Factos, valores, e outras tretas.
Para muitos, ser ateu é julgar que Deus não existe. E é verdade que um universo como este convida ao ateísmo. Era mais difícil se tivesse deuses. Mas, como disse Sartre (dá estilo começar uma frase assim), o ateísmo não é se Deus existe ou não. O fundamental do ateísmo é que, mesmo que exista, Deus não faz diferença. Este é um bom exemplo da distinção entre factos e valores.
Pelos meus valores é errado matar um dos meus filhos num ritual de sacrifício. Se o deus de Abraão me bater à porta e pedir que o faça, o meu modelo ético manda-me fazer-lhe um manguito. Mesmo que eu aceite como verdadeira a sua natureza divina e tudo o que vem na Bíblia, isto são apenas factos. Não mudam nada os critérios que sigo para determinar o bom e o mau. Um facto não é um valor, nem mesmo se o facto é Deus.
É certo que a minha descrição do universo depende dos factos, e os meus actos também. Os tais modelos descritivos e prescritivos (1). Se este universo fosse como na família Addams eu dava veneno aos meus filhos e dormiam numa sala de tortura. Mas porque nesse caso isso era bom para eles. Os meus valores e a forma como avalio os factos seriam os mesmos.
Um grande problema na moral religiosa é tentar ser descritiva e normativa ao mesmo tempo. Falha nas duas coisas. É uma má norma porque os critérios de bem e mal dependem de elementos no modelo descritivo, como a vontade dos deuses. E é uma má descrição porque necessita que seja tomado como verdade – incluído no modelo descritivo – aquilo que a norma dita como bom. Uma trapalhada.
Os valores temos que os ir buscar ao subjectivo, e não a elementos de um modelo descritivo incerto. Descartes considerou isto. Como todo o conhecimento pode estar errado, concluiu que a única coisa que não podemos negar é a existência de um eu. E quase que acertou. Falhou só por pensar que o eu é uma coisa, uma substância. Na verdade o que temos de subjectivo é uma acção de consciência. Acontece. Pelo que sabemos é o cérebro que a faz, mas ao longo da vida o cérebro muda, recicla-se, e no final já sobra pouco da matéria original. Não pode ser o mesmo machado se já mudei três vezes a lâmina e cinco vezes o cabo.
Onde quero chegar com isto é que os factos, por si, não implicam valores. Não podemos dizer que algo tem valor por ter actividade cerebral nem que algo é bom porque Deus diz. O fundamento tem que ser subjectivo, e não com base num modelo descritivo do que pensamos ser verdade. E o sujeito ético não é uma coisa, é uma sequência de decisões conscientes, cada uma afectando o futuro seleccionando possibilidades. E na ética o possível e o hipotético pesam muito. O que já está, já está. O que interessa é aquilo que propositadamente fazemos com que venha a ser.
Por exemplo, a energia nuclear levanta um problema ético: beneficiamos agora mas legamos os resíduos radioactivos a gerações vindouras durante milhares de anos. É absurdo dizer que são eticamente irrelevantes porque estão no futuro, são seres potenciais, ou por ainda não terem actividade cerebral.
1- Eu, Modelos
Pra mim a questão da existência ou inexistência de Deus realmente inimporta. Pra mim existe e ponto final (enganam-se aqueles que acham que a indiferença para com a questão é atributo exclusivo de ateus).
ResponderEliminarNinguém, crentes ou descrentes, pode afirmar que a razão esteja ao seu lado.
O que explica a religiosidade ou o ateísmo de uma pessoa qualquer são um conjunto de fatores sociais, psicológicos, históricos, biológicos - e, caso existam deuses, espirituais - que nada devem a noção de razão. Ela, pelo menos da forma como a conhecemos, não pode validar a existência ou inexistência de um divindade transcedental.
Podemos, isso sim, racionalmente, debater coisas como as razões que levam um ateu, dogmaticamente, a acreditar que a razão esteja ao seu lado, ou as razões que levam um religioso a crer mesmo que inserido numa cultura, ou num período histórico, que insiste em oferecer elementos em contrário.
A questão correta é: o que é Deus? É simplesmente uma idéia humana ou um ser independente do homem.
Sim, pois se Deus não existir como entidade autônoma, não será a minha crença em sua existência que o fará existir - nem a descrença de milhões que o destruirão. A verdade não deixa de ser o que é pela crença ou descrença de um indivíduo, um grupo ou toda humanidade.
Para mim, também. Deus(es) não existe(m) e ponto final.
ResponderEliminarEm si, é verdade que pouco importa a sua existência ou inexistência. Como diz o Ludwig, não é pelo facto de existir que os valores éticos de cada um serão moldados.
Mas, já me importa - e muito - que as religiões organizadas tentem impor os seus valores ao resto da populaça. Aí, já me importa.
Diz o Fábio que nem crentes nem descrentes podem afirmar que a razão esteja do seu lado. Desculpe lá, Fábio, mas cada um fala por si. Você acredita em Zeus (com "Z")? Suponho que não. Certamente, terá razões para não acreditar. Agora, experimente e veja se as mesmas razões não são aplicáveis a Deus (com "D").
Mais, você não acha que eu estaria com alguma crise de racionalidade se venerasse fosse o que fosse do qual não existissem quaisquer evidências? Uma bolo de chocolate em órbita à volta de Neptuno, por exemplo.
Tem tudo a ver com racionalidade.
