Se a lei não é cumprida...
... deita-se fora. Foi a sugestão do João Miranda (1), que defende a despenalização do aborto porque:
«A lei dificulta a logística, mas não é suficientemente eficaz para impedir o aborto.»
Quando li isto encolhi os ombros e pensei, bom, não tenho tempo para todas as tretas. Deixo passar. Mas hoje vejo um artigo do João Vasco no Diário Ateísta (2) a subscrever esta ideia. Parece que afinal vale a pena.
Vamos imaginar que no nosso país a lei obriga nove anos de escolaridade para todas as crianças. Imaginemos também que alguns pais tiram os filhos (ou, normalmente, as filhas) da escola antes do tempo e não vão presos. Não me parece que numa situação dessas quer o João quer o João votem a favor de despenalizar esta violação à lei.
Concordo que as leis do aborto e da escolaridade obrigatória são insuficientes para resolver estes problemas. Mas não é por isso que devemos desistir delas. O João Vasco continua (2):
«Na sociedade em que vivemos, parece-me melhor não nascer - nunca chegar a ser um ser consciente, que sente dor e sofrimento - do que nascer filho de uma mãe que não nos deseja.»
Eu por acaso tenho a opinião contrária. Preferia ser adoptado que morto. Mas respeito a opinião do João. Discordo é que se despenalize a morte de um ser humano porque o João acha que a vida desse ser é uma tristeza. A escolha entre adopção e morte devia ser feita por cada um, e não pela mãe ou pelo João. Além disso parece-me que o João subestima os instintos que a evolução nos deu. A maioria das mulheres que quer matar o feto às 10 semanas muda completamente de opinião se, uns meses mais tarde, tiver esse mesmo filho ao colo. Não é seguro que uma mulher que queira abortar vá odiar o filho para o resto da vida se não o fizer.
Mas o João põe o dedo quase na ferida:
«Será que a lei funciona? Será que há menos abortos por ser ilegal abortar?»
Provavelmente. Mas vamos assumir que a lei, sozinha, não funciona. Se a deitarmos fora, o que faremos contra o aborto? É que neste referendo não nos oferecem nada em troca. Muita gente diz ah, e tal, e o camandro, mas no papelinho onde vou pôr a cruz não há mais nada que a lei. Talvez a bóia não me sirva de muito se naufrago durante uma tempestade, mas só a largo se tiver algo melhor à mão...
1- João Miranda, 12-1-07, Para que serve a actual lei do aborto?
2- João Vasco, 20-1-07, Porque tenciono votar SIM
Isto são recalcamentos, eles sim eram para ter sido abortados mas a coisa correu mal e, nasceram.
ResponderEliminarQue comentário esclarecedor este último! Lança muita luz na discussão.
ResponderEliminarO ponto do João Miranda é que a lei tem pouco impacto no número de abortos efectuados.
ResponderEliminarCreio que isso não se aplica às leis do trabalho infantil, pois muitos empregadores, por medo de serem apanhados, não recorrem ao trabalho infantil.
Já para um aborto a lei limita muito pouco quem o quer fazer, pois a sociedade, intuindo que não é errado, tem-se recusado a colaborar na aplicação da lei.
Isto refere-se também aos partidários do NÃO: quase nenhum denunciaria alguém que conhecesse, sabendo que esse alguém tinha infringido essa lei.
O meu ponto é diferente. Eu creio que:
ResponderEliminara) A consequência de uma mãe abortar antes das 10 semanas ou de não ter tido o filho é a mesma: o ser potencial que nasceria não nasce e não vive cerca de 70 anos. Nenhum ser chega a sofrer.
Assim sendo, não vejo que seja eticamente mais errado abortar até essa altura do que ser casta até essa altura - o ser não chega a existir à mesma.
b) Se apenas as mães que quiserem ter os filhos os tiverem, qualquer pessoa tem uma garantia interessante: se nascer, tem uma mãe que o quis, e que não arruinou a sua vida por sua causa.
