quinta-feira, outubro 23, 2008

Dúvidas claras não são certezas.

O Alfredo Dinis dedicou à minha intervenção uma boa parte do seu post sobre a Jornada Fé e Ciência, o que agradeço. E concordo com a sua apreciação da jornada. Também me pareceu um diálogo produtivo, e tão interessante que não resisto continuá-lo. O Alfredo resume assim a minha intervenção:

«A argumentação de Krippahl partiu de diversos pressupostos insustentáveis:
1- a crença em Deus e a própria existência de Deus é uma hipótese empiricamente testável;
2- as narrações mitológicas presentes em todas as religiões, devem ser submetidas a uma crítica científica;
3- uma vez provada a não sustentabilidade das narrações mitológicas de uma religião, pode-se negar a sustentabilidade de todas as demais narrações dessa religião, incluindo as de carácter factual;
4- termos como ‘ciência’, ‘Deus’, ‘realidade’, etc, não necessitam ser definidos;
5- o termo racionalidade aplica-se apenas à metodologia científica;
6- qualquer pessoa que assuma uma crença religiosa deve necessariamente rejeitar como falsas todas as demais crenças religiosas.»
(1)

Concordo que estes pressupostos são difíceis de justificar. Felizmente, não são os meus. Eu não exijo que a existência de qualquer deus seja empiricamente testável. Simplesmente rejeito as garantias dos crentes que a do seu, ao contrário das dos outros, não é. Também não exijo que considerem a sua crítica científica. Mas se o Alfredo Dinis afirma que as outras narrações são mitológicas é porque as criticou e as considerou indignas de se considerar verdadeiras. O que eu peço aos crentes é que me justifiquem a discriminação que o Alfredo faz no terceiro ponto, quando diz que algumas são de “carácter factual”. Ter fé ou ver numa narrativa uma fonte de inspiração não chegam para justificar tratá-la como factual. Certamente que ao longo da história muitos que criam naquilo que o Alfredo considera mitológico sentiram a mesma fé e inspiração.

Quanto ao quarto ponto, concordo que é preciso definir os termos para que nos possamos compreender. Se ao dizer “deus”, “realidade” ou “ciência” durante a minha palestra tivesse reparado que ninguém percebia o que eu queria dizer teria tentado corrigir o problema. Mas na altura ninguém se queixou, e quando os termos transmitem adequadamente o que se pretende é contraproducente defini-los demais. Platão mostrou-o nos seus diálogos, e já há muita gente que abusa das definições para baralhar em vez de as usar para esclarecer. E o Alfredo admite adiante que a minha intervenção não sofreu por indefinição:

«Creio no entanto que Krippahl utilizou necessariamente todos os conceitos presentes na sua argumentação com um sentido preciso, e nos convidou, consciente ou inconscientemente, a aceitar esse sentido e não outros, sobretudo outros que estivessem em contradição com a sua cadeia argumentativa.»

O que me parece razoável. Se eu digo “crença” no sentido de fé religiosa ou convicção, espero bem que a audiência não julgue que refiro credencial, crédito diplomático, desconfiança ou birra. E se os deixo sem saber o que eu queria dizer ou estou a meter os pés pelas mãos ou estou a fazer teologia.

Mas penso que o Alfredo revelou um problema importante neste diálogo entre ateus e crentes quando escreveu que «O que mais me impressiona em Krippahl é a sua atitude de quem tem tudo claro na sua mente, de quem não tem qualquer dúvida seja sobre o que for, e que em matéria de religião já provou tudo o que havia a provar.» É verdade que eu tento ser, no que digo e no que penso, o mais claro que consigo. Nunca sou tão claro como gostava, mas tento sempre. Mas o que tenho claro na minha mente são principalmente dúvidas e as razões porque duvido. Duvido, por exemplo, que se houver uma religião correcta calhe logo ser a do Alfredo porque o Alfredo não me dá justificações diferentes das que me dão os crentes de outras religiões.

O que é pena, e dificulta o diálogo, é que os crentes confundam clareza com certeza. E como as dúvidas dos ateus são mais claras que as certezas dos crentes, acabam por nos julgar dogmáticos e intolerantes só por duvidarmos das crenças deles.

PS: Neste fim de semana, se tiver tempo, preparo o vídeo com os slides e a gravação da minha palestra para pôr online. A ver se o que eu disse é parecido com o que o Alfredo relata. Espero que não...

1- Alfredo Dinis, Jornada Fé e Ciência

2 comentários:

  1. «Sabes quais é o problema dos sábios? É que eles, com a sua sabedoria, acham que sabem tudo tornado-se arrogantes, mas até um agricultor só com 4ª classe pode nos ensinar muitas coisas.» - parafraseando uma TJ que bateu à minha porta e não gostou que eu desse resposta. Respondi dizendo estava apenas a apresentar o meu ponto-de-vista, tal como ele estava a apresentar o seu ao bater na porta de minha casa, e que eu tinha muita literatura deles.

    Nesse caso a simples discordância faz parecer alguém arrogante - o que faz-me questionar se o outro é humilde -, mas também o rigor e condicionar a aceitação de outras ideias pelo mesmo rigor também faz parecer-nos arrogantes. Num fórum um evangélico disse-me que o evangelho de João era dirigido aos judeus. Mostrei que nesse evangelho havia a preocupação de explicar os termos hebraicos e os costumes dos judeus, que transparece um certo espírito anti-semita que não existe noutros evangelhos e que em textos cristãos sobre os evangelhos é dito que o evangelho de João era destinado aos gentios, não aos judeus. Ele continua com a sua - bastando a sua palavra. Mais tarde eu tinha dito que havia uma contradição nas horas associadas à descrição da crucificação. O tal evangélico disse que o Evangelho de João usa medidas romanas, enquanto que nos outros usa-se medidas judaicas. Só disse isso, e fui verificar a veracidade dessa proposição obtendo a relação entre ambos os casos. Eu próprio provei que eu estava errado nesse aspecto. Mas havia um senão: isso fortalecia a questão anterior. Se o evangelho era destinado aos judeus, para que foram usadas medidas romanas em vez das judaicas como noutros evangelhos? Mais tarde ele acusou-me de arrogância, perguntando se os meu pais sabem o que escrevo, se eles próprios são ateus, etc. Ou seja: eu sou arrogante por não aceitar apenas as coisas pela palavra dele.

    Mas se pensarmos bem, mesmo se alguém é arrogante e acha ter certezas, isso muda a validade do argumento e veracidade das proposições?

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  2. Pedro,

    «Nesse caso a simples discordância faz parecer alguém arrogante - o que faz-me questionar se o outro é humilde»

    Penso que é um dos problemas nos diálogos entre cientistas e crentes. Em ciência estamos habituados a lidar com questões de facto e questionar as hipóteses dos outros. Nas conferências entre cientistas isso é bem evidente (às vezes demais, quando os animos aquecem), mas em qualquer reunião de trabalho levanta-se dúvidas acerca das hipóteses propostas. Faz parte da ciência.

    Em filosofia, pelo menos na filosofia continental na FCSH, a coisa é muito diferente. Tem que andar tudo com paninhos quentes e a falar-se de "segundo os kantianos", "segundo os ..." e assim por diante para evitar que alguém diga que os outros estão enganados. Na teologia e nas religiõies ainda é pior.

    Daí que uma pergunta corriqueira em ciência, como "mas porque é que diz isso?", seja vista como uma arrogância extrema na fé onde perguntas como essa são de mau tom.

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