Fábio disse:
"A questão correta é: o que é Deus? É simplesmente uma idéia humana ou um ser independente do homem."
Para mim a questão é: o que faz com que 600 anos após o obscurantismo da Idade Média ainda faça sentido, para alguns, acreditar em qualquer deus?
E a resposta se não tiver a ver com racionalidade terá, certamente, a ver com irracionalidade.
Um abraço.
A questão correta é: o que é Deus? É simplesmente uma idéia humana ou um ser independente do homem.
ResponderEliminarA questão correcta é: como redefinir deus de modo a ficar fora do alcance da ciência e ainda assim convencer as pessoas que tem muita importancia.
Ludwig,
ResponderEliminarespero que não te importes que eu continue aqui a discussão da outra caixa de comentários.
Dizes que «eticamente, matar às 10 semanas ou aos 10 meses é o mesmo». No entanto, também afirmas que «não é incoerente punir menos o aborto e o homicidio negligente que o homicidio qualificado». Ora, o aborto é um acto tão deliberado como o homicídio qualificado. O que é que existe no aborto que te leva a equipará-lo a um homicídio por negligência e não a um homicídio qualificado? Continuas sem ser muito claro a este respeito...
Ludwig,
ResponderEliminarCom o ultimo paragrafo do post estava a ver que não desencrava-va mas lá foi.
Quando você diz que "Pelos meus valores é errado matar...", você refere-se a um conjunto de valores que escolheu ao longo da sua vida, e que lhe foram transmitidos pelas gerações anteriores, tendo aproveitado uns e rejeitado outros e recombinado outros ainda. Veja que em todas as religiões e até no ateísmo, você encontra um leque de diferenças grande, isto graças ao facto de cada um poder pensar por si e fazer a tal recombinação de valores.
Quando você diz "Mesmo que eu aceite como verdadeira a sua natureza divina e tudo o que vem na Bíblia" está a querer colocar-se na posição de crente, coisa que não é possível, porque para isso teria de certeza de alterar alguns valores que tem como seus. Isto soa-me àquela conversa de " imagino aquilo que passaste " quando nunca passámos pela mesma situação.
Aqui não entendi ao que estava a referir-se "mas ao longo da vida o cérebro muda, recicla-se, e no final já sobra pouco da matéria original.", se à física se à consciência.
Para mim os factos levam-nos a adquirir valores, servindo-nos como referencias.
Em relação ao exemplo só não é eticamente irrelevante porque sabemos que faz mal, assim como já aconteceu no passado situações eticamente irrelevantes na altura, e que agora são eticamente condenadas.
Cumpr.
o post anterior foi meu, por erro foi anónimo.
ResponderEliminarKota
«É absurdo dizer que são eticamente irrelevantes porque estão no futuro, são seres potenciais, ou por ainda não terem actividade cerebral.»
ResponderEliminarTotalmente de acordo!
Felizmente vejo poucos a defender tal absurdo.
Eu por exemplo, acho que se os pais consideram que só têm condições para proporcionar uma boa educação e assistência a dois filhos, não devem ter mais. É uma preocupação com os seres humanos futuros que podem sofrer as nefastas consequências de uma despreocupação leviana com o futuro.
Helder Sanches said...
ResponderEliminar"Para mim, também. Deus(es) não existe(m) e ponto final."
Pode não ser assim tão linear. Afirmar que deus não existe é negar a existência do diabo, e este sim, seguramente que existe e está em toda a parte. (Recentemente, Hugo Chavez até o cheirou em Nova Iorque, mas isso é outro tópico...).
A prova que existe: Como justificar que uma instituição que ao longo dos séculos se notabilizou por oprimir, torturar, abusar e assassinar inocentes em nome deus, leva vinte séculos a produzir e albergar pederastas e chega ao século XXI travestida de defensores da inviolabilidade da vida perante a indiferença da humanidade em geral?
Isto só pode ser coisa diabólica, eu diria mesmo que são próprio diabo, não?
Numa tangente, para ajudar a ver que há vida depois do aborto:
ResponderEliminarEsta tua posição "...não pode ser o mesmo machado se já mudei três vezes a lâmina e cinco vezes o cabo" é também subjectiva.
Como exemplo. Na nossa civilização, ocidental, os edifícios são representados pelo material. Se um monumento milenar for destruido totalmente, a sua reconstrução com materiais novos implica uma perca de identidade. Se demolissem a Torre de Belém e a reconstruissem em aço e fibra de vidro, ninguém iria defender que aquela era a mesma Torre de Belém.
No entanto, no Japão, um monumento é identificado pelo espaço que forma. Templos antigos, construidos em madeira, já arderam e foram reconstruídos inúmeras vezes, mas para eles continuam a ser o mesmo monumento.
Por isso, se considerarmos a primazia da função sobre a matéria, o machado continua a ser o mesmo, assim como o cérebro continua a ser o mesmo.
Miguel:
ResponderEliminarTotalmente de acordo.
Ludwig:
Aproveito o ponto do Miguel para te responder a uma pergunta que fizeste, e que apenas por lapso não respondi. Não me lembro das palavras exactas, mas tinha a ver com um robot com uma cosnciência análoga à do ser humano, mas em que a memória não estava embuída no seu processador e sim num determinado suporte exterior. Quando esse robot estivese inconsciente seria destruído, mas não sem antes adquirir todos os dados relativos à sua memória. Depois fabriar-se-ia um corpo novo com todas as características do primeiro, e igualavam-se as memórias.
