assusta-me.

    Não fumo. Mas vejo o tabaco como o início. E vejo exactamente aquilo que tu escreveste: não se andam a proibir todas essas substâncias menos saudáveis apenas porque isso é visto como um meio pouco eficaz de impedir o seu consumo. Vão usar todas as limitações à nossa liberdade que sejam consideradas eficientes para esse fim.

    A comunidade vai impôr o valor que temos de dar à nossa própria saúde, sob esse pretexto: o de que não podemos avaliar isso em consciência, não somos capazes de o fazer - como se diferentes pessoas não dessem um diferente valor a esse bem.
    Parte-se do princípio que é "loucura" fumar um cigarro, ou comer um "big mac" (e esclareço que não gosto de comida rápida), e as pessoas perdem o direito de, discordando, consumirem livremente - são desincentivadas por todas as leis que forem necessárias (e eficientes) para que tomem a decisão menos "louca" de não consumir.

    ResponderEliminar
  9. João Vasco,

    Quem quer comer comida não pasteurizada, está nesse direito.

    Mas ninguém diz que é uma violação dos direitos do consumidor obrigar a que todos os enlatados passem por um processo normalizado de pasteurização.

    Não é um abuso das liberdades dos produtores alimentares não deixar ao seu critério a forma como embalam a comida, para depois dizer que só come fruta podre quem quer.

    Os jogos a dinheiro estão proibidos nos bares e restaurantes.

    Mas não se diz que é uma violação dos direitos dos clientes impedi-loos de jogarem jogos que só os afectam a eles.

    Podem ir a um casino ou jogar em casa.

    Existem critérios de qualidade que o Estado exige aos fornecedores de serviços para operarem. Um deles pode muito bem ser a qualidade do ar.

    Posto isto, não digo que não se possa arranjar uma forma de permitir a venda de produtos não pasteurizados. Nem de permitir a existência de pequenas casas de jogo. Nem de permitir a existência de casas de fumo.

    Quando um governo quiser proibir mascar tabaco em bares, dou-te razão.

    ResponderEliminar
  10. É um problema ético restringir a liberdade de escolha. Mas a liberdade de escolha implica uma escolha informada. Obrigar a pôr tampas nos esgotos não infringe a liberdade de cair lá dentro acidentalmente. E quem começa a fumar fá-lo sem saber no que se mete.

    Não digo isto por saber o que é estar viciado. Não sei, e é uma das razões porque não fumo -- não me quero meter nisso sem saber o que é. Mas é óbvio pelo grande número de pessoas que tentam futilmente deixar o vício que aquilo não foi uma escolha informada.

    O outro problema ético de qualquer lei coerciva é a coacção. Se temos que prender, julgar, ameaçar e essas coisas podemos acabar a fazer pior. Por isso acho que não devia ser ilegal o cannabis ou mesmo a heroina. Salva-se algumas pessoas mas a grande custo de penas de prisão, criminalidade, violência...

    A questão é uma de pesar os prós e contras. Não se baseia em algum fundamentalismo que diga X é que interessa e o resto não importa. Por isso não te posso responder a menos que sejas mais explícito nesse cenário em que a proibição era eficaz. Se só tem vantagens claro que sou a favor. Se tem desvantagens depende.

    E não me oponho às casas de fumo. Mas seria um negócio diferente. Um restaurante não é uma farmácia, uma discoteca não é uma padaria. Quem vai fumar pode-se assumir que é fumador, mas não se pode assumir o mesmo de quem vai almoçar ou beber um café. De qualquer forma as casas de fumo teriam que garantir a segurança de quem lá trabalha. Quem é empregado também não se pode assumir que é fumador. O restaurante para fumadores é uma discriminação injustificável.

    ResponderEliminar
  11. Ludwig e Francisco:

    Visto que ambos concordam que deveriam ser permitidas as «salas de fumo», está tudo dito.

    Se os cafés e bares puderem escolher se é permitido fumar ou não, então bem podemos chamar "salas de fumo" aos cafés onde é permitido e "cafés/bares/etc" aos outros. Uma vez que não faria qualquer sentido proibir a venda de café ou bebidas numa «sala de fumo», nem a entrada a não-fumadores, a permissão de existência de salas de fumo faria com que todos os cafés que querem permitir o fumo passassem a ter essa designação. As licensas seriam mais caras? Acharia mal, um pouco na linha do tal paternalismo que o Ludwig defende neste artigo, mas tudo bem.

    Basicamente a situação mudaria pouco.

    Proibir que os cafés/pubs/etc. possam permitir fumar, sem no entanto permitir o negócio das «salas de fumo», isso sim já seria uma invasão maior da liberdade das pessoas.

