quinta-feira, janeiro 25, 2007

O valor da escolha.

Há uns dias testei a vossa paciência com as diferenças entre vários tipos de modelos (1). Um modelo que descreva a sociedade Portuguesa do século XIV ou prescreva como se comportar no Paquistão tem que se cingir ao contexto em que se insere. Mas um modelo normativo não é assim. Os princípios e regras com que comparamos alternativas e escolhemos o que é melhor não devem mudar com o sítio ou a época. É tão mau maltratar as mulheres no Paquistão como em Portugal. A escravatura era tão imoral no século XIV como é agora. O fundamento de uma avaliação ética não deve depender de detalhes circunstanciais, como espécie, neurónios, e afins, e como serve para avaliar possibilidades tem que funcione em casos hipotéticos. De nada serve um modelo ético que apenas diga “o bom é o que acontece, e pronto”. Precisamos de um capaz de dizer “se fosse daquela outra maneira era muito melhor”. Afinal é essa a sua função.

Os modelos normativos diferem naquilo que avaliam. Avalio uma refeição pelo sabor, valor nutritivo, custo, efeitos secundários, e assim. Estes critérios aplicam-se da mesma forma a qualquer refeição real ou imaginária, mas não avaliam profissões. Considerar o valor nutritivo de uma carreira no ensino ou o valor profissional da feijoada de chocos é absurdo. Este é o erro que comete o Ricardo Alves quando me pergunta: «Quando é que vais assumir que o teu modelo normativo não valoriza da mesma forma um embrião e uma criança?».

Crianças, adultos, embriões, tudo isso tem valor em muitos modelos normativos. A minha vida tem um grande valor subjectivo para mim, tem outro tipo de valor para quem beneficia do meu trabalho ou gosta da minha companhia. Mas a vida em si não tem valor ético. Por exemplo, apanhar com um raio e morrer electrocutado não é sequer uma questão ética.

A ética avalia escolhas conscientes e voluntárias. Acontecimentos e seres não têm valor ético por si. Apenas são relevantes como parte da escolha: consequências previstas, a responsabilidade de quem escolhe, e as alternativas que foram rejeitadas. Nenhum destes factores isoladamente é determinante, e é errado reduzir a ética a uma álgebra de consequências. Para responder ao Ricardo, o que normalmente terá valor ético diferente é a decisão de abortar e a decisão de matar uma criança, não por diferenças no valor ético do feto ou da criança, mas por diferenças na escolha em si – as alternativas, a consciência do acto, a responsabilidade imputável a quem decide, e assim por diante.

Resta ver como avaliar as alternativas. Muitos modelos normativos são instrumentais, servem para algo. O dinheiro vale porque dá para comprar coisas, as coisas valem porque servem para comer, ter saúde, ou prazer, e assim por diante. A ética é diferente da maioria por ser um fim em si mesmo. Esta liberdade de escolher e agir de forma consciente e respeitando os meus valores e os dos outros é algo que vale pelo que é, e não para obter algo mais. Nem a felicidade. Eu não trocava esta existência ética (de ser consciente e capaz de agir) por uma droga que me fizesse totalmente feliz e inerte.

O que tem valor ético na nossa vida é o conjunto de escolhas éticas que fazemos. Imaginem cada escolha como uma ramificação de várias alternativas, e cada ramo levando a outra escolha, e assim por diante numa enorme árvore de possibilidades. A nossa vida é um trajecto nessa árvore de escolhas, e é nossa não só porque cada um vive a sua mas porque cada um determina conscientemente – eticamente – o seu trajecto. Ao matar o feto a mãe usurpa o trajecto que é do filho. Esse é o valor ético negativo da morte propositada, mas também da tortura, da coacção, de negar educação, de impor crenças, e qualquer outra forma de negar a um ser a possibilidade de determinar eticamente a sua vida de acordo com os seus valores.

O João Vasco levantou o problema do espermatozóide: se é o futuro que interessa, o desse também devia contar. Mas não é só o futuro que interessa. É a decisão que interessa: a selecção consciente de uma alternativa entre várias, tendo em conta os valores de quem decide e de todos os afectados. Mas mais detalhes no próximo episódio.