Teíamos morto alguém?
Que efeito é que isto teria no robot? Ele acordava a via que tinha um corpo diferente. Como fizemos uma coisa destas contra a sua permissão, foi eticamente errado o nosso acto - mas o robot continua vivo, felizmente.
Já agora, eu dou um exemplo ilustrativo:
ResponderEliminaro Dr. Frankenstein concluiu o seu projecto. Apenas aguarda pelo relâmpago para que Frankenstein ganhe vida.
Mas ele começa a hesitar. Será que Frankenstein será feliz num mundo que o rejeita? será que ele será feliz num mundo que tanto valor à aparência? Num mundo onde não tem as ferramentas para triunfar? Etc..
O dr. Frankenstein ganha muita preocupação por um ser potencial: o próprio Frankenstein.
Imaginemos duas situações diferentes:
A- É tarde, e nessa noite é quase certo que vão haver relâmpagos e Franknsein acordará. Mas o Dr. desiste do projecto. Desmonta tudo, e Frankenstein nunca será activado e nunca ganhará vida.
B- O Dr. espera pelo relampâgo. Quando Franlkenstein acorda ele dá-lhe um tiro, matando-o.
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Na tua visão, ambos os actos têm praticamente o mesmo valor ético. Em ambos a vida potencial de Frankenstein foi destruída. Ambos pela mesma motivação: não criar alguém que vai sofrer.
realmente em A existe menos sofrimento, mas para esse efeito peço que imagines que na B o Dr disparou sobre um músculo que provocaria um adormecimento indolor de Frankenstein, ao que seguiria a sua morte.
Repara, para mim, o Dr mata na opção B e não na opção A. Para ti ele mata Frankenstein em ambas as opções.
Digo mais, eu poderia considerar a opção A eticamente correcta. Acho que muita gente o faria.
Mas tu acharás que a opção A é assassínio.
(continua)
Bem sei que tu deste o argumento segundo o qual quem "desenhou" um determinado ser tem mais direito de o matar, que tornaria a opção A e B menos graves.
ResponderEliminarEu discordo desse argumento e acho que a opção B é mesmo tão grave quanto qualquer assassínio.
O teu argumento levado ao limite quereria dizer que se um pai, num mundo imaginário onde a manipulação genética fosse possível, tivesse escolhido o ADN do seu filho, depois seria muito pouco grave que o matasse, mesmo pouco após o nascimento.
Não o creio: seria assassínio da mesma forma, e nem sequer encontro uma grnde diferença entre a gravidade desse acto e a de outro assassínio qualquer.
Mas vou ponderar esse teu exemplo e dar um exemplo que espero esclarecedor.
Eu sou perito em contruír placas electrónicas. Sou perito em robótica, e já tenho alguma experiência na produção de robots.
ResponderEliminarUm dia recebo em casa um projecto. Não sei quem mo enviou, é anónimo. O projecto é tão complexo que ao início eu nem percebo o que é.
Depois eu vejo "caramba! Isto tem uma inteligência artificial, sentimentos, consciência, sente prazer, dor. É uma consciência análoga à de um ser humano".
Eu sei que posso realizar o projecto, e deixar que este ser exista.
Mas depois penso que pode não ser boa ideia. Acho que ele vai ser descriminado e infeliz neste mundo. Vai tornar-se um rato de laboratório, vai sempre ser visto como inferior, etc...
A - Eu opto por não concretizar o projecto.
B - Eu concretizo o projecto. Chamo-lhe António. Quando "ligo" o António, ele porta-se como um recém-nascido. No sono, sem que se aperceba, destruo-o.
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Já viste Ludwig que pelos teus critérios as opções A e B são eticamente equivalentes?
Mas se houvesse boas razões para acreditar que este ser seria infeliz, a opção A seria eticamente correcta.
Para seres coerente tens de ver a opção A como um assassínio.
Para seres coerente tens de considerar que assim que eu recebo o projecto e souber que tenho capacidades para o concluir, tenho a obrigação moral de o fazer, mesmo que as minhas razões para acreditar que o ser será infeliz sejam muito boas. Se não o fizer, estou a matá-lo.
Esta analogia tem muito por onde explorar...
Ricardo:
ResponderEliminar«espero que não te importes que eu continue aqui a discussão da outra caixa de comentários.»
Não me importo, mas se calhar era melhor organizarmos uma listinha entre os interessados e discutir por emails. É que eu só recebo notificações por email de alguns comentários, e assim pode-se-me escapar alguma coisa...
«Dizes que «eticamente, matar às 10 semanas ou aos 10 meses é o mesmo». No entanto, também afirmas que «não é incoerente punir menos o aborto e o homicidio negligente que o homicidio qualificado». Ora, o aborto é um acto tão deliberado como o homicídio qualificado. O que é que existe no aborto que te leva a equipará-lo a um homicídio por negligência e não a um homicídio qualificado? Continuas sem ser muito claro a este respeito...»
Não o equiparo a um homicidio negligente, no sentido de dizer que as circunstancias são iguais. Só disse que o artigo intitulado Aborto no código penal podia chamar-se Homicidio por Aborto e não era preciso mudar mais nada, porque já há outro homicidio com penas semelhantes.
Eu acho que alguém que dá um tiro num adulto, de propósito, está intencionalmente a matar uma pessoa. Alguém que mata um feto de 10 semanas de propósito provavelmente não sabe que está a matar uma pessoa.
