quarta-feira, janeiro 03, 2007

Cópias, ficheiros, e formatos

Tenho debatido com um/a leitor/a deste blog (kkk) alguns problemas dos direitos de autor sobre conteúdos digitais. Para não ficar a conversa enterrada em comentários antigos, vou aqui dirigir-me a duas questões que kkk levantou. Primeiro:

«Tendo um sistema em tudo idêntico à Internet, mas com a diferença (particularidade) que só poderia ligar duas pessoas. [O] que dirias se essas duas pessoas, através de um programa P2P, trocassm um ficheiro mp3, ripado de um CD com direitos de autor?»

Esse sistema já existe. É o modem. Eu diria ser inaceitável qualquer forma de monitorização telefónica em massa com o intuito de impedir que se envie uma música com um telefonema. Tem muito mais valor a liberdade de expressão e o direito à privacidade que o presente esquema de subsidiar artistas pelos direitos de autor. Recentemente um tribunal francês anulou um processo de violação de direitos de autor por julgar ilegítima a investigação por parte das associações de direitos de autor (1). A monitorização agressiva de milhões de pessoas por parte de entidades privadas só é aceitável se for previamente autorizada como parte duma investigação oficial, pois é contrária às leis europeias de protecção de privacidade e de dados electrónicos.

Legalmente, a situação está confusa. Uma decisão do tribunal supremo alemão deu a Holger Voss (2) o direito de exigir a eliminação dos seus registos de acesso à internet à empresa que lhe presta este serviço. Por outro lado a directiva europeia de retenção de dados vai em breve obrigar estas empresas a manter os registos durante vários meses. Mas se for preciso escolher entre o Quim Barreiros e a liberdade de expressão penso que não há razões para hesitar.

Outro problema é a arbitrariedade da codificação de conteúdos digitais. A proposta de kkk foi manter um registo dos formatos de ficheiros:

«O caso, conceptualmente, é simples, posso pensar numa marca no ficheiro que me dirá qual a codificação, e consequentemente saber com rigor como ler, de forma a saber o que o criador criou. [...A] implementação técnica será para os informáticos, tenho a convicção que é exequível.»

Não é. Para dar um exemplo, estou agora a escrever um pequeno programa para me ajudar a corrigir os trabalhos dos alunos. O programa têm várias partes (classes) com a informação de cada aluno, enunciados, folhas de presença, resoluções, respostas dos alunos, classificações, e assim por diante. Cada uma destas partes grava a informação com formatos diferentes (é informação diferente), e os ficheiros que o programa gera são sequências de blocos com diferentes formatos e tipos de dados. Se eu tivesse que documentar isto tudo e registar cada formato com uma autoridade central para obter as marcas correspondentes nem em 2008 tinha os trabalhos corrigidos.

Além disso é completamente inútil. Regista-se o formato de ficheiro “lista de números”. Este guarda uma sequência qualquer de números entre 0 e 255. E pronto. Com isto já se manda o que se quiser, seja música, vídeo, ou fotos de mulheres despidas. O problema inescapável é que qualquer ficheiro é somente uma sequência de números. Um ficheiro digital não é nem música, nem texto, nem vídeo. Isso são coisas que nós fazemos com os números. Um exemplo trivial: saquem uma música da net, abram com o Windows Media Player, e desliguem o som. Nenhum artista criou essa animação que estão a ver. Está a ser gerada por uma sequência de números que, enquanto números, não tem dono. Estão a violar direitos de autor? Quem tem direitos sobre a música que não estão a ouvir vai dizer que sim. Eu digo que é treta.