1- Eu, 22-1-07, Modelos

29 comentários:

  1. não tanto em relação a este post, mas por causa dos comentários que tenho lido acerca da "actividade cerebral" como critério para aferir da vida humana.
    Isto parece-me falso, porque o que determina o fim da vida de uma pessoa em situação de morte cerebral é a irreversibilidade. Se for possível que a medicina reverta esse estado (e pode ser que o venha a conseguir no futuro), ninguém em situação de morte cerebral seria "desligado" ou considerado morto.
    Por isto, parece-me que o critério não resolve o problema, para mim central, de saber quando surge a pessoa humana.
    (desculpem o off topic)

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  2. Ludwig,
    tentanto separar bem os pontos para não haver confusões.

    1. Penso que é desnecessário restringir a ética à avaliação das escolhas. Confere-se valor a bens/objectos/etc. Mas enfim, isto é secundário.

    2. O mais importante é que continuas sem explicar qual é a diferença que vês entre abortar e matar uma criança. Aproximas-te disso quando escreves: «diferenças na escolha em si – as alternativas, a consciência do acto, a responsabilidade imputável a quem decide». A alternativa, em ambas as situações, é não fazer. A consciência do acto, é a mesma para qualquer adulto. A responsabilidade também não me parece diferente. Portanto, parece-me que continuas sem conseguir apresentar razões para tratar de forma diferente um aborto e um homicídio.

    3. Fico à espera do próximo episódio.

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  3. Ricardo,

    Não faz sentido atribuir valor ético a uma pessoa, pois é possível a pessoa desaparecer sem ter nada a ver com a ética. Eticamente, como avalias a morte acidental? Sem uma inteligência responsável por causar um acontecimento o acontecimento não tem valor ético, nem positivo nem negativo.

    A diferença não está na idade do ser que se mata, mas sim na decisão de o matar. Quais as alternativas, quais os impedimentos ou presõies que sofreu quem decidiu, etc.

    Por exemplo, acho que uma mulher que aborta só porque lhe apetece está a cometer algo eticamente mais grave que uma que mata o recém nascido num acto impensado durante uma depressão pós-parto, que pode afectar seriamente o comportamento. Não porque ache que o recém nascido vale menos, mas porque acho que no segundo caso a mulher é muito menos responsável pelo seu acto que no primeiro.

    E é por isso que sou contra que se despenalize o aborto por opção. Essa categoria abrange casos com implicações éticas muito diferentes.

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  4. Ludwig,

    1. Há situações que não têm avaliação ética. A natureza não é boa nem má. Os tsunamis matam pessoas mas não é por maldade nem por más razões. ;) (Esta parte da discussão não me interessa muito.)

    2. Se as únicas diferenças éticas que vês entre o aborto e o homicídio estão nas decisões do agente do acto (concretamente: nas motivações, pressões de outros agentes, grau de maturação da decisão, etc), então terás que defender a equiparação penal entre aborto e homicídio. Não percebo porque resistes a dar esse passo.

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  5. joao:

    O fim definitivo da vida corresponde ao fim definitivo da actividade cerebral.

    Esse exemplo é um exemplo interessante: imagina que um indivíduo tinha perdido o cérebro, mas o seu corpo se mantinha vivo. Agora imagina que tu podias pegar num cérebro de um coelho, e ligar a esse corpo. Tinhas obrigação de o fazer? Seria isso salvar a vida a essa pessoa?

    Não. Ao perder o cérebro, essa pessoa teria morrido, mesmo que o seu corpo pudesse continuar vivo, e até mesmo a ser capaz de passar os seus genes.

    E porquê?

    Porque não são os genes que nós valorizamos. É mesmo algo que se passa no seu cérebro, a sua consciência, as suas recordações, a sua memória, etc...

    (Nota: se alguém perder toda a sua memória, deixa de existir. O cérebro funciona de forma a que a memória está "embuída" no processamento. Não existe cérebro funcional sem memória. Esclarecimento: o cérebro de quem sofre de amnésia está cheio de memória, por isso é que estes sabem falar, andar, etc..., apenas se perderam algumas recordações.)

    O caso é simples: antes do início da actividade cerebral não existe "pessoa", tal como depois do seu fim definitivo também não existe.

    Considerar o ovo uma pessoa resulta em considerar que alguns gémeos são a mesma pessoa.
    Considerar que o importante para definir pessoa é o "potencial" para que assim o torne não só é uma definição auto-recorrente e contraditória, como leva a considerar que cada mulher que vai para freira resulta em algumas mortes.

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  6. Ludiwg:

    Acho enganador que digas que equiparo o espermatozoide a um ser humano potencial.