Outro exemplo: acho que matar um chimpanzé ou um humano é eticamente o mesmo. Mas só defenderia uma lei que os punisse da mesma forma se pudesse assumir que quem mata o chimpanzé percebe que é errado. Se não sabe bem o que está a fazer justifica-se (eticamente e pragmaticamente) atenuar o castigo.
Fábio e Kota,
ResponderEliminarPenso que a vossa questão é semelhante.
«Pra mim a questão da existência ou inexistência de Deus realmente inimporta» (Fábio)
«Para mim os factos levam-nos a adquirir valores, servindo-nos como referencias.» (Kota)
Ambos dizem que é importante para vocês. Esse é o primeiro ponto: nenhum facto é importante por si. Quanto muito é importante para alguém.
Ora os nossos valores são os critérios pelos quais decidimos o que importa para nós. Se um facto importa para nós é porque um valor nosso assim o determina. Por isso é que digo que o facto, por si, não dá valores, porque são os valores que determinam se o facto importa.
É claro que o que vivemos vai alterando a nossa maneira de ser. Alguém que seja treinado a temer um deus não pode senão dar-lhe importância, emocionalmente, mesmo que seja um deus imaginário. Mas eu estava-me a referir a valores éticos, e não a meras preferências pessoais.
A distinção é que para a ética nós exigimos valores que sejam universais e independentes das manias de cada um. Se bem que é verdade que os factos da vida nos vão moldando e afectando, temos que tentar ultrapassar isso quando queremos formas de avaliar (valores) o que é eticamente bom ou mau.
João Vasco,
ResponderEliminar«Eu por exemplo, acho que se os pais consideram que só têm condições para proporcionar uma boa educação e assistência a dois filhos, não devem ter mais. É uma preocupação com os seres humanos futuros que podem sofrer as nefastas consequências de uma despreocupação leviana com o futuro.»
Nesse caso serás contra o aborto por opção da mãe, e mais a favor do aborto quando justificável pelas condições sociais, empenho de qualquer um dos progenitores, possibilidades de adopção, etc.
Com isso já estou mais de acordo :)
Miguel:
ResponderEliminar«Por isso, se considerarmos a primazia da função sobre a matéria, o machado continua a ser o mesmo, assim como o cérebro continua a ser o mesmo.»
Yup. Era mesmo isso. Por isso é que como valor ponho a consciência (o acto) e não o cérebro (a matéria). É que o cérebro só mantém a identirade se deres primazia àquilo que ele faz, e o valor deve ser o fundamental e não o derivado.
João,
ResponderEliminarO exemplo do robot é equivalente a desmontá-lo, substituir peças, e montà-lo de novo. Eticamente, é como pôr uma pessoa inconsciente, fazer uma operação, e pô-la consciente de novo sem efeitos nefastos. Se feito contra a sua vontade é condenável, mas não assasínio.
O exemplo do Frankenstein é enganador, porque na história ele não sabia se aquilo ia funcionar, e os relâmpagos são imprevisíveis. Mesmo inconscientemente nós estamos a entrar com isso em consideração.
Mas imagina que o Dr. Frankenstein criava o monstro num estado embrionário, numa incubadora. O monstro demorava 24 horas a crescer e ficar consciente, mas às 23h e 55 minutos o Dr. arrependia-se e matava o monstro. Eticamente, não era diferente de o matar às 24h e 5 minutos, assumindo que o matava sem sofrimento em ambos os casos.
O ponto principal é que o Dr está deliberadamente a interromper o processo de desenvolvimento do outro ser que tem um futuro consciente. No teu exemplo isto é confuso porque o futuro é muito incerto e o monstro não está activamente a criar o seu esse futuro.
João,
ResponderEliminarDesta vez robot que tu constrois:
«Já viste Ludwig que pelos teus critérios as opções A e B são eticamente equivalentes?»
Não. São muito diferentes. No cenário A a existência do robot depende de tu agires voluntariamente de uma forma específica: construi-lo.
No caso B, se tu de repente ficares inconsciente e deixares de existir como sujeito ético (ficas em coma permanente, por exemplo), ele continua a existir. O futuro do robot neste caso é eticamente dele e não teu, porque não precisa do teu contributo de sujeito consciente.
Por isso destruires o robot em B é eticamente muito mais grave que não o construir em A.
Eu não vi o filme do Frankstein, para dizer a verdade, apenas tenho umas noções daquilo que a cultura popular vai repetindo, e não pretendi ser enganador, não sabia se ele precisava do relâmpago (como no "regresso ao futuro") por isso postulei que sim.
ResponderEliminarMas não seja por isso: esqueçamos o Frankenstein e concentremo-nos no robot.
Aquilo que dizes sobre o Robot é notável!
ResponderEliminarRepara: eu pensei que para ti o que importava era a escolha: e a verdade é que se fazes a escolha de NÃO produzir o robot, ele nunca viverá os seus, sopunhamos, cerca de 70 anos de vida. Por outro lado, se fazes a escolha de o matar uma vez tendo sido accionado, ele também não viverá esse tempo. A diferença não é grande.
Foi precisamente este o argumento que deste no debate em que me fizeste ficar muito indeciso quanto ao meu voto.
Mas tua agora dizes que é diferente. Dizes que é muito diferente. Eu estou de acordo contigo, porque depois de reflectir muito cheguei a essa conclusão: é diferente, é muito diferente.
E por isso voto SIM.