Eu prefiro um mundo onde todos nascem com essa garantia.
Sei Ludwig que discordas desta abordagem, mas eu realmente tendo muito para o consequencialismo.
ResponderEliminarUma mulher que vai para freira não tem filhos de todo, se a minha mãe tivesse tomado essa decisão, eu não nasceria. As consequências dessa decisão seriam cerca de 70 anos de vida que eu nunca viveria. Não é diferente em ponto nenhum de um aborto.
Creio que a nossa identidade não é definida pelo código genético (os gémeos têm o mesmo) - é definida no nosso cérebro, que tem memórias, recordações, valores, etc...
ResponderEliminarNós consideramos que a morte corresponde ao fim definitivo da actividade cerebral. Eu acho que a vida humana começa DEPOIS do início da actividade cerebral (não sei quanto depois).
A lei tem pouco impacto. Concordo. Mas sem a lei o impacto é menor. O argumento que citaste começa:
ResponderEliminar«Portanto, vamos supor que o feto é uma pessoa»
Se o impacto for apenas de 1%, estamos a falar de 200 a 300 pessoas por ano cuja a esta lei salva.
E o problema da escolaridade que referi não é o do trabalho infantil. É, por exemplo, os ciganos que tiram as miudas da escola quando começa a menstruação. A esses ninguém prende nem multa, mas não se vai deitar fora a lei por isso.
Se a lei é pouco eficaz, então temos que arranjar forma de tornar a lei mais eficaz. Mais educação, mais alternativas ao aborto, etc. Não se torna a lei mais eficaz despenalizando e fornecendo o serviço nos hospitais.
E se uma mulher quisesse matar um filho meu eu certamente a denunciaria.
Concordo que é melhor que os filhos sejam amados pelos pais. Mas não pode ser nem o eleitor nem a mãe a decidir se mais vale morrer que nascer sem ser amado. Isso é uma coisa que não se pode decidir por ninguém.
Finalmente, a questão não é da identidade nem do cérebro, mas do valor da vida. Se tu agora tiveres um acidente e perderes toda a memória do teu passado, ficares uns meses inconsciente, e tiveres que aprender tudo de novo, mesmo assim é errado matar-te: fazê-lo seria privar-te de um futuro que é teu. Mas vou elaborar isso melhor em breve.
Em suma, tu apresentaste um argumento em que assumes que o feto é pessoa, mas que defendes despenalizar porque a lei é pouco eficaz e porque tu julgas que é melhor morrer que nascer sem ser desejado pela mãe (aparentemente ter um pai que gosta de nós é insuficiente para ti ;)
Eu acho que é injustificado votar sim com base nessas premissas.
«Finalmente, a questão não é da identidade nem do cérebro, mas do valor da vida. Se tu agora tiveres um acidente e perderes toda a memória do teu passado, ficares uns meses inconsciente, e tiveres que aprender tudo de novo, mesmo assim é errado matar-te: fazê-lo seria privar-te de um futuro que é teu. Mas vou elaborar isso melhor em breve.»
ResponderEliminarLudwig, acho que é importante elaborares porque esse argumento é muito fraco. E é fraco porque já sabes algumas coisas sobre o funcionamento do cérebro.
Tu sabes que alguém com amnésia perdeu imensas recordações, mas o teu cérebro está cheio de "memória". Como falar, como se mexer, etc...
Tu sabes que uma rede neuronal tem a memória imbuída, e que é impossível destruir toda a memória de alguém sem destruír todo o cérebro.
Se eu perdesse toda a minha memória, «eu» deixava de existir. É tão simples quanto isso.
E mais: é precisamente por essa razão que a morte de alguém é a morte do cérebro e não a degradação total e completa do seu material genético.
Normalmente na amnésia é isso que acontece. Mas imagina que havia um reboot completo e que perdia mesmo tudo. Ficava ao nível de um feto de 10 semanas. Seria aí aceitável matar-te? Penso que não. É por isso que o critério para a morte é a irreversibilidade. Não a identidade, ou a actividade cerebral, ou essas coisas, mas o desaparecimento irreversível de qualquer possibilidade.