1- Crampton, Herald Tribune, 21-12-06, French court favors personal privacy over piracy searches
2- Out-Law, 8-11-06, German court says customers can order deletion of IP logs

7 comentários:

  1. Caro Ludwig:

    Não percebi muito bem o contexto em que se insere esta discussão. Mas na minha perspectiva, a contradição não está entre os direitos de autor e a tecnologia digital mas sim na noção irracional de "propriedade intelectual" que pressupõe que as ideias podem ser exclusivas de alguém, podem ser detidas e compradas por um indivíduo como se fossem uma casa. A contradição é entre informação e propriedade. E isso antecede em muito o surgimento do primeiro ficheiro digital. A informação é intangível, não sendo passível de ser apropriada por alguém como a terra ou o capital. A partilha intelectual não priva o criador da informação. A originalidade não brota por inspiração do cérebro do autor, mas sim de um legado intelectual ao qual ele vai beber. A raíz dessa associação errónea entre ideias e propriedade remonta ao romantismo do século XVIII, com o dealbar do capitalismo industrial. A tecnologia digital apenas demonstra com toda a transparência esse logro. Porque a informação quer ser livre. Este comentário é um remix de A Hacker Manifesto de McKenzie Wark.

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  2. Caro Miguel,

    Concordo que o problema é a distinção entre informação e a sua exressão material. Mas surge no conteúdo digital por neste ser impossível distingui-las. O conteúdo do ficheiro digital depende totalmente da forma como é interpretado, e por isso nem é uma música nem uma imagem nem nada que não uma sequência binária.

    A função inicial do copyright era regular a concorrência no mercado atribuindo direitos sobre a reprodução de bens materiais específicos: livros, discos, etc. A reprodução privada para uso pessoal era irrelevante, por ser difícil e dispendiosa, e a actividade comercial podia ser controlada controlando essas expressões materiais.

    Com o conteúdo digital a reprodução privada é acessível a muitos e não há nada de específico sobre o qual incidir o tal direito de cópia. Não podem especificar que sequências de bits são as suas, pois pode-se codificar a mesma informação numa sequência qualquer (com um password, por exemplo).

    Nem a noção de cópia faz sentido no conteudo digital. Para transmitir o 10 posso transmitir o 5 a alguém que tem um algoritmo que soma 5. Agora o 5 é cópia do 10. Absurdo, mas é isto que se passa com o copyright digital.

    Em suma, o copyright funcionava um pouco mal sem o conteudo digital, e sempre houve uma guerra entre os que têm e os que não têm -- basta ver o que acontece sempre que os bonecos da Disney estão quase a passar para domínio público. Mas com o conteúdo digital isto simplesmente não funciona. Não se pode dividir o conjunto de números inteiros de forma atribuir direitos de cópia de uns números a umas pessoas e de outros números a outras.

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  3. Em suma, o copyright funcionava um pouco mal sem o conteudo digital, e sempre houve uma guerra entre os que têm e os que não têm -- basta ver o que acontece sempre que os bonecos da Disney estão quase a passar para domínio público. Mas com o conteúdo digital isto simplesmente não funciona. Não se pode dividir o conjunto de números inteiros de forma atribuir direitos de cópia de uns números a umas pessoas e de outros números a outras.

    Penso que estamos a falar da mesma coisa. Com a possibilidade ilimitada de recombinação e reapropriação que a tecnologia digital oferece, a noção de obra acabada deixa de fazer sentido. Um trabalho é sempre um "work in progress". A artificialidade da separação entre "autor" e leitor/ouvinte é, por isso, desmascarada. Mas a questão é que os direitos de autor sempre foram uma tentativa de impor limites e tornar escasso aquilo que por sua natureza não o é: a informação. Até há quatro décadas, os constrangimentos físicos dos suportes materiais analógicos ajudavam a preservar os interesses dos detentores dos direitos. Mas com a digitalização, a informação revela a sua própria essência enquanto abstracção e expressão de uma virtualização - algo que existe em potência e que apenas pode gerar algo criativo se estiver acessível.

    Existe uma tradição muito antiga de artistas que contestaram os direitos de autor, invocando os benefícios do plágio e da arte colaborativa e denunciando o mito do génio individualista: Lautreámont, o movimento Dada, os situacionistas, etc.