E não penses que uma gravidez não implica um grande esforço (como implicaria a construção de tal robot).
É consciente? Bem, duvido que uma grávida em coma desde a concepção consiga ter algum filho, mas nem sequer é essa a questão.
A questão é que existe uma diferença entre activamente por fim a uma vida consciente, e decidir que essa vida consciente nunca surgirá (mesmo que o seu surgimento estivesse nas nossas mãos). Existe uma grande diferença que tu reconheces.
E é nisto que eu gostaria que pensasses.
Nota: no debate não me fizeste ficar indeciso quanto ao voto, ao contrário daquilo que escrevi.
ResponderEliminarFizeste-me ficar indeciso quanto à ética do aborto, que é diferente. Depois com as incertezas quanto à variação do número de abortos e à informação de que o número de mulheres que morrem por ano devido a esta lei é de 8 (e não muito mais, como eu pensava) é que eu fiquei indeciso, e ponderei seriamente a abstenção.
Mas no fundo, toda essa indecisão nasceu de uma falácia: aquela que este exemplo do robot desmonta.
Deve ser evitado o recurso ao aborto através do planeamento familiar, etc... Se não for possível, há situações em que pode ser a melhor escolha.
E não, não é matar.
Como o exemplo que dei demonstra.
João,
ResponderEliminarO que importa é a ética da escolha. Se não há escolha, não há ética.
Mas havendo escolha, depois temos que ver as consequências e quanto é que a escolha é responsável pelas consequências.
Se tu não sabes nadar e cais à água eu tenho uma escolha: salvar-te ou deixar-te morrer.
Se tu não sabes nadar eu tenho uma escolha: empurrar-te para a àgua e tu morres e não empurrar e vives.
Ambas são escolhas, ambas têm as mesmas consequências: vives, ou morres.
Mas a relação entre a consequência e a escolha é diferente. No primeiro caso, tu morres se eu escolher não te salvar, mas também morres se eu não escolher nada, ou for incapaz de fazer escolhas. Por isso a minha responsabilidade pela consequência se não te salvo é mínima (e o louvor que mereço se te salvo é maior).
No segundo caso se eu não esolher nada ou for incapaz de agir de forma eticamente relevante (com escolha voluntária) tu vives. Por isso se eu te matar a minha responsabilidade é grande -- foi por causa da minha escolha -- enquanto que se não te matar não fiz nada de louvável -- não morrias à mesma.
Por isso: criar um ser humano é algo louvavel (normalmente), e decidir não criar não é condenável.
Matar um ser humano vivo é algo conenável (normalmente) e decidir não matar não é louvável.
O que importa é a forma como encaixam estes factores: escolha voluntária e consciente, alternativas possíveis, e as consequências previsíveis. Não é cada elemento em separado que conta.
«Ambas são escolhas, ambas têm as mesmas consequências: vives, ou morres.»
ResponderEliminarIsso pode ser falso.
Caso tenhas de arriscar a tua vida para me salvar, a consequência de me tentares salvar pode ser que ambos morremos.
Como as consequências não são as mesmas, vamos supor que não existe qualquer risco e isso é claríssimo para ti.
Imagina duas hipóteses: encontraste-me no meio da rua a sangrar. Sabes que se não telefonares para o 115 eu vou morrer em breve. E se ligares vou ser salvo. Não te custa nada ligares, podes fazê-lo com facilidade.
Por outro lado podes ter provocado esta hemorragia propositadamente.
Repara que agora, havendo diferença entre ambas as situações, essa diferença é muito menor. Já não se aplica aquilo que escreveste:
«No primeiro caso, tu morres se eu escolher não te salvar, mas também morres se eu não escolher nada, ou for incapaz de fazer escolhas. Por isso a minha responsabilidade pela consequência se não te salvo é mínima (e o louvor que mereço se te salvo é maior).»
FALSO.
A tua responsabilidade pela minha morte seria grande ao ponto da nossa lei considerar CRIMINOSA a tua escolha. Sim, seria ilegal e criminoso não me tentares ajudar neste caso, de acordo com a lei portuguesa.
O louvor por me teres salvo existirá, mas não da mesma forma que no exemplo, em que se pressupõe que terias arriscado a tua vida.
Por isso, quando as consequências são realmente iguais em ambos os casos, as diferenças são consideradas mais pequenas.
«Por isso: criar um ser humano é algo louvavel (normalmente), e decidir não criar não é condenável.»
Aqui discordamos a sério, e por duas razões.
A) Se uma família não tem condições para criar mais de 3 filhos (por exemplo) ao ponto de abandonar os seguintes e dá-los par a adopção, eu creio que é eticamente errado terem mais. Já tu, pelos valores que defendes, tens de considerar isso eticamente certo.
B) Acho que tal como no caso do sangue, a morte provocada por uma omissão sem risco é algo condenável, creio que para seres coerente deverias considerar relativamente grave que as mulheres tenham em geral cerca de 2 filhos em vez de terem cerca de 15.
(continua)
Mas eu concordo com a tua análise de que temos de avaliar a forma como a escolha é responsável pelas consequências.
ResponderEliminarE no caso do Robot, a escolha de não o criar é totalmente responsável pela consequência dele não vir a existir.
Tal como a escolha de o matar.
Mas eu creio que as consequências são diferentes. Num caso, estamos a assumir que alguém pode destruír "pessoas", e noutro caso estamos a assumir que que alguém pode decidir que uma "pessoa" não chegará a existir.