ResponderEliminarOutra coisa que já mencionei. Imagina que às 10 semanas implantamos no feto um aparelho que liberta constantemente uma droga que inibe essa actividade cerebral que tu consideras importante. Assim que desligarmos o aparelho ele vai se desenvolver como um ser humano, mas se não o fizermos ele será apenas um conjunto de órgãos uteis para sacrificar e doar a quem precise.
Isto seria ético?
parece-me que se queremos fazer uma análise científica da questão, imaginar histórias irreais de ficção científica não é a melhor maneira de pensar: decerto todos conseguimos imaginar cenários surreais q.b. para tentar destruir o ponto de vista oposto.
ResponderEliminara questão puramente científica diz respeito ao que nos difere dos outros animais (pois o comércio de bifes de vaca não é criminalizado, por exemplo). neste ponto, parece-me que o joão tem razão quando o classifica como actividade cerebral superior (inclusivé o critério para "desligar a máquina" em muitos casos).
questões relativas ao que "tem potencial para um dia ser" ou "ao curso natural das coisas" não têm base científica nem devem ser usadas para legislar. nos dias que correm, em que a clonagem e a fecundação in vitro são aspectos concretos do mundo que nos rodeia, práticamente qualquer célula do nosso corpo tem potencial para um dia ser um nosso clone, e nem por isso passa a ser ético multiplicarmo-nos exponencialmente (isso levaria também ao colapso da nossa civilização). da mesma forma, aquilo que nos caracteriza como seres humanos é mudar o curso natural das coisas. quanto mais não seja somos bastante eficazes em tentar adiar a morte (e isso também não é criminalizado ahah!).
finalmente, uma questão que se gosta tanto de dizer que é "moral" e de "consciência" não pode certamente ser criminalizada: isso é precisamente a linha de pensar de estados totalitários, fascistas ou teocratas, que tentam precisamente impôr uma série de valores uniformes à população. penso que muita gente por aqui também não concorda com muitas posições filosóficas ou éticas e nem por isso nos passa pela cabeça as criminalizar. nesse caso, até pode não se concordar com a IVG até às 10 semanas, mas daí a favorecer a sua criminalização vai um grande passo...
Caro joão vasco o meu comentário não se destinava a lançar nenhuma luz ao fundo do túnel, como se existisse algo milagroso. Reconheço que tinha as botas cardadas calçadas, mas por vezes é preciso, repare que tudo o que se tem falado e escrito em variados sítios, não passam de manifestações de opinião momentania, que ao longo da vida vão sendo moldadas. Na sua opinião (ponto a)o facto de uma mulher engravidar é obra dela própria e a mais ninguém diz respeito, por isso até 10 semanas depois da fecundação não existiu nada, não houve intervenção de ninguém nem interesses entre as pessoas. Eu sou Pai, e considero-me Pai desde a altura da fecundação, e sinto-me responsável desde essa altura, que eu saiba o tango dança-se a dois, pois não podemos considerar as outras formas de engravidar para esta questão. Essa é uma forma airosa de desresponsabilizar alguém que sabendo o que podia acontecer não se importou com isso, e se acontece hoje, garanto-lhe que ainda mais irá acontecer, tendo o exemplo da Polónia (e não me venha falar da religião).
ResponderEliminarNo seu ponto b, fala de um mundo de garantias que não existe. Ninguém pode dar garantias de nada, salvo a morte, essa é de facto garantida mas tanto pode ser aos 70 como diz, como aos 5 ou aos 30.
Na vida real as coisas são muito diferentes da ficção que alguns querem montar.
Cumpr.
Ricardo,
ResponderEliminarSe queremos um modelo descriptivo, então devemos cingir-nos aquilo que observamos.
