Imbróglio.
Há aqui uma discussão algo confusa mas, como já não tem só a ver com o aborto, vou aproveitar para ver se vou desviando a conversa. Parece que este blog está encravado no aborto...
O João Vasco e o Ricardo Carvalho insistem que o que nós temos de importante é a actividade cerebral. É por isso que o critério para determinar a morte, segundo eles, é o fim irreversível desta actividade. Isto é um erro factual. É muito raro que a morte seja determinada por uma análise neurológica e, quando se faz um diagnóstico de morte cerebral, há ainda actividade no cérebro. O diagnóstico tem que ser cuidadoso precisamente para determinar com o máximo de confiança que aquele paciente que ainda está vivo não tem hipóteses de ganhar consciência.
Mas isso é o menos importante. O que penso que está mais errado com essa abordagem é confundir o que queremos para obter algo com o que nos interessa por si. Ou, como os filósofos gostam de dizer, o que tem valor instrumental e o que tem valor intrínseco.
Eu dou grande valor ao meu cérebro, às minhas pernas, ao fígado. Muito importantes porque me permitem pensar, mexer, e viver. Mas é só isso. Um cérebro que não permita pensar, ter consciência, e sentir não tem interesse. Alguém que consiga fazer isto sem cérebro não precisa de cérebro para nada. Ficção, dirá o Ricardo. Mas demonstra que o que importa não é o cérebro. É pensar, sentir, ter consciência, e ser capaz de agir e decidir. Isso é que vale por si, e não apenas para obter algo. O cérebro é meramente um instrumento para este fim.
E mais ainda que ao nosso presente ou passado damos valor à possibilidade de consciência futura. Preferimos ficar inconscientes agora durante algum tempo para garantir que ficaremos conscientes no futuro, e poucos hesitariam em trocar memórias para salvar a vida. Imaginem a diferença entre ficar inconsciente meia hora e acordar de seguida, ou ter só mais meia hora de consciência de depois perdê-la para sempre. O futuro de um ser como nós não é apenas um potencial hipotético. É algo de grande valor intrínseco, e muito mais valioso que o cérebro ou qualquer detalhe de implementação biológica que só valha pelo que contribui para o que interessa.
"Um cérebro que não permita pensar, ter consciência, e sentir não tem interesse. Alguém que consiga fazer isto sem cérebro não precisa de cérebro para nada. Ficção, dirá o Ricardo. Mas demonstra que o que importa não é o cérebro. É pensar, sentir, ter consciência, e ser capaz de agir e decidir."
ResponderEliminarficção, digo eu! :-)
acho que é importante salientar algumas coisas, que tenho a certeza provávelmente saberás melhor do que eu. um neurónio não é inteligente, mas um número suficientemente grande destes já pode ter essa propriedade. da mesma forma que um átomo não tem temperatura, mas um número suficientemente grande destes já pode ter. é a isso que se chamam propriedades emergentes (que, no caso mais simples da colecção de átomos, se chamam propriedades termodinâmicas). os neurónios "são" as partículas de gás. a inteligência e self-awareness são a temperatura. a analogia não é perfeita (pois não penso que exista uma função de partição que nos permita fazer a passagem neurónio --> inteligência da mesma forma que na física estatística), mas transmite o ponto essencial:
sem as partículas do gás, não faz qualquer sentido falar de temperatura
tu separas as coisas como se fossem distintas. não são. uma não existe sem a outra. a menos que acredites em "almas", mas isso, acho que todos aqui sabemos bem, é treta! :-)
Eu não acredito em almas, mas não há razão para supor que só uma rede de células exactamente como os nossos neurónios podem gerar consciência. Provavelmente muitos outros tipos de suporte material podem servir (nem só o gas tem temperatura).
ResponderEliminarMais relevante aínda, mesmo que por alguma lei que desconhecemos só uma rede de neurónios é que possa gerar consciência, continuam as ser importantes apenas instrumentalmente, por produzirem consciência. A consciência, e não a rede de neurónios, é mesmo assim a coisa importante, e os neurónios só acessórios.
bom, eu concordo que a inteligência e a consciência não são propriedades emergentes exclusivas das nossas células neuronais. acho perfeitamente viável que existam outros suportes físicos (incluindo artificiais). daí usar o termo mais genérico de rede neuronal --- apesar de também aceitar que mesmo a nível matemático a classe de estruturas que produza inteligência e consciência a nível emergente possa ser maior que a "categoria" das redes neuronais.
ResponderEliminaro ponto é tão sómente que as propriedades emergentes não existem sem os sistemas microscópicos que as criam. assim, esses sistemas microscópicos são fundamentais por forma a se poder falar das suas propriedades emergentes: quando estou nú não faz sentido definir a cor da roupa que estou a usar! :-)
Ludwig: eu concordo contigo. O cérebro é irrelevante, o que importa é o algoritmo que lá corre. Simplesmente como actualmente não existe nenhum outro suporte que funcione, sem cérebro não existe esse algorimo. E assim sendo, sem cérebro não há vida humana.
ResponderEliminarMas vou aproveitar a tua ausência de preconceitos com o carbono para repetir um exemplo (que tenho alguma esperança de que seja esclarecedor) que já dei noutro artigo:
«Imagina que eu passo 100h no laboratório a programar uma inteligência artificial que corre num computador de silício. (Bem sei que a arquitectura de von Neumann não é a ideal para isto, mas imaginemos...) Uma vez instalada, corre um algoritmo capaz de pensar, sentir, sofrer. E é capaz de o fazer tal como um ser humano. Um algoritmo que sofrerá com a sua destruição, uma vez que tenha sido inicializado.
Suponhamos que:
A - Antes de o instalar, hesito. Começo a pensar melhor, e decido não o instalar. Mais, destruo o código que fiz.
B - Instalo o código, corro o algoritmo, e destruo-o.
----
Na situação B estamos os 2 de acordo que eu matei. Aquilo que fiz é eticamente errado.
Na situação A, para seres coerente, tens de dizer que eu também matei este ser, e que isso é eticamente errado.
Mas não é.
(Nota que este ser tinha uma personalidade específica, não era um entre milhões de algoritmos possíveis, mas sim um algoritmo concreto)
Gostei desta tua ausência de preconceitos com o carbono, porque esta é uma excelente analogia com aquilo que é o aborto até às 10 semanas (mas existem algumas razões que na verdade podem tornar o aborto mais defensável).»
Acho que o ponto do Ricardo era aquele que frisei: actualmente não existe outro suporte que corra tal algoritmo. Por isso não faz sentido falar em vida humana sem cérebro.
ResponderEliminarA não ser no meu exemplo alucinado ;)
Caro Ludwig
ResponderEliminarColoquei um link para o seu excelente blogue em www.razaomoderna.wordpress.com.
Se colocar o ratinho (presumo que usa rato no seu computador) sobre o seu link verá os comentários elogiosos que faço ao seu blogue.
E veja só: tem espaço para comentar à vontade!
Agora começo a ter mais tempo livre e além do copy/paste do weblog vou ver se encontro umas ideias para publicar. E virei aqui conversar consigo. E continuarei a barafustar se o meu nome for associado ao Diário Ateísta.
Ah! E coloquei também um link para os meus amigos do Diário Ateísta embora com um pequeno aviso para evitar desmaios a pessoas mais sensíveis.
Tenha um excelente Sábado!
Nada é simples no mundo do comentador António Parente...
ResponderEliminarNem no seu, Grande Artista Krip...
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