Isto é irrelevante para a "pessoa": ela não vai existir em qualquer dos casos. Mas não é irrelevante para todas as outras, que se sentem mais seguras num mundo em que quem quer que tente destruír alguém será punido (supondo que tal inibição desincentivará o acto).
Assim sendo, se a minha mãe fosse para freira ou me matasse depois de nascer, para mim as consequências seriam ligeiramente diferentes - sofreria mais no segundo caso. Mas para toda a sociedade a escolha era totalmente diferente: como se poderiam sentir seguras numa sociedade me que uma mãe que mata os filhos depois de nascerem não é punida?
Eu gosto de viver, e ainda bem que a minha mãe não foi para freira. Mas essa decisão não teria nada de eticamente errado, porque poderia não ser nada previsível que as consequências de eu existir seriam positivas. Nem negativas.
A existência de uma pessoa pode ter previsivelmente consequências positivas ou negativas sobre essa pessoa e sobre o mundo, mas muitas vezes isso não é nada claro.
É o caso da nossa sociedade, não é nada claro que seja "desejável" ou "indesejável" que os pais decidam ter mais um filho. Por isso não avaliamos eticamente essa decisão na nossa sociedade.
Matar uma "pessoa" que existe é errado, claro, porque é notoriamente previsível que um mundo onde esse acto não é punido é um mundo inseguro onde não queremos viver. (além de outras questões como o sofrimento causado a quem a conhecia, à própria, etc...)
É isto que cria a GRANDE diferença entre o acto A e B no caso do robot.
É isto também que cria a grande diferença entre o aborto antes das 10 semanas e, por exemplo, no 8º mês, ou mesmo depois do nascimento.
Num caso é intuitivo que a "pessoa" não existe, mesmo que seja previsível que venha a existir. Porque a "pessoa" não é um aglomerado de células, mas sim um algoritmo que corre na rede neuronal que será criada mais tarde.
No outro caso o algoritmo está a correr, e a permissão para matar vai destuír uma pessoa que já existe. Num mundo em que isso é possível, nós podemos sentir-nos mais inseguros.
«E no caso do Robot, a escolha de não o criar é totalmente responsável pela consequência dele não vir a existir.»
ResponderEliminarNão, João. Isso seria dizer que a escolha de não te salvar era totalmente responsavel pela tua morte. É falso. Se retirares a escolha em ambos os casos a consequência esperada é a mesma: o robot não é criado, e tu morres afogado. Escolher aquilo ou não haver escolha, em ambos os casos produz o mesmo resultado.
O caso de matar o robot ou atirar-te para a agua é o oposto. Sem a escolha esperava-se que tu e o robot vivessem. Com a escolha morrem.
Nota que sem a escolha quer mesmo dizer sem escolha nenhuma. Não é escolher outra coisa, é não haver lá nada que escolha. Por exemplo se o agente ficar inconsciente ou incapaz de escolher.
«Mas para toda a sociedade a escolha era totalmente diferente: como se poderiam sentir seguras numa sociedade me que uma mãe que mata os filhos depois de nascerem não é punida?»
Isto não me parece razioável. Nascer é apenas mudar de sítio. E não há qualquer razão para que o eleitorado se sinta inseguro se a mãe poder matar o filho, por exemplo, até um ano de idade. Quem vota já tem 18 anos ou mais, por isso já está safo.
Mais genericamente, penso errado assumir que a segurança é o fim último da ética. Parece-me melhor considerar a segurança como um meio para promover os valores fundamentais da ética: a escolha consciente, informada, tendo em conta os valores de todos os afectados. Tudo o resto é instrumental.
«Isto não me parece razioável. Nascer é apenas mudar de sítio. E não há qualquer razão para que o eleitorado se sinta inseguro se a mãe poder matar o filho, por exemplo, até um ano de idade. Quem vota já tem 18 anos ou mais, por isso já está safo.»
ResponderEliminarMas eu não estou preocupado com o eleitorado.
Estou preocupado com as pessoas que vivem.
«Mais genericamente, penso errado assumir que a segurança é o fim último da ética. »
Não é.
Está muito longe de ser.
Também está muito longe de ser irrelevante.
Há decisões que têm impacto no nosso conforto, outras na nossa liberdade, etc... A decisão de matar tem um grande impacto no nosso sentimento de segurança.
Cada vez que algum assassino fica impune, o nosso sentimento de insegurança cresce.
Por isso faz sentido que eu considere o impacto na segurança um facto muito importante para justificar que ninguém possa matar ninguém.
Repara: imaginas que tu SABIAS que o indivíduo "Bernebeu" seria infeliz ao longo da sua vida: teria uma vida de sofrimento e dor angustiantes. Tu sabias que era preferível não nascer a ser o Benebeu.
Se tu o matasses o teu acto era eticamente grave. Não necessariamente para o Bernebeu, para quem até poderia não ser nada mau, mas sim para todos nós.
Se tu ficasses impune, nós saberíamos que tu te poderias arrogar a considerar que a nossa vida seria infeliz, e por isso acabar com ela.
Nós podemos estar presos a um algoritmo que mesmo numa vida infeliz temos a esperança que ela melhore, e não somos capazes de deixar de sofrer com o medo que acabes com ela.
Sim, a segurança é algo muito inportante neste caso, e afecta toda a comunidade.
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Agora imagina que tu sabes que não poderás ter mais de um filho. Além disso sabes que o teu filho vai ser o Bernebeu.