    Parece-me que o importante é discutir o que é essencial: os direitos de autor estabelecem um regime de monopólio que exclui o usufruto público da cultura e do conhecimento. Atentar no aspecto da tecnologia digital é desviar-se do que importa na questão da "propriedade intelectual"

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  4. Sim, concordo, mas dava-lhe um spin um pouco diferente.

    A arte sempre foi mais colectiva que individual, e em alguns casos isso era mesmo assumido explicitamente (e.g. os blues). As coisas mudaram quando se tornou possível distribuir em massa livros, discos, filmes, etc.

    Para aproveitar essa possibilidade restringiu-se a criatividade dando mais poder aos distribuidores, pois sem financiar as fábricas, cinemas, transportes, lojas e afins não se tirava tanto proveito da criatividade artística.

    O problema foi que se vendeu o copyright como sendo para proteger o autor (até lhe chamam isso por cá), quando é para financiar o distribuidor.

    Agora demos a volta. A distribuição é cada vez mais fácil e não precisamos de sustentar os distribuidores desta forma. Concordo contigo que deviamos voltar a um esquema mais permissivo que fomentasse mais a criatividade. E é verdade que é a tecnologia digital que permite isso por permitir distribuição a custo zero.

    Devemos acabar com os direitos sobre CDs e livros por já não precisarmos de discográficas ou editoras? Diria que sim, em grande parte os benefícios do copyright nesses media não justificam os custos.

    Mas isso é uma questão de custo contra benefício. A questão do copyright em conteúdo digital é fundamentalmente diferente. Neste meio não se consegue dar direitos sobre uma expressão particular de uma ideia porque é tudo arbitrariamente codificado como sequências de números, e qualquer sequência pode ser usada para reproduzir qualquer outra.

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  5. A propósito da protecção dos conteúdos digitais, especialmente os audiovisuais, vale a pena ler este artigo sobre o Windows Vista:
    http://www.cs.auckland.ac.nz/~pgut001/pubs/vista_cost.txt
    Para os mais distraidos, parece que este novo sistema operativo, que não vem trazer nenhuma melhoria sobre os antigos(descontando umas janelinhas em pseudo 3D), prepara-se para tomar de assalto a distribuição dos conteúdos multimédia.

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  6. Estou confiante que daqui a uns tempos o pessoal vai olhar para o DRM como olha agora para as calças boca de sino...

    Eu tinha uma ideia que o Vista ia implementar DRM desta forma, mas não conhecia os detalhes. Esse link deu um jeitão para reforçar a minha decisão de nem mexer no Vista com um cabo de vassoura :)

    O mais engraçado é que tudo isto depende de um sinal que indica que o conteudo é protegido. Não consegui encontrar agora, mas aí há uns tempos vi à venda na net um aparelho para pôr no cabo que sai do leitor para remover esse sinal. A partir daí dá para fazer o que se quiser.

    O resultado é que se queres filmes em HD sem chatices o melhor é ir à net sacar. É já o que se passa com os DVDs (se bem que hoje em dia já muitos leitores ignoram as restrições de região, ou são programáveis).

    Mas no fundo o DRM não tem nada a ver com pirataria ou downloads (para isso não serve). O rendimento que dá é só com os pais que compram videos e jogos caros para os putos que depois os riscam, impedindo os pais de fazer cópias de segurança e obrigando-os a comprar o dvd de novo para acabar com a choradeira.

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  7. Olá,
    Foi lançado recentemente um PABX capaz de integrar-se ao SKYPE, permitindo que telefones comuns possam fazer chamadas para contatos SKYPE ou para outros telefones através da rede SKYPE. As chamadas podem ser realizadas, atendidas, colocadas em espera, transferidas de forma extamente igual as da rede de telefonia convencional. O custo é muito baixo e se paga rápido, rápido.
    Veja: www.safesoft.com.br/pabx/

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