Mas se queremos um modelo normativo ou prescriptivo fundamentado em regras aplicaveis em geral e não apenas criadas ad hoc para resolver um problema específico, então temos a obrigação de as testar em qualquer cenário concebivel.
Quanto à acusação de impor valores, ou a mãe impõe os seus valores ao filho, ou o estado impõe outros à mãs. Só se a mãe voluntariamente prescindir do aborto é que ninguém impõe valores a ninguém.
João,
ResponderEliminarA questão do valor duma vida (em geral) é complexa e importante, concordo que tem que ser abordada duma forma melhor. Mas pelo que o Ricardo escreveru, acho que vou ter que adiar esse post e tratar do problema dos modelos primeiro.
Mas este aqui em especial dirigia-se ao argumento que tu apresentaste pelo sim: a lei é pouco eficaz, e mais vale ser morto que adoptado. Se assumirsmos que a vida do feto tem valor, essas razões são insuficientes para despenalizar. Se assumirmos que a vida do feto não tem valor, então essas razões (ou quaisquer outras) são desnecessárias. Mata-se como se mata uma mosca ou uma minhoca.
«mais vale ser morto que adoptado»
ResponderEliminarO ponto de vista da mãe, que tem de tomar essa pesada decisão, a de saber se permite que surja um ser consciente no seu ventre, nunca é a seguinte: «se a vida deste ser for miserável, não há problema, ele só vive se for essa a escolha dele - pode sempre suicidar-se se não estiver a gostar da sua experiência de vida». E ainda bem que não é!
As mães quando abortam têm estas questões em consideração. A sociedade em geral tende a nunca denunciar uma mulher que aborta porque, caso a caso, tende a considerar justificável cada vez que uma mulher toma essa decisão.
A leitura desse artigo do João Miranda pôs-me a pensar porquê.
Porque é que a esmagadora maioria dos defensores do não (já sei que te consideras uma excepção) não seria capaz de denunciar uma conhecida que fosse abortar?
Tanto quanto entendo, as pessoas sabem que aquela pessoa em concreto não tomou a sua decisão de ânimo leve. Entendem que a decisão foi tomada em seu nome e em nome do filho (sim!) - em nome de alguém que não existe, mas que se existisse consideravam não ter condições dignas para criar.
Por isso, entendo que formalmente é fácil gritar eugenia e refutar o argumento. Mas numa base formal apenas.
Porque criar um ser é invadir a sua liberdade, logo à partida. Dizer que o ser só está vivo porque o escolhe pode parecer verdade formalmente, mas alguma sensibilidade e experiência de vida mostram que as coisas não são assim.
Eu acho correcto que, enquanto não temos um ser com actividade cerebral, a mãe escolha se tem as condições afectivas para criar o seu potencial filho.
Quanto ao nascimento de um filho indesejado, e o argumento que é perferível nunca existir, e recorrendo a um exemplo não ficcionado conhecido de todos:
ResponderEliminarNo caso que agora aparece em todos os telejornais, da criança que foi entregue a um casal de Torres Vedras(?), fruto de uma relação extraconjugal entre uma cidadâ Brasileira e um Português.
Aparentemente o pai (biológico) rejeitou a paternidade, logo, considerava a criança indesejada.
A mãe, considerando não ter condições para criar o filho, entregou-o a um casal que, não só o tratou como deles, mas inclusivé dispõe-se a ir para a prisão para poder mantê-lo.
Aparentemente o referido pai biológico também deseja o filho, agora.
Assim, temos uma situação em que pai e mãe biológicos rejeitam o filho, que acaba por ser acolhido por uma família que o trata como deles, estando disposto inclusivé a ir para a cadeia para lhe garantir um futuro bom.
Na minha modesta opinião, este exemplo pulveriza definitivamente qualquer argumento nesta linha «Na sociedade em que vivemos, parece-me melhor não nascer - nunca chegar a ser um ser consciente, que sente dor e sofrimento - do que nascer filho de uma mãe que não nos deseja.»