Será errado evitares ter filhos de todo?
Eu creio que não é errado.
Eu creio que é a escolha certa a fazer: é louvável o teu acto.
Porque é que não ter o Bernebeu é certo, e matar o Bernebeu é errado? Por causa do factor segurança. É um factor muito importante.
No caso do sangue, também creio que é esse factor que distingue a acção da inacção. Nós sentimo-nos mais inseguros por viver num mundo em que se nos estivermos a esvaír de sangue ninguém nos acode, podendo fazê-lo sem dificuldade (por isso criminalizamos o acto), mas a insegurança seria muito maior se vivessemos num mundo em que nos pudessem matar.
Por isso tentamos desincentivar a acção de matar mais do que a passividade.
Mas a passividade é grave. É criminosa em muitos casos.
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Já pela tua perspectiva, tu terias a obrigação de conceber o Bernedeu.
Se não o fizesses, pela tua perspectiva, não seria como o matar, mas seria tão criminoso como deixá-lo a morrer.
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A realidade é diferente: obviamente ninguém SABE que outro será infeliz, e isso ainda causa um maior medo de que tal situação fosse possível. Se deixassemos ao critério de qualquer pessoa que estivesse certa e segura de si poder matar outros, teríamos muitas razões para ter medo, e o nosso mundo seria um inferno.
No entanto, mesmo que os pais não SAIBAM que o seu filho vai ser um Bernebeu, se tiverem fortes suspeitas que vai ser esse o caso, não o devem conceber. Seria eticamente errado faze-lo.
Se o fizeram, e o Bernebeu nasceu, obviamente perderam qualquer direito a este respeito. Não o podem matar.
Eu tenho todas as razões para acreditar que o Benebeu surge gradualmente à medida que o algoritmo que corre na sua rede neuronal se vai tornando mais complexo. Mas quero evitar correr riscos. Por isso faz sentido assumir que após o início da actividade cerebral se vai tornando cada vez mais eticamente errado por fim à gravidez.
Acho seguro dizer que um aborto no último mês pode ser tão grave quanto um homicídio. E entendo que se penalize o acto de abortar a partir do início da actividade cerebral, principlamente tendo em conta que a mãe até lá já terá tido tempo para tomar a sua decisão em relação ao seu filho.
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Ou seja: o grande ponto em que discordo de ti é este: se os pais têm fortes suspeitas que o seu filho único vai ser o Bernebeu, eu creio que não o deveriam conceber.
Tu acreditas que seria moralmente errado não o fazerem. Moralmente grave, sendo coerente.
«Não, João. Isso seria dizer que a escolha de não te salvar era totalmente responsavel pela tua morte. É falso. Se retirares a escolha em ambos os casos a consequência esperada é a mesma: o robot não é criado, e tu morres afogado. Escolher aquilo ou não haver escolha, em ambos os casos produz o mesmo resultado.»
ResponderEliminarTu insistes em recambiar para o exemplo do afogamento, mas eu já expliquei porque é que esse exemplo é enganador.
Compara com o exemplo que eu dei da hemorragia. Não fazer o robot seria como não fazer o telefonema que salvaria essa vida sem dificuldade. Seria criminoso.
Achas que não fazer o robot seria criminoso?
(mesmo que não homicida?)
ResponderEliminarJoão,
ResponderEliminar«Porque é que não ter o Bernebeu é certo, e matar o Bernebeu é errado? Por causa do factor segurança.»
Discordo. Isto é como dizer que o homicídio é eticamente aceitável desde que ninguem saiba.
De qualquer forma, se temos a certeza que o Benebeu prefere estar morto que viver, então é eticamente aceitável matá-lo, ou não o conceber, seja quando for (assumindo que não é um desejo temporário ou tratável de outra forma menos drástica).
No caso do afogamento, tal como no exemplo que dei do penhasco, estava a assumir que não havia perigo para mim. Por isso no teu caso da hemorragia é o mesmo. Se eu não tive nada a ver com a hemorragia, não sou eticamente culpado da tua morte.
Pode ser que em certos casos a diferença de valores entre as alternativas justifique coagir um a ajudar o outro. Mas recusar assistência não será nunca tão grave como causar o problema.
Outro exemplo. Está muito frio, e um mendigo bate à porta a pedir para dormir na tua casa. Se recusares sabes que ele morre.
A- Recusas, ele morre.
B- Dizes tá bem, ele entre, mas a meio da noite corres com ele de casa sabendo que isso vai matá-lo.
B é eticamente pior, e é um crime de exposição ou abandono. A não é tão grave eticamente porque sem a tua decisão ele morria à mesma, e só é crime se tu tiveres obrigação de o abrigar. (Artigo 138º do código penal).
Não acho que tenha nada a ver com a segurança da sociedade. Esse é o problema dos side effects no utilitarismo: se ninguém sabe, o mal deixa de ser mau.
O importante é o papel que a escolha voluntária tem no desencadear das consequências. Se era uma coisa que acontecia mesmo sem haver uma escolha (qualquer que fosse) a responsabilidade é menor que se fosse o contrário.
«No caso do afogamento, tal como no exemplo que dei do penhasco, estava a assumir que não havia perigo para mim. Por isso no teu caso da hemorragia é o mesmo. Se eu não tive nada a ver com a hemorragia, não sou eticamente culpado da tua morte.»
ResponderEliminarSim, mas no caso da hemorragia tiveste um acto criminoso.
