quinta-feira, outubro 09, 2008

Miscelânea Criacionista: esquemas, modelos e factos.

O Manuel, aparentemente em defesa do criacionismo (ou “plano Criador”, como ele o chama), citou este trecho de um artigo de Robert Crowther no The Scientist de Junho:

«Esta teoria da evolução é na verdade um enquadramento para pensarmos sobre as mudanças no mundo vivo. Não fornece suposições específicas para os diferentes tipos de características que possam existir, não fornece fortes exigências ou proibições sobre a forma como elas podem interagir para formar um organismo complexo ou ecossistema, e não fornece compromissos quanto à forma como uma população diferenciada se divide em duas espécies distintas»(1)

É verdade. Tal como a física newtoniana, a relatividade ou a mecânica quântica, a teoria da evolução não fornece detalhes por si só. Estas teorias são esquemas genéricos para criar modelos. Para criar um modelo newtoniano do sistema solar, por exemplo, temos que instanciar no esquema de Newton o número de planetas, órbitas, massas e dados afins. E é esse modelo específico que prevê detalhes que se pode comparar com os dados para avaliar o rigor do modelo. Enquanto esquema geral a mecânica newtoniana não pode ser confrontada directamente com a realidade. Mas pode ser comparada com outros esquemas análogos e testada indirectamente através dos modelos que permite gerar.

Como a relatividade permite criar modelos mais rigorosos concluímos que o esquema de Newton é menos adequado que o esquema de Einstein. Além disso, o esquema de Newton deixa algumas coisas por explicar que o esquema de Einstein explica, como a origem da gravidade. Estas vantagens justificam preferir o esquema de Einstein quando queremos mais rigor ou melhores explicações. O que não quer dizer que não se use o esquema de Newton. Por exemplo, a mecânica quântica é o melhor esquema que temos para modelar átomos e moléculas. Tem mais fundamento, melhores explicações e gera modelos mais rigorosos. Mas os modelos da mecânica quântica são tão complexos que para moléculas grandes como proteínas preferimos usar o esquema de Newton. Modelar átomos como pesos e ligações químicas como molas não é realista nem muito rigoroso, mas se não esquecermos as suas limitações, tal modelo é proveitoso e tem a vantagem de dar resultados em horas em vez dos vários anos que demoraria a resolver as equações da mecânica quântica.

Em traços gerais, podemos dividir a ciência em três níveis. No nível mais fundamental temos teorias como a mecânica quântica ou a teoria da evolução, que são esquemas genéricos para gerar modelos que fundamentam explicando porque têm que ser assim e não de outra forma. No nível intermédio temos esses modelos, instanciados com dados e que geram previsões específicas que podemos confrontar directamente com o que observamos. E nestes modelos há aspectos tão solidamente suportados pelos dados que os consideramos factos. Não por serem inquestionáveis mas por pragmatismo. A gravidade existe, a Terra é aproximadamente esférica, as moléculas são compostas por átomos e tentar negar estas coisas é, tanto quanto sabemos, pura perda de tempo.

O criacionismo não está ao nível da teoria da evolução. Esta permite criar modelos da transformação de populações na Terra, noutro planeta, numa caixa de Petri ou até de representações virtuais no computador, porque é um esquema genérico que podemos instanciar para casos concretos. E isto o criacionismo não permite. O criacionismo é apenas um modelo da origem de algumas espécies neste planeta. E além de pouco detalhado quando comparado aos modelos gerados pela teoria da evolução, é também um modelo ad hoc por não assentar numa teoria genérica que explique porque é que o modelo há de ser assim em vez de ser de outra maneira.

Finalmente, o criacionismo não se distingue dos outros modelos nos aspectos mais questionáveis como, por exemplo, a importância relativa da selecção, a deriva genética ou os efeitos moleculares, ou a interacção do desenvolvimento embrionário com a evolução dos genes que o regulam. Nestes aspectos há questões legítimas e um debate aceso entre biólogos acerca de quais serão os melhores modelos. Em vez disso o criacionismo rejeita os factos, aqueles elementos que é um disparate rejeitar. Coisas como a idade da Terra, a formação lenta do registo fóssil ou os seres vivos descenderem de ancestrais comuns. É como rejeitar os princípios da geologia alegando que a Terra é quadrada.

1- Comentário em Evolução: os tipos.

13 comentários:

  1. http://comentandosa.blogspot.com/

    Um novo jeito de aprender.
    Historia, Direito, Cinema.
    O que vc quiser saber.

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  2. Burn Burn Mother(beeep!) Burn!

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  3. Tanta coisa para se dizer que o creacionismo é uma balela. A futilidade desta discussão reside no facto de os creacionistas não seguirem as regras do jogo. Não têm o fardo da construção de um argumento sólido, nem são susceptíveis à força da razão.

    Forquilhas e fogueiras para eles todos, há que vingar os hereges de outros tempos.

