Tentar saber.
O Desidério escreveu no Público de ontem que «Especular é tentar saber o que não sabemos e o que nem sequer fazemos ideia de como podemos tentar saber»(1). Só no sentido peculiar em que levantar-se da cama é tentar correr a maratona. É condição necessária mas está longe de ser suficiente.
Especular é gerar hipóteses. Saber é crer em hipóteses que se justifica considerar verdadeiras. Por isso especular só faz parte de tentar saber quando inserido na procura de crenças justificadas. Mas especular, por si só, não chega para tentar saber. Especular que o Elvis está vivo numa ilha deserta não é o mesmo que tentar saber se o Elvis está vivo numa ilha deserta. Faltam aí coisas importantes, omissão que afecta o resto do texto. Por exemplo, «A ideia de que só devemos especular ou tentar saber algo se o fizermos cientificamente é insustentável.»
A ideia de especular cientificamente é insustentável. A ciência é o processo de comparar hipóteses, encaixá-las noutras em que confiamos e encontrar justificações para confiar mais numas que nas alternativas. A ciência não regula a criação dessas hipóteses. Podemos criá-las especulando, sonhando ou pondo o computador a gerar frases aleatórias com “Elvis”, “vivo”, e “ilha deserta”. Isto será ciência só se continuarmos o processo; a especulação por si não é ciência.
É verdade que as especulações mais úteis normalmente vêm de quem percebe do assunto. Como o Desidério diz, quem especula sem saber nada acaba por repetir o que outros já especularam, sem grande utilidade. Mas o que determina se uma hipótese merece a nossa confiança – se é saber – não é a forma como se lembraram dela mas os dados que a suportam e justificam.
E por isso não é insustentável a ideia que só devemos tentar saber algo cientificamente. Sem a comparação e selecção justificada de alternativas não vamos obter conhecimento. Especular sem justificar só nos pode dar crenças verdadeiras se acertarmos à sorte, mas acertar à sorte não é saber. Saber exige justificação. Exige ciência.
Além da nossa discussão acerca do alegado conhecimento a priori, esta divergência ilustra outro ponto interessante. A tentativa comum, quase universal, de separar a filosofia da ciência. Neste caso, propondo a especulação como uma forma não científica de saber. Penso ser um vestígio do tempo em que só havia uma geometria e em que se julgava que a razão, e não a experiência, é que levava ao saber. Agora é diferente. Agora percebemos que geometrias e sistemas formais há aos pontapés e o problema é ver quais correspondem à realidade. E que a nossa razão não é invenção de alguma razão suprema mas o produto de milhões de anos de experiências em que a natureza atirou os nossos antepassados contra o seu ambiente (ou vice versa).
Há, e sempre deverá haver, espaço para filósofos. É útil que alguém se especialize nos aspectos mais analíticos do processo. Mas para tentar saber é preciso juntar as peças todas. Só com o bocadinho da especulação não vamos saber nada.
1- Também no De Rerum Natura, Especulação
Há espaço para a filosofia, por enquanto e só se não se tornar muito incómoda. se forem chatos e se começarem com especulações filosóficas sobre ética na ciência corre-se rapidamente com eles
ResponderEliminarAntónio Parente,
ResponderEliminarSaber o que a realidade é e escolher o que fazer dela são problemas diferentes.
Parece que o bichinho do Aristóteles ainda anda a vaguear nas escolas filosóficas actuais... É tempo de alguém avisar o pessoal que sim senhor, agradecemos ao senhor Aristóteles e ao senhor Pitágoras por terem definido o que é o saber e a ciência e com isso terem dado o nome a um ofício, mas sinceramente, há que simplesmente deitar ao lixo esta ideia idiota da separação entre a alma e o corpo, ideia completamente obsoleta e sobretudo snob, pois tinha apenas em mente a definição de uma elite pensante que apenas puxando dos seus neuróniozinhos fantásticos conseguiriam discernir todos os segredos do universo.
