Como o conhecimento a priori é empírico.
Obrigado a todos que têm participado nesta conversa que me tem ajudado muito a perceber este problema. Deu-me uma ideia mais clara do que pode ser o a priori e até, ao contrário do que eu tinha defendido anteriormente, de como salvar a noção de conhecimento a priori.
Uma verdade a priori será qualquer estado acessível a pela aplicação de regras de transformação preestabelecidas e partindo de um estado inicial. Aqui uso “verdade” num sentido lato que não exige consciência nem a interpretação desses estados como proposições. Desta forma, se programarmos um computador para seguir certas regras a partir de um estado inicial todos os estados resultantes da aplicação dessas regras serão verdades a priori naquele contexto*. A noção de verdade aqui é simplesmente a de coerência com o estado inicial e com as regras de transformação, por isso uma verdade a priori é sempre relativa ao seu contexto. O conhecimento a priori é apenas o conhecimento de verdades a priori. Conhecendo as regras de transformação da álgebra e partindo do estado inicial de 2+2 eu posso conhecer a verdade a priori, neste contexto, que o resultado é igual a quatro porque essa conclusão segue do estado inicial pela aplicação das regras.
Uma consequência importante é que, nesta definição, o a priori é uma categoria ontológica e não epistemológica como o empírico. Assim percebe-se como saber que 2+2=4 é conhecimento a priori mesmo que se descubra que 2+2=4 experimentando com pedras, dedos e palitos e extrapolando daí uma regra geral, empiricamente. É a priori não pela forma como foi conhecido mas por poder resultar de se aplicar certas regras partindo de um estado inicial. Podemos então falar de objectos a priori, como por exemplo todas as jogadas possíveis do Xadrez, mas não de objectos empíricos pois empírica é a forma de conhecer esses objectos e não propriedade dos objectos em si. Posso conhecer as jogadas do Xadrez construindo peças e um tabuleiro e experimentando seguir as regras a ver o que dá.
A noção de a priori como categoria epistemológica, aquilo que se descobre «pensando somente», faria sentido se a nossa mente fosse um homúnculo algures dentro da cabeça assistindo ao que os nossos sentidos mostram e pensando acerca disso. Fechando o teatro cartesiano o homúnculo continuaria a pensar e a obter conhecimento independente da experiência, que seria definida como o que se passa no teatro e não no homúnculo. Mas esta ideia é errada. A nossa mente é gerada por redes de neurónios interligadas do cérebro aos dedos dos pés. Os neurónios interagem, as redes interagem e a consciência emerge como o borbulhar de sais de frutos. Não há uma res cogitans independente a pensar a priori nem uma divisão entre o sentir e o pensar. Está tudo ligado. Mesmo sem sentidos sentimos recordações, sentimos que somos, sentimos que pensamos. A consciência é empírica, e se o conhecimento exige consciência então o conhecimento será sempre empírico. Mesmo que a coisa conhecida seja tal que a sua verdade se possa justificar a priori, seguindo regras a partir de um estado inicial.
Outro aspecto importante é que a priori é a qualidade de ser resultado da aplicação de transformações especificadas a partir de um estado inicial, por isso nem o estado inicial nem as regras de transformação são a priori no contexto do seu sistema. Daí que não se possa fazer matemática ou lógica a priori. Só depois de feitas, depois de se especificar as regras e os axiomas, é que os resultados serão a priori, e até se pode implementar os sistemas em computadores que apliquem as regras mecanicamente.
Em suma, parece-me que o problema era confundir a forma de conhecer com a propriedade de certos objectos de resultar da aplicação de regras. 2+2=4 é a priori porque é o resultado de aplicar certas regras a partir de um certo estado inicial. Mas isto não tem nada que ver com a forma como conhecemos que 2+2=4, nem com o que nos levou a inventar essas regras ou a escolher essas em vez de outras. Quando dizemos “conhecimento a priori” estamos a qualificar a coisa conhecida e não a forma de a conhecer. A forma como conhecemos os resultados e inventamos e escolhemos regras e axiomas é sempre empírica.
PS: A palestra Higher Order Truths about Chmess do Daniel Dennett sugeriu-me algo semelhante, apesar de não ser directamente sobre isto. Não só pelos avisos aos filósofos mas pela distinção entre as verdades a priori e o nosso conhecimento delas.
* Aqui devia distinguir os processos físicos do aspecto conceptual, mas isso dava mais uma carrada de posts e se calhar é impossível. Ao que tudo indica, o conceptual é um tipo de processo físico que ocorre no nosso cérebro.