    Nunca o fiz.


    Não é previsível e logisticamente possível que a cada espermatozoide corresponda uma possibilidade forte de nascer uma pessoa.

    -----

    Mas é previsível e possível que a cada mulher fértil exista possibilidade forte de nascerem várias.

    Quando tu consideras que as escolhas premeditadas e conscientes que levam ao não aparecimento de uma pessoa são eticamente erradas, tens de considerar que uma escolha que uma mulher tome em não ter filhos é eticamente errada.

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  7. «É a decisão que interessa: a selecção consciente de uma alternativa entre várias, tendo em conta os valores de quem decide e de todos os afectados. Mas mais detalhes no próximo episódio.»

    Repara: uma mulher escolhe ter 2 filhos em vez de 6. Essa escolha vai previsivelmente afectar 4 pessoas que não vão nascer nem viver cerca de 70 anos de vida.

    Se acreditas nisto, devias considerar eticamente errada tal escolha.

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  8. Suponho que não estás contra o planeamento familiar. Mas ainda não me confirmaste que essa suposição é correcta.

    Se é o caso, estás a ser incoerente, pois os teus argumentos são válidos para que se considere o planeamento familiar (talvz menos errado que o aborto, mas ainda assim) muito errado.

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  9. Não faz sentido atribuir valor ético a uma pessoa, pois é possível a pessoa desaparecer sem ter nada a ver com a ética.

    Parece-me que estás a fugir à questão. Supõe o caso em que uma mulher toma uma pílula abortiva às 3 semanas, às 12 semanas, ou às 20 semanas. Supõe também que a única razão é porque lhe apetece e que não tem dificuldades económicas e que, segundo as avaliações psicológicas e físicas estará tudo ok. Ignora ainda a probabilidade do embrião se desenvolver por completo nos três casos, ou seja, supõe que para cada um a probabilidade de nascer é 1 (se a mulher não tomasse a pílula, claro). Como classificas a ética da acção nos três casos?

    Ou seja, o ponto é, apesar de todos sabermos que existem outras variáveis que pesam na acção, isso não retira a variável do desenvolvimento do embrião/feto.


    Outra coisa: num post abaixo, e creio que numa discussão abaixo, surgiu a questão de quem tem legitimidade para avaliar a decisão de abortar ou não. Não percebi quem é deve fazer a decisão e com que critérios (pode-me ter escapado algures).


    O fim definitivo da vida corresponde ao fim definitivo da actividade cerebral.

    Neste momento sim. Supõe, no entanto que, como o joão dizia, era possível voltar a ligar a actividade cerebral. A pessoa, quando acordasse seria a mesma? E se fosse a mesma então não se poderia encarar o momento entre as duas vidas como um estado de hibernação?

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  10. «Repara: uma mulher escolhe ter 2 filhos em vez de 6. Essa escolha vai previsivelmente afectar 4 pessoas que não vão nascer nem viver cerca de 70 anos de vida.»

    Dependendo exactamente de com quem e quando a mulher tem relações desprotegidas, há muitos milhões de possibilidades para os seus filhos. Um milésimo de segundo mais cedo ou mais tarde e já pode nascer outro.

    A responsabilidade da mulher para cada um desses milhões de individuos que não nascem é muitissimo pequena. Mesmo imaginando que esses individuos existem em espirito e estão à espera para nascer, nenhum deles tem a legitimidade de dizer que foi por causa dela que não nasceu.

    O caso do aborto é muito diferente. É aquele ali que ela vai matar, e nesse caso ela é 100% responsável pela sua morte, se o decidiu fazer por opção.

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  11. joão (o da letra minúscula),

    o post da actividade cerebral já estava na calha. Concordo inteiramente contigo, e não é nada off topic.

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  12. quanta:
    «Parece-me que estás a fugir à questão. Supõe o caso em que uma mulher toma uma pílula abortiva às 3 semanas, às 12 semanas, ou às 20 semanas. Supõe também que a única razão é porque lhe apetece e que não tem dificuldades económicas e que, segundo as avaliações psicológicas e físicas estará tudo ok. Ignora ainda a probabilidade do embrião se desenvolver por completo nos três casos, ou seja, supõe que para cada um a probabilidade de nascer é 1 (se a mulher não tomasse a pílula, claro). Como classificas a ética da acção nos três casos?»

    Se o resto é igual, são eticamente iguais. Matar é matar, se é hoje ou para a semana que vem não faz diferença.