ResponderEliminarNeste sentido, poderíamos dizer que o senhor Aristóteles começou não só a aventura da ciência como da cientologia e tantas outras mitologias numerológicas e astrológicas...
Mas nós já estamos no séc XXI!! É tempo de enterrar os mortos. Tenho pena que o Desidério, que admiro bastante, sucumbe tão facilmente a estes laivos territorialistas...
Leu o Barba Rija, Ludwig? Ali está o futuro da filosofia, no caixote do lixo.
ResponderEliminarAntónio Parente:
ResponderEliminar“Ali está o futuro da filosofia, no caixote do lixo.”
Os religiosos começam poe ser radicais e de seguida passam a fundamentalistas.
Ludwig,
ResponderEliminarLamento conspurcar o post com o meu acordo. É inegável que a filosofia surgiu para dar respostas, subsiste a fazer perguntas e, se existe alguma utilidade no separatismo académico da filosofia por estar provado que o manejo da lógica deve ser acompanhado por profissionais especializados, ainda muitos filósofos se entretêm na tradição alquímica de sacar nabos da púcara (prática condenada pelo próprio Desidério que já por várias vezes me assegurou desconhecer o conceito de "resultados" no seu métier). Vejo um outro aspecto sinistro nesta tradição: alguém que se declara particularmente habilitado a pensar os assuntos cuidadosamente e aparece na praça com livrinhos sobre a existência de Deus, serve aos rústicos como eu - a quem o fígado nunca enganou - uma certa indisposição.
antonio parente,
ResponderEliminarLeu o Barba Rija, Ludwig? Ali está o futuro da filosofia, no caixote do lixo.
Nem sei o que dizer sobre o seu comentário senão que ou o leu completamente ao contrário, ou se criou essa confusão propositadamente, talvez para evitar a confrontação com a ideia separatista da alma e do corpo.
Não vejo esta ideia como fundamental à filosofia, como é óbvio. Uma das coisas mais interessantes que foi demonstrada no séc XX, foi pelo génio de Kurt Gödel, que postulou os seguintes dois termos:
Teorema 1: "Se o conjunto axiomático de uma teoria é consistente, então nela existem teoremas que não podem ser demonstrados (ou negados)" e
Teorema 2: "Não existe procedimento construtivo que demonstre que determinada teoria é consistente".
Fonte
Esta teoria (estabelecida e provada) foi devastadora para todos os que consideravam que seria possível estabelecer uma teoria fundamentada na matemática válida por si mesma, ou, falando por miúdos, que o mundo das ideias de aristóteles existe por si mesmo. Godel assim enterrou Aristóteles em 1931 (e com ele muitos outros, foi uma grande desilusão para Bertrand Russel por exemplo).
Não foi o fim da filosofia. Foi o fim de uma corrente filosófica. Demonstrou praticamente que não existe mundo "ideal" sem mundo real, que o primeiro só tem existência graças ao segundo. Existe um diálogo excelente no livro Cidades Invisíveis do Italo Calvino, entre Marco Polo e Kublai Khan:
"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
– Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? —pergunta Kublai Khan.
– A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra —responde Marco—, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
– Por que falar em pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
– Sem pedras, o arco não existe."
Vejo um outro aspecto sinistro nesta tradição: alguém que se declara particularmente habilitado a pensar os assuntos cuidadosamente e aparece na praça com livrinhos sobre a existência de Deus, serve aos rústicos como eu - a quem o fígado nunca enganou - uma certa indisposição.
ResponderEliminarMeu caro Bruce, não poderia estar mais de acordo consigo! Tenho nojo por todos esses teólogos que não passam de astrólogos disfarçados de filósofos religiosos.
Estou de acordo com o Bruce Lose e o Barba Rija, e também com o Ludwig. "Filosofar" pode e deve cingir-se à criação de ideias fundamentadas, que poderão vir a dar origem a conhecimento se passarem o escrutinio da ciência, mas, nunca poderá a filosofia gerar a cadeia completa do conhecimento.