"Quanto à acusação de impor valores, ou a mãe impõe os seus valores ao filho, ou o estado impõe outros à mãe. Só se a mãe voluntariamente prescindir do aborto é que ninguém impõe valores a ninguém"
ResponderEliminarparece-me que há aqui dois pontos distintos:
1) a definição de um estado republicano livre e democrático passa exactamente pela não imposição de valores morais, filosóficos ou religiosos a ninguém. nem o estado aos cidadãos nem estes uns aos outros. a partir do momento em que esta lógica é quebrada, não há limites para se impôr o que quer que seja uns aos outros, em conflito com a própria noção de liberdade. (note-se também que na questão particular da IVG, os estados onde é praticada não revelam qualquer problema colectivo de valores nas suas sociedades.)
2) no caso da IVG a mãe não impõe valores ao "filho" pois exactamente o que temos às 10 semanas não é uma entidade capaz de receber qualquer tipo de valores ou não (não mais que a minha mão esquerda --não sendo criminalizado o acto de eu a decidir cortar-- e certamente menos que o meu cão). como já referi, falar do "que pode vir a ser" não faz sentido: é como eu impôr valores morais às minhas células por decidir que não as vou clonar! na realidade essa lógica rápidamente nos levaria a um cenário tipo minority report em que uma pessoa é presa por um "crime" que realmente não cometeu. (também, no caso particular da IVG, é óbvio que não é isso que pensas em absoluto, pois concordas com a IVG nos casos consagrados na lei, até muito mais que as 10 semanas onde já existe actividade cerebral superior. nesse caso, a tua discussão passa um pouco por uma discussão de retórica, que não acho que seja útil para ninguém no que diz respeito a resolver o problema social da IVG clandestina).
Ricardo,
ResponderEliminarA definição de estado republicano que apresentas parece-me pouco ortodoxa, e mesmo contraditória. Por exemplo, num estado republicano é imposta a todos os monarcas um principio ético e moral que eles não subscrevem. E quando condenamos um violador e condecoramos um heroi é por uma questão ética e moral.
Penso que no ponto 2 fazes uma confusão quando afirmas que não é uma entidade capaz de receber valores. Mas vou tentar esclarecer isso no próximo post
bom, retirada do contexto qualquer afirmação pode ser contraditória quanto se quiser. no que se está aqui a discutir, "imposição" siginifica óbviamente "criminalização". que eu saiba, uma pessoa não recebe uma pena de 3 anos de cadeia por ser monárquica... a questão do violador é também completamente distinta: não faz qualquer sentido comparar criminalização de violação e de IVG; são fenómenos completamente distintos, até porque ninguém defende a descriminalização da violação --como também já referi, estados que legalizaram a IVG até às 10 semanas (ou mais, nalguns casos) não mostram quaisquer rupturas profundas nas suas sociedades, resultantes dessa acção. já a legalização da violação teria um efeito completamente contrário no que diz respeito à coesão colectiva da sociedade. não faz sentido discutir um tema, comparando-o com outro que não tem nada a ver e é muito mais grave, por várias ordens de magnitude. é uma comparação irrelevante, e que apenas ajuda à desinformação (quando penso que é precisamente o objectivo contrário a que te propões).
ResponderEliminardaí eu também insitir que nos devemos restringir aos assuntos que estão na mesa para discutir (neste caso, a criminalização ou não da IVG até às 10 semanas) e não posições filosóficas de fundo: mostra a experiência que, numa situação de tragédia pessoal ou familiar, estas são as primeiras a ser postas de parte...
Miguel:
ResponderEliminarO argumento do Ludwig baseia-se no «futuro previsível». Eu e eles temos referido até à exaustão os «70 anos de vida»...
Por isso, o que está em jogo no meu argumento é aquilo que uma mãe acha previsível que vá ser o futuro do seu filho. E ela tem melhores condições que qualquer outra entidade, incluindo o estado, para saber se existem boas condições para ser criado.