    Por fim, Ludwig, agora finalmente tenho tempo para procurar os valores a respeito do risco da mina e do tabaco. Em breve escreverei sobre essa questão da regulação laboral.

    ResponderEliminar
  12. Caro Ludwig:
    Quem começa a fumar sabe muito bem no que se mete. Nos maços de tabaco vêm avisos em letras enormes.

    Do mesmo modo, quem comprar uma garrafa de óleo ou um quilo de açúcar sabe que está a comprar óleo ou açúcar. Pode não o saber se comprar um bolo, um pão, um iogurte ou um pacote de batatas fritas, porque nas embalagens a lista de ingredientes vem em letras tão pequenas que poucas pessoas com mais de 45 anos são capazes de as ler.

    Vamos mais uma vez cair no mesmo: o Estado não tem nada que proteger as pessoas de si mesmas; nem sequer tem que as proteger da sua própria ignorância a não ser quando esta resulta da má-fé de outrem.

    Tem, sim, que proteger as pessoas umas das outras.

    Quanto ao tabaco, ao álcool, às drogas duras e leves, o melhor era legalizar tudo, embora regulamentando o que houvesse a regulamentar. Mas não é nesta direcção que sopram os ventos: sopram na direcção duma intervenção cada vez maior dos governos sobre a vida privada das pessoas.

    ResponderEliminar
  13. João Vasco,

    Não acredito que da situação actual se passe a uma situação ideal sem haver um período legislativo no meio. Caso contrário nada vai mudar - todos os bares e cafés vão passar a ser casas de fumo (o mesmo poderia não ser verdade para um restaurante, por exemplo). Ou seja, mudar os nomes não é mudar a realidade.

    As coffee shops têm regras e precisam de licenças próprias. Têm vendas limitadas a 5 gramas por cliente, os clientes têm de ser maiores e não podem fazer publicidade ao consumo. Algumas mantêm uma identificação do cliente com o respectivo consumo (o que lança algumas dúvidas sobre a questão da liberdade individual).

    ResponderEliminar
  14. Caro José Luiz,

    Quem começa a fumar sabe muito bem que um cigarro não mata ninguém. O problema é a longo prazo. Não é o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro.

    Ninguém começa a fumar com a consciência que é uma decisão irreversível, que nunca vai conseguir parar. Mas para a maioria é isso que acontece.

    E essa é a informação mais importante.

    ResponderEliminar
  15. Caro Ludwig:

    Quando eu comecei a fumar, em 1966, ainda não havia avisos nos maços de cigarros e as tabaqueiras ainda encomendavam estudos a reputadas sumidades a dizer que o tabaco era inofensivo.

    Apesar disso não faltou quem me informasse de que o tabaco matava. Até me diziam, e eu acreditei, que cada cigarro fumado representava não sei quantos minutos a menos na minha esperança de vida.

    Estava, portanto, bem informado. Não posso alegar ignorância. Mesmo muito jovem, já conhecia o mundo suficientemente bem para confiar mais nos estudos sobre os malefícios do tabaco do que nos estudos em sentido contrário financiados pelas tabaqueiras.

    Não acredito que os jovens de hoje estejam mais mal informados ou sejam mais inconscientes do que eu era nessa idade. Se estou enganado quanto a isto e os jovens são mesmo tão ignorantes, mal informados e inconscientes como você parece pensar que são, então passa-se na nossa sociedade algo de tão errado e tão grave que a questão do tabaco se torna irrelevante por comparação.

    Em 1983, quando deixei de fumar, o consenso social sobre o tabaco já tinha mudado. Já ninguém podia fingir ignorância sobre a correlação entre o fumo e o cancro ou entre o fumo e o enfisema pulmonar. E não era só a correlação que estava estabelecida: o nexo de causa e efeito aparecia em cada vez mais estudos. Contudo mentiria se dissesse que foram esses estudos, ou o conhecimento de que o tabaco mata, que me levaram a deixar de fumar. Podem ter tido alguma influência na minha decisão, mas houve muitos outros factores que contribuíram para ela.

    Um desse factores (espero que aprecie a ironia) foi muito semelhante ao que me tinha levado a fumar dezassete anos antes: uma afirmação de liberdade.

    Foi assim: eram duas da manhã e estava sem cigarros. Eu vivia perto do centro do Porto e não tinha carro. Estava frio e caía uma chuva miudinha. Então eu saí de minha casa, que era na Rua do Bonfim, e pus-me a andar a pé e à chuva em direcção à Baixa, à procura de um café ou de um bar que estivesse aberto. Acabei por encontrar o meu maço de cigarros na estação de S. Bento.