    Antes dos 5 dias podia-se argumentar que não era ainda um ser diferente, ou tinha ainda um futuro incerto, etc. Mas nos casos que indicas não há diferença ética. Escolheu terminar uma vida de outro ser humano apenas porque quiz, e isso é mau. A única desculpa que pode ter é não saber o que faz.

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  13. «2. Se as únicas diferenças éticas que vês entre o aborto e o homicídio estão nas decisões do agente do acto (concretamente: nas motivações, pressões de outros agentes, grau de maturação da decisão, etc), então terás que defender a equiparação penal entre aborto e homicídio. Não percebo porque resistes a dar esse passo.»

    Essa proposta não faz sentido quando precisamente pelas diferenças nas condições há no nosso código penal cinco crimes diferentes de homicidio (homicidio, homicidio qualificado, homicidio priveligiado, a pedido da vitima, e por negligencia), e mais outros em que se causa a morte mas que não são chamados de homicidio (infanticidio, exposição ou abandono, aborto)

    Esta divisão é razoável visto serem actos diferentes cometidos em condições diferentes, mas não implica que uma pessoa morta por negligência valha menos que uma assassinada por dinheiro.

    Uma grande diferença é que quem mata o feto normalmente não está ciente que está a destruir a vida de uma pessoa. Essa falta de consciência é importante para avaliar a ética do acto -- quanto menos mal a pessoa percebe que está a fazer menos condenável é o acto, eticamente.

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  14. Um aparte:

    Ludwig

    «Esta liberdade de escolher e agir de forma consciente e respeitando os meus valores e os dos outros é algo que vale pelo que é, e não para obter algo mais. Nem a felicidade. Eu não trocava esta existência ética (de ser consciente e capaz de agir) por uma droga que me fizesse totalmente feliz e inerte.»

    Acho que não tem sentido, pois a recompensa da liberdade da-te uma dada felicidade, certo? Se a droga conseguir fornecer-te a felicidade total, terias uma recompensa superior à da recompensa causada pela felicidade da "(...)Liberdade de escolha e de agir(...)"

    Luís

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  15. Logo optavas pela felicidade total,
    (recompensa superior), que é o que regula a nossa escolha.


    Luís

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  16. Ludwig:

    O Joaquim está na sibéria, num campo de concentração qualquer. Existem 2 milhões de prisioneiros, e ele é um deles.

    Um soldado, por capricho diz-lhe: "escolhe um prisioneiro, esse será salvo, os outros vão todos morrer", e o Joaquim amargurado responde: "para mim é igual, não escolho ninguém: eles que morram todos".

    Isso, como era previsível, acontece.

    A recusa do Joaquim em salvar algúem é eticamente errada? Creio que sim.

    No entanto, os mesmos argumentos que deste se aplicam, ele não tem responsabilidades perante ninguém em particular, e os prisioneiros são milhões.

    No entanto, a atitude dele foi eticamente errada. Se em vez de um prisioneiro ele pudesse escolher 6, a atitude dele seria quase revoltante (obviamente abstenho-me de comentar a atitude de quem gere o tal campo....)

    Mas pelos teu raciocínio, a mãe que escolhe ter dois filhos em vez de oito faz uma escolha que resulta igualmente na recusa em "salvar" 6 pessoas (entre milhões perante os quais não tem responsabilidade).

    Volto a insistir: achas que a atitude da mãe que escolheu ter 2 filhos em vez de 8 é eticamente grave?

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  17. Um comentário adicional:

    Obviamente que cada vez que um óvulo é (ou não) fecundado não existem os tais biliões de mortes inevitáveis.

    Não é que estejam diariamente a ocorrer esses genocídios inevitáveis, e que nós estejemos a dar tanto valor à~s migalhas que se podem salvar. Isso é uma visão que desvaloriza MUITO a vida humana.

    E faz sentido que assim seja, porque tu fazes a equivalência ADN possível = pessoa, quando sabes que os gémeos têm o mesmo ADN e são pessoas diferentes.

    Obviamente que o que caracteriza uma pessoa é algo que está no cérebro, e não nos genes. Vê este exemplo: tens um indivíduo, destrois-lhe o cérebro, e dás-lhe um cérebro alheio (de um coelho, por exemplo) garantindo que o seu corpo permanece vivo. Praticamente todo o seu ADN permanece intacto, mas o indivíduo morreu.