Se pode errar, claro que sim.
Em teoria até é possível conceber um caso em que se salve a vida de alguém por tentar enevenar esta pessoa, e não é por isso que vamos deixar de achar as tentativas de envenamento erradas.
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Eu acho que o argumento da pessoa em potência é mau porque não vejo como deixar de aplicar essa lógica à contracepção.
O último artigo do Ludwig sobre o abismo ainda tornou mais claro este ponto.
Uma mulher que vai para freira sabe que é quase impossível que vá ter filhos, e que uma mulher em média tem cerca de dois filhos. A decisão de ir para freira MATA duas pessoas.
Nos termos do exemplo do abismo a distinção também não me parece assim tão relevante: se eu souber que as mulheres ruivas são cegas e tendem a atirar-se por acidente, e não incorro em qualquer risco para as salvar, parece-me algo eticamente muito grave optar duas vezes por me recusar a ajudá-las. Por acaso essa atitude é considerada CRIMINOSA, e não acho mal que assim o seja - é um homocídio por omissão.
Sinceramente não me parece que seja esse o caso das freiras todas.
Ou, a bom ver, de toda a gente, pois obviamente pode sempre ter mais filhos do que aqeles que tem: as mulheres andam todas MUITO longe do seu limite biológico.
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Mas se isto mostra que o argumento dado contra o aborto também se aplica à contracepção, temos de entender porque é que esse argumento é errado (e se realmente o é...).
Se fosse correcto, teríamos de ser coerentes e ser CONTRA a contracepção. E não digo subscrever a posição da igreja: teríamos de considerar as freiras umas assassinas e olhar a castidade dos padres com desconfiança, mas teríamos de concordar com a igreja na homofobia e na aversão a qualquer método contraceptivo, bem como na aversão a qualquer forma de castidade.
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Porque é que, pelo contrário, nós valorizamos a contracepção? Porque é que valorizamos o planeamento familiar responsável?
Foi este pensamento que me levou à posição que tenho.
Os partidários do Não podem todos defender (e todos os que contra-argumentaram o têm feito!) que o amor e as condições que a mãe sente que tem para oferecer são quase irrelevantes para a vida futura do seu filho. Mas felizmente esse delírio (peço desculpa) não é coerente com a sua visão do mundo - em geral valorizam a contracepção porque pensam desta forma: um casal deve providenciar condições para os filhos que pretende ter, e deve abster-se de ter filhos se não lhe puder propiciar tais condições.
Notem que isto é algo com o qual o sim e o não concordam. Mas tudo o que os partidários do não têm escrito, às vezes horrorizados, sobre aquilo que escrevi, contraria isto.
Nunca se sabe se mesmo com poucas condições, a criança vai ser feliz. Então porque é que achamos que se um casal não pode dar condições, não deve sequer conceber? Devíamos achar que são assassinos caso não o façam, que se não querem ter o filho o dêm para adopcção, que se o filho for ter uma vida miserável tem sempre a escolha de se matar.
O meu ponto é que é eticamente CORRECTO um casal não ter o filho se não condições para isso. Essa decisão deve ser tomada quanto antes, será melhor que o seja antes sequer da formação do ovo.
Mas na nossa sociedade sabemos que muitas vezes a decisão não pode mesmo ser tomada antes. Sabemos porque vemos que é assim.
o argumento do potencial não distingue entre estes dois casos - o aborto e a decisão de não conceber. Por isso teremos de ir procurar aquilo que define um indivíduo em outro lado: não pode ser a questão potencial.
E a mim parece-me que a definição do material genético não é ago que se possa dizer que define uma pessoa. Cartamba, os gémeos têm o mesmo material genético, são pessoas muito diferentes.
O que nos define, o que quer que seja, está relacionado com a actividade cerebral. Com o seu fim definitivo surge aquilo que consideramos a morte. Faz sentido que seja com o seu início que podemos começar a falar em vida.
«vida humana», claro!
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