    De regresso a casa comecei a pensar no poder extraordinário de um maço de cigarros, que conseguia obrigar um homem adulto a uma dose de esforço e desconforto a que possivelmente se recusaria para propósitos mais nobres. E pouco tempo depois decidi deixar de fumar.

    E estamos a chegar ao ponto crucial deste longo comentário, que é este: tanto a minha decisão de fumar como a de deixar de fumar foram tomadas livremente, estando eu na posse de todas as minhas faculdades e dispondo em ambas as situações de informação suficiente. Custar-me-ia que alguém desvalorizasse a liberdade e a responsabilidade com que tomei ambas as decisões.

    E é por isso que não desvalorizo decisões idênticas tomadas por outros, mesmo tratando-se de gente muito jovem.

    ResponderEliminar
  16. «As coffee shops têm regras e precisam de licenças próprias. Têm vendas limitadas a 5 gramas por cliente, os clientes têm de ser maiores e não podem fazer publicidade ao consumo. Algumas mantêm uma identificação do cliente com o respectivo consumo (o que lança algumas dúvidas sobre a questão da liberdade individual).»

    Não preciso de dizer nada: o teu parentesis no final diz tudo.

    Para que a regulamentação não lançasse "algumas dúvidas sobre a questão da liberdade individual" poucos seriam os cafés ou pubs que não se poderiam converter em salas de fumo.

    ResponderEliminar
  17. O que quis dizer foram duas coisas:

    1) As coffee shops têm um estatuto diferente dos bares normais;

    2) Se a Holanda é um exemplo, mesmo lá se pode colocar a questão de se a liberdade de escolha é garantida na totalidade.

    ResponderEliminar
  18. «2) Se a Holanda é um exemplo, mesmo lá se pode colocar a questão de se a liberdade de escolha é garantida na totalidade.»

    Claro que pode!

    O pior é andarmos no sentido contrário...

    ResponderEliminar
  19. Eu acho que estamos no ponto em que estamos a dizer algo como:

    "Os bares não são opiários",

    para mais tarde poder dizer-se

    "com estas excepções: etc."

    ResponderEliminar
  20. hum... não me parece nada disso.

    E se assim for, tu próprio o disseste, é questionável em termos do respeito pelas liberdades individuais.

    ResponderEliminar
  21. É questionável a posição da Holanda porque não sei porque razão é necessário um registo das actividades não-ilegais de um consumidor. Na Holanda é crime não punível a venda de haxixe.

    Manter um registo do número de cigarros que um cidadão fuma numa casa de fumo é caricato.

    Pode haver uma razão obscura qualquer mas enfim...

    No caso nacional, tentar passar directamente da situação actual para a ideal vai redundar na manutenção do estado de coisas: os não-fumadores não terão para onde ir, e a qualidade do ar dentro de todos os estabelecimentos vai continuar a mesma.

    Claramente existe um conflito entre várias coisas que queremos: que a concorrência seja justa, que a qualidade do ar aumente, que o número de cancros diminua e que se respeite as escolhas individuais.

    As escolhas individuais, a meu ver, só são postas em causa na perspectiva dos proprietários que trabalham num regime cujas regras são definidas pelo Estado, tal como no caso do capacete dos motociclistas ou do capacete dos mineiros - de forma legítima tanto do ponto de vista do poder que lhe foi investido como do ponto de vista ético.

    ResponderEliminar
  22. Caro José Luiz,

    O seu caso é um excelente exemplo. Em 1966 sabia que cada cigarro fazia um pouco de mal à saude. Julgava por isso que a decisão era tomada cigarro a cigarro, pesando em cada um os prós e contras.

    17 anos mais tarde apercebeu-se que não era isso. Estava a ser compelido pelo vício. Compelido a fumar, e até compelido a sair de casa a meio da noite à chuva à procura de tabaco.

    Em 1966 faltava-lhe o dado mais importante: a força e subtileza do vício. Foi tal que demorou 17 anos a aperceber-se de como o tabaco lhe controlava as decisões, mas felizmente, no seu caso, não foi tal que o impedisse de deixar de fumar.

    Mas nisto teve sorte. Tivesse o seu sistema nervoso reagido de forma diferente ao tabaco e teria muito mais noites à chuva, ou coisas piores.

    O tabaco interfere com mecanismos muito fortes de motivação e compulsão. Perdemos muito da nossa capacidade de decisão quando estamos embriagados, esfomeados, furiososm ou aterrorizados. O mesmo se passa quando estamos viciados.

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.