    Agora faz o contrário: pegas num indivíduo, e programavas uma rede neuronal de silício para ter um algoritmo exactamente igual ao cérebro desse indivíduo (assumindo que tinhas tecnologia para isso), ligando essa rede a um corpo robótico artificial - vamos assumir que tinhas tenologia para isso. Despois destruias o seu corpo. Fazias a transformação durante o sono, e a memória na máquina era igual. O ADN do indivíduo tinha sumido, e terias feito algo eticamente errado, mas o indivíduo permanecia "vivo".

    A verdade é esta um indivíduo não é um código genético: o "eu" acontece no cérebro, e sem cérebro não há "eu".

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  18. «A recusa do Joaquim em salvar algúem é eticamente errada? Creio que sim.»

    O Joaquim escolheu uma alternativa de menor valor, e, discutivelmente, de menor valor ético (é difícil de dizer nesse caso pois ao recusar participar nessa barbaridade o Joaquim passou a ser um espectador inocente e não um participante responsável, mas podemos ignorar isso).

    Se por eticamente errado queres dizer escolher outra que não a opção óptima, sim, foi errado (assumindo que não era a óptima).

    Mas ninguém pode culpar, condenar, censurar, ou repreender o Joaquim por essa decisão. Dadas as alternativas o que é eticamente mais recomendável é deixá-lo decidir livremente e não o responsabilizar por essa atrocidade.

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  19. Luis:

    «Acho que não tem sentido, pois a recompensa da liberdade da-te uma dada felicidade, certo? Se a droga conseguir fornecer-te a felicidade total, terias uma recompensa superior à da recompensa causada pela felicidade da "(...)Liberdade de escolha e de agir(...)"»

    Só se o valor último para mim o fosse a minha felicidade. O que eu estava a dizer é precisamente que não é. Há coisas que estou disposto a "comprar" a troco de felicidade.

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  20. João (Vasco)

    Estou a ficar baralhado:

    «Obviamente que cada vez que um óvulo é (ou não) fecundado não existem os tais biliões de mortes inevitáveis.»

    A questão que tu puseste prendia-se com o futuro possível de um ser. Isso é uma coisa à qual eu dou valor. Deve-se dar educação a uma criança pelo valor do seu futuro. Deve-se evitar prendê-la a crenças pela mesma razão. Deve ter alimentação decente, e não ser morta às 10 semanas, etc. Tudo pelo valor do seu futuro, principalmente.

    A questão do celibato e contracepção que tu levantaste prende-se com esse futuro. E há milhões de futuros de seres possíveis que são constantemente eliminados quando os gâmetas morrem.

    Se tu achas que não contam porque aínda não existem como seres, dou-te alguma razão. Contam certamente menos, tal como contam menos as gerações vindouras quando enfrentamos problemas como os do ambiente e biodiversidade.

    Mas mesmo que contassem o mesmo a relação entre a decisão e a perda do futuro é muito mais forte quando se decide matar aquele feto que quando se decide evitar relações sexuais e reduzir infinitesimamente a probabilidade de cada um desses descendentes possíveis vir a nascer.

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  21. Quanto ao ADN, é circunstancial. A ética não avalia o ADN. Se o substituirmos por outra coisa qualquer, seja. Um ser consciente e sensível com cérebro de sílicio tem tantos direitos e é eticamente tão relevante como um ser consciente e sensível baseado em carbono.

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  22. Ludwig,

    dizes que «esta divisão é razoável visto serem actos diferentes cometidos em condições diferentes (...) Uma grande diferença é que quem mata o feto normalmente não está ciente que está a destruir a vida de uma pessoa. Essa falta de consciência é importante para avaliar a ética do acto -- quanto menos mal a pessoa percebe que está a fazer menos condenável é o acto, eticamente».

    Bom. Tens aí vários problemas.

    1) Tens um «normalmente» que me parece difícil de justificar. A maior parte das pessoas, dado o nível de informação que existe sobre esta questão, sabe o que é um aborto. Até há cartazes aí pelas ruas, embora eu não tenha a certeza de que são muito esclarecedores. Parece-me o género de coisa que seria insustentável em tribunal. E a questão da IVG começa e termina na questão penal, apesar das muitas digressões.

    2) Falas das «condições» em que se realiza o aborto. Se eu usasse esse argumento para distinguir um aborto de um homicídio, tu acusar-me-ias de circularidade (usar argumentos apenas válidos para esta situação, etc). Aliás, já o fizeste no passado.