ResponderEliminarAo contrário do que o António Parente quer insinuar, isto não significa o enterro da filosofia. Pensar não é tudo, mas, é uma parte muito importante do todo. O que não é mesmo importante, é a religião, porque não consegue a transição do pensamento para o real. Talvez no passado essa transição fosse menos importante, mas, hoje, é só lastro. Não serve para nada de útil.
Por detrás de alguns corpos ateístas existem almas de torquemadas modernos.
ResponderEliminarViva a filosofia!
Viva a liberdade de cada um especular livremente!
Salvemos a filosofia dos torquemadas modernos!
Tive um debate interessante com o Desidério no seu blog e chego à conclusão de que não existe grande diferença de posições entre aquilo que eu, e concluo que o Ludwig e Antonio defendemos sobre a matéria. Segundo as suas próprias palavras:
ResponderEliminarBarba: concordo, claro, que a filosofia e a ciência estão em continuidade entre si. Se era isso que queria dizer, ok. Mas isto não quer dizer que a única realidade que existe é a realidade que pode ser estudada cientificamente, se por estudo científico quer dizer estudo empírico. O cientista, tal como o filósofo, está interessado na realidade. Seja empírica ou não. E deita mão a quaisquer métodos que funcionem e que tenhamos boas razões para pensar que funcionam. A discussão dos próprios métodos faz parte da ciência e da filosofia; não adoptamos métodos dogmaticamente previamente, ficando agarrados a eles como lapas. Na verdade, penso que este é o pecado do cientismo: insiste que o que faz a ciência científica é a adopção dogmática de certos métodos vistos como certos, quando na verdade o que faz desses métodos científicos é o facto de termos boas razões para pensar que funcionam para estudar o que estamos a estudar, mas poderemos mudar de métodos se tivermos boas razões para isso.
Não sei se concordo totalmente, mas parece-me razoável. Fiz este pequeno reparo:
Eu, talvez hereticamente, concordo com a premissa de que os problemas não abordáveis empiricamente são pseudoproblemas. Aquilo que distingue a minha posição do cientismo é o entendimento de que, como o conhecimento actual é finito, não temos forma de saber exactamente se são ou não abordáveis empiricamente, a não ser que pela sua própria definição se definam como não abordável empiricamente. Deste modo, a questão de estarmos perante um pseudo-problema ou não é irresolúvel. E é daqui que concluo que métodos mais especulativos, não-empíricos e etc., são perfeitamente válidos como métodos de trabalho, e o cientismo enquanto atitude torna-se inaceitável.
Pode ser oportuno... Para rir ou para chorar.
ResponderEliminarCientismo não é ciência
Mário, sniff, cheira-me a treta.
ResponderEliminarBarba,
ResponderEliminarÉ mais ou menos isso:)
A Igreja Católica teve problemas em insistir com a Filosofia de Aristóteles, que também acreditava que o mais pesado cai com maior velocidade, que o cérebro é só para refrigeração (o ranho seria pedaços de cérebro) e que a mulher tem menos dentes do que o homem (o gajo nunca contou os dentes para dizer isso?!). O problema não é a especulação. A Ciência vive de especulações, quer sejam justificadas ou não, mas que são incentivadas a serem testadas. Lembro-me que no manual que estudei de 1º ano de Filosofia, filósofos diziam que a filosofia antecede a ciência no processo de elaboração de hipóteses. O problema é quando se limita a Ciência ao limitar as especulações possíveis (erro da pseudo-ciência), ou quando não há noção de que as especulações são especulações (erro da pseudo-filosofia; a ambiguidade e obscurantismo é outra característica da pseudo-filosofia). Se não houver o pragmatismo que existe na Lógica e Linguística, ou a noção que as ideias são especulações, passa a haver pseudo-filosofia.
ResponderEliminar«A superstição incendeia o Mundo inteiro; a Filosofia apaga as chamas.» - Voltaire
Achar que as ideias de Aristóteles não são obsoletas é ridículo, ainda tendo em conta como as Teorias da Relatividade e Quântica mostram que o conceito de causa aristotélica é insuficiente, mas é usado em argumentos cosmológicos.