    Salvé Xenu.

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  4. s.j.c.o.c.,

    «Tanta coisa para se dizer que o creacionismo é uma balela. A futilidade desta discussão reside no facto de os creacionistas não seguirem as regras do jogo. Não têm o fardo da construção de um argumento sólido, nem são susceptíveis à força da razão.»

    O que eu escrevo só se dirige aos criacionistas se eventualmente quiserem abordar o problema de forma racional. De resto, dirijo-me principalmente a quem quiser saber porque é que eu acho que o criacionismo é uma balela e o que eu penso da ciência.

    Além disso serve também para desabafar :)

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  5. Caro ludwig,

    Não era minha intenção insinuar que o texto era de alguma forma vazio de conteúdo/supérfluo. Pense no meu comentário como a reacção de quem já esgrimiu esses e outros argumentos, uma e outra vez, nesta mesma discussão. E agora o vê a si a batalhar.
    Também foi um desabafo.

    Do texto, gostei muito.

    Salvé Xenu.

    E o mais importante continuam a ser as fogueiras.

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  6. s.j.c. o c.,

    Sim, eu não intepretei o comentário como uma crítica ao texto. Mas surge muitas vezes essa questão de porquê debater com os criacionistas, e há quem defenda que nem se devia fazer isso por não adiantar de nada.

    Eu acho que não adianta aos criacionistas. Na sua maioria não querem mudar de ideias e pronto. E estão no seu direito. Mas adianta porque esclarece as pessoas, mostra a diferença entre dizer que é assim porque sim ou explicar as coisas, e sempre é mais uma desculpa para discutir ciência, que é uma das coisas mais importantes da nossa sociedade.

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  7. Muito bem escrito, assim dá gosto perder algum tempo a ler. E debater com ética. O ludwing krippahl e o antónio poderão estar na na Universidade Católica no auditório 511, piso 1 do edificio da Faculdade de Ciencias Economicas e Empresariais pelas 17 horas, para o debate: Cristianismo e ateísmo em Portugal: que diálogo?

    cumprimentos,
    Manuel

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  8. No dia 15 de Outubro

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  9. Manuel,

    Não me é possível aceitar o seu convite, já que o meu trabalho não me permite a disponibilidade para tal, por muito gosto que tivesse em estar presente.
    Não sendo o caso do Manuel (pelo menos por enquanto), eu criei uma certa alergia a algumas personalidades do campo criacionista, por isso seria pouco proveitoso eu estar presente.

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  10. "criacionistas se eventualmente quiserem abordar o problema de forma racional."

    Acredito que existam (como as bruxas). Mas não se encontra uma a cada virar de esquina.

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  11. Manuel,

    Eu vou tentar lá estar, se bem que provavelmente não chegarei às 17:00.

    Já agora aproveito para deixar o anúncio do debate num post, coisa que já vinha a adiar há uns dias. Obrigado pelo "toque" :)

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  12. http://br.youtube.com/watch?v=o1dgrvlWML4

    Nesse pequeno vídeo, Richard Feynman compara as leis da física com as regras do xadrez. Em particular, é ilustrado muito bem o caso em que uma nova teoria não só explica tudo o que a sua antecessora explicava, como também outros fenómenos para os quais a teoria antecedente não fornece explicações.

    Espero que isto contribua para perceber (uma das razões) pelas quais o criacionismo não pode (e não *deve*) ser encarado como teoria científica: dizer que um designer consciente criou o mundo e os seres vivos é o equivalente biológico da linha de pensamento de Aristóteles, que dizia que as aves voam porque o seu lugar natural é nos céus, e que as pedras caem porque o seu lugar natural é na terra. "Explicações" desta natureza não podem ser refutadas, e por isso também não podem ser melhoradas pelo método empírico (fazer experiências e comparar resultados). Ou como escreveu o Ludwig, não permitem criar modelos. Designar tais teorias de "científicas" é um contra-senso.

    Por último, seja-me permitido fazer uma ressalva (que espero não seja considerada herética): há um aspecto em que todo o movimento que se tem gerado em torno do criacionismo poderá *eventualmente* ser útil. Que é o de fazer o papel de cépticos em relação à teoria da evolução. Dito de outro modo, poderá ajudar os biólogos a manterem-se cientificamente honestos; e a encontrar falhas nos modelos evolutivos actualmente aceites. Citando novamente o Ludwig: «Nestes aspectos há questões legítimas e um debate aceso entre biólogos acerca de quais serão os melhores modelos.» O cepticismo é essencial na procura desses melhores modelos, e não imagino maiores cépticos em relação à evolução do que os criacionistas...
    Mas talvez esse cepticismo tenha um preço demasiado elevado, se o custo for ensinar nas escolas o criacionismo como teoria alternativa à evolução (não só porque não o é, mas porque como expliquei acima, pelos padrões actuais o criacionismo não pode ser considerado como uma teoria científica).

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