    3) Voltamos sempre à mesma: se há «condições» que são específicas da situação de aborto e que justificam que este seja distinguido do homicídio, porque deve existir penalização do aborto?

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  23. «Quanto ao ADN, é circunstancial. A ética não avalia o ADN. Se o substituirmos por outra coisa qualquer, seja. Um ser consciente e sensível com cérebro de sílicio tem tantos direitos e é eticamente tão relevante como um ser consciente e sensível baseado em carbono.»


    Acabaste de me dar um excelente exemplo de como o que importa não é potencial, mas sim o concreto.

    Imagina que eu passo 100h no laboratório a programar uma inteligência artificial que corre num computador de silício. (Bem sei que a arquitectura de von Neumann não é a ideal para isto, mas imaginemos...) Uma vez instalada, corre um algoritmo capaz de pensar, sentir, sofrer. E é capaz de o fazer tal como um ser humano. Um algoritmo que sofrerá com a sua destruição, uma vez que tenha sido inicializado.

    Suponhamos que:

    A - Antes de o instalar, hesito. Começo a pensar melhor, e decido não o instalar. Mais, destruo o código que fiz.

    B - Instalo o código, corro o algoritmo, e destruo-o.

    ----

    Na situação B estamos os 2 de acordo que eu matei. Aquilo que fiz é eticamente errado.

    Na situação A, para seres coerente, tens de dizer que eu também matei este ser, e que isso é eticamente errado.
    Mas não é.

    (Nota que este ser tinha uma personalidade específica, não era um entre milhões de algoritmos possíveis, mas sim um algoritmo concreto)


    Gostei desta tua ausência de preconceitos com o carbono, porque esta é uma excelente analogia com aquilo que é o aborto até às 10 semanas (mas existem algumas razões que na verdade podem tornar o aborto mais defensável).

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  24. Ricardo,

    A pena ser de 0 a 3 anos cobre uma gama grande de possibilidades, e esta discussão demonstra bem que muita gente não se apercebe que, eticamente, matar às 10 semanas ou aos 10 meses é o mesmo.

    «Falas das «condições» em que se realiza o aborto. Se eu usasse esse argumento para distinguir um aborto de um homicídio, tu acusar-me-ias de circularidade»

    São essas condições que já distinguem os vários homicidios. O homicidio por negligência tem uma pena semelhante à do aborto (0 a 3 anos). Podiamos dar ao 140º o titulo "homicidio por aborto" e não mudar mais nada, sem problema.

    O fundamental aqui é que a diferença ética entre estes actos não implica uma diferença no valor da vida da vítima. Por isso não é incoerente punir menos o aborto e o homicidio negligente que o homicidio qualificado, mesmo que as vítimas tenham o mesmo valor.

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  25. João Vasco,

    «Acabaste de me dar um excelente exemplo de como o que importa não é potencial, mas sim o concreto.»

    Eh la'... acabaste de esticar as minhas palavras até rasgar. :)

    O que eu disse é que o importante é a consciência. E, para uma decisão, o importante é sempre o potencial (é a única coisa que podemos decidir, e é também o potencial para aquele feto minusculo crescer que leva a mãe a abortar às 10 semanas... não é certamente o peso no útero que justifica uma medida destas...)

    «Na situação A, para seres coerente, tens de dizer que eu também matei este ser, e que isso é eticamente errado.
    Mas não é.»

    Não... A situação A era análoga à mãe estar a construir conscientemente o feto, como tu estás a correr o compilador ou o que seja. Nessa situação concordo que não seria aceitável exigir à mãe que construa o feto até ao fim.

    O que precisas é de A':

    Fazes um robot muito sofisticado, sem inteligência mas com capacidade de aprender, reorganizar a rede neuronal, e sabes que se o deixares a funcionar ele vai gradualmente ficando consciente até atingir uma consciência equivalente à nossa. Nesse caso não era ético destruires o robot, e era aceitavel pressionar-te para não o fazer (por exemplo, com pena de 0 a 3 anos ;)

    Já agora considera um caso semelhante (A''?)

    Todas as noites o robot tem que se pôr em standby. A rede neuronal muda de estado, e perde a consciência. Todas as memórias são guardadas num disco rígdo. De manhã demora alguns segundos a repôr o estado, carregar as memórias, etc. Seria eticamente condenável destruir o robot mesmo que na altura em que não estava consciente e mesmo que se guardasse o disco com as memórias dele na gaveta. Simplesmente porque isso ia privá-lo do seu futuro de ser consciente.

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  26. Só para deixar claro a distinção que estou a tentar fazer (e que ainda está um pouco incipiente e indistinta na minha mente, por isso não garanto que seja clara :)

    Se para surgir essa IA é necessário tu agires de forma consciente nesse sentido, o futuro da IA é, eticamente, em parte teu também, porque é parte das tuas escolhas. Isso dá-te alguma legitimidade para decidir sobre o seu futuro.

    Se o robot já está a funcionar e vai ser IA sem que necessite de uma intervenção consciente da tua parte (de actos eticamente relevantes teus) o seu futuro, eticamente, já não é teu, é só dele. É por isso menos legítimo que tu o destruas.

    Isto é o que há de mais concreto na ética: a escolha consciente de possibilidades futuras. O presente, que já não podemos decidir, não conta senão pelo seu efeito nas possibilidades.

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  27. «Eh la'... acabaste de esticar as minhas palavras até rasgar. :)»

    Peço desculpas, não era isso que pretendia.

    Mas foi a paga pelo «espermatozoide» :p

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  28. «Não... A situação A era análoga à mãe estar a construir conscientemente o feto, como tu estás a correr o compilador ou o que seja. Nessa situação concordo que não seria aceitável exigir à mãe que construa o feto até ao fim.»

    Não creio que essa distinção seja relevante.

    Imagina que o programador tinha tomado uns comprimidos quaiser, e tinha elaborado todo o código num estado de transe qualquer.
    A sua construção do código não seria consciente, mas isso não alteria em nada a sua legitimidade para correr o código.

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  29. «Fazes um robot muito sofisticado, sem inteligência mas com capacidade de aprender, reorganizar a rede neuronal, e sabes que se o deixares a funcionar ele vai gradualmente ficando consciente até atingir uma consciência equivalente à nossa. Nesse caso não era ético destruires o robot, e era aceitavel pressionar-te para não o fazer (por exemplo, com pena de 0 a 3 anos ;)»


    De 0 a 3?
    Não, eu diria a pena normal de homicídio. Se estás a dizer que ele já é consciente, então estás a matar "alguém".

    O meu exemplo era algo do tipo: fizeste o projecto do robot, agora é só passar do projecto à acção e construír o robot. A construção dura 9 meses. No primeiro mês, juntas alguns circuitos de silício, que vão corresponder a partes importantes do funcionamento do teu robot.
    Procuras um bom Hardware de silício para a tua rede neuronal, mas ainda só tens placas electrónicas que funcionam como as dos computadores actuais.

    Lá para o início do quarto mês, decides pôr a rede neuronal a funcionar. O «Toby», que é o nome que deste a este robot tem uma rede neuronal cujo funcionamento por agora é quase insignificante, mas que, quando o tiver completo será análoga à de um recém-nascido.

    Ao longo dos restantes meses vais acrescentando placas para controlar os diferentes circuitos do "corpo" do robot. Ao fim de 9 meses ele ganha autonomia e já não está na fase de contrução, se bem que ainda esteja um tanto dependente de adultos humanos que o rodeiem.

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    Matar o toby depois dos 9 meses é homicídio.

    Matar o Toby algures entre os 4 e os 9 meses é grave. E tanto mais grave quanto mais perto dos 9 meses.

    Desistir do projecto antes que a rede neuronal comece a funcionar, é diferente. Ao longo desses meses fizeste placas informáticas como as que são usadas nos computadores actuais, não tens nenhum programa "vivo" a funcionar. Desistir do projecto agora é equivalente a não embarcar no projecto planificado em papel. E isso é equivalente a saber que se tinha capacidades de construir um robot como o toby e não o fazer.

    Imagina que depois de projectares o Toby, tu penaas "o toby seria infeliz neste mundo". Será criminoso optares por não o construir?
    E se já tiveres construído algumas placas electrónicas, mas nada relativo á rede neuronal do toby? Será que alguma coisa muda?
    Se entretanto pensaste que o Toby seria infeliz, e tomaste a decisão de não construir a sua rede neuronal, merecerias entre 0 a 3 anos?

    Não creio. Podias estar enganado ao pensar que o Toby seria infeliz, mas creio quye se o pensavas, não devias construir o Toby. Mesmo que jáo tivesses projectado.

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