Se queres um exemplo com um afogamento em que o factor risco esteja claramente de lado, imagina uma criança de 4 anos numa piscina para crianças. Ela tropeça e começa a afogar-se. Tu podes ir lá à piscina de crianças e salvá-la, mas não o fazes. Continuas a tua vida como se nada fosse enquanto ela morre.
Isto é criminoso, e GRAVE.
«Discordo. Isto é como dizer que o homicídio é eticamente aceitável desde que ninguem saiba.»
Esse é um mal entendido comum. Se tu vives numa sociedade em que é considerado eticamente aceitavel que se mate alguém desde que ninguém saiba, terás mais medo que te matem e ninguém saiba.
Por isso deve ser considerado eticamente inaceitável que se mate alguém, mesmo que ninguém saiba.
No caso do mendigo, está em jogo a questão do risco novamente. Recusar não é criminoso, pois entende-se que o deixar entrar não é inconsequente para ti, e envolve vários riscos que podes não estar disposto a correr.
Novamente isso não responde à questão do robot, na qual vou insistir.
Existe um recém nascido numa piscina de crianças. Notas que ele se está a afogar. Sabes que não seria difícil ir lá e salvá-lo: não envolveria qualquer risco.
ResponderEliminarMas não o fazes, continuas a tua vida como se nada fosse. Se calhar terias os teus motivos para achar que a criança seria infeliz ao longo da sua vida, mas isso pouco importa.
Este teu acto é criminoso à luz do nosso direito penal, e vergonhoso à luz da nossa intuição ética.
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Tu decides não construír o robot com intelegência artificial, consciência, sentimentos, enfim, uma "pessoa", em relação ao qual recebeste o projecto.
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À luz de todos os argumentos que me deste, ambos os actos são igualmente condenáveis.
Mas o segundo acto não só não seria criminoso, como, se fundamentado em bons motivos (entre os quais a tua crença que o robot seria infeliz caso fosse construído e accionado), até seria louvável: a opção correcta.
E isso mostra que algo está errado nos teus argumentos.
João,
ResponderEliminarAcho que o teu modelo um bocado confuso, não percebo bem qual o seu fundamento. Mas vou tentar explicar o meu outra vez.
Numa escolha temos que avaliar as possibilidades e compará-las entre si. O valor ético de cada alternativa é dado pela consequência de escolher esse ramo modificado pela responsabilidade atribuível à decisão. O valor ético da decisão depende do valor da opção escolhida comparado com os das alternativas.
Se eu te der um chapéu verde e por isso um assassino te confundir com o seu alvo e te matar, eu não sou eticamente responsável pela tua morte. A menos que eu soubesse que isto ia acontecer e o provocasse deliberadamente.
No caso da hemorragia, afogamento, etc, também a decisão é muito pouco responsável pela morte, desta vez não por ignorância mas porque a morte é causada por outros factores que não a escolha.
Outra decisão ética é se vamos forçar alguém a decidir de certa forma. Por exemplo, eu estou a decidir se chamo o 112 quando tu estás a sangrar, e um legislador está a decidir se há de punir quem não chama o 112 nestas condições. A decisão do legislador deve ter em conta não só os valores das alternativas que eu posso escolher, mas também o valor de me deixar escolher. Só quando a diferença de valor ético entre as alternativas for grande é que se justifica coagir quem decide, e de forma proporcional a essa diferença.
Por isso pode ser aceitável ter leis que obrigam o cidadão comum a assistir alguém em caso de necessidade, quando essa assistência não custa nada, e essa coacção é um problema menor que negar a assistência. Mas isto não faz de forma nenhuma com que negar assistência seja o mesmo que matar.
Deixar a criança afogar-se é mau, porque há uma diferença grande de valores entre ela viver ou morrer, e não me custa nada salva-la. Mas não é nem remotamente tão mau como afogar eu a criança de propósito, porque nesse caso sou totalmente responsável pela sua morte em vez de apenas minimamente responsável.
No caso do celibato ou contracepção está tudo a favor de deixar decidir. Sem escolha e acto voluntário não aparece ninguém. Quando se decide pelo celibato ou contracepção não se sabe se se evita uma concepção ou se não ia haver concepção de qualquer forma. E o custo para os pais é considerável, custo esse que se soma ao custo ético de restringir a sua liberdade de escolha.
O aborto é radicalmente diferente. Sem escolha o feto continua-se a desenvolver, sem necessidade de intervenção voluntária ou consciente. O aborto visa intencionalmente a morte de um ser que se sabe estar lá (apesar de por vezes não ser reconhecido como humano, o que é um factor mitigante). E o custo para os pais é compensado pela responsabilidade que têm por resultar a gravidez de um acto voluntário. Por isso no aborto não é de por de parte formas de coacção aplicáveis em certas circunstâncias (mesmo que não em todas).
Em suma, é eticamente diferente decidir não conceber o Barnabé que o matar. Para decidir matar o Barnabé, a idade do Barnabé é irrelevante.
«Esse é um mal entendido comum. Se tu vives numa sociedade em que é considerado eticamente aceitavel que se mate alguém desde que ninguém saiba, terás mais medo que te matem e ninguém saiba.»
Não. Uma sociedade em que há um assassino, mata sem ninguém saber, o assassíno sabe que não há mais assassinos, e ninguém sabe que há um assassino. Todos se sentem seguros, mas o assassinato não é mais aceitável nessas condições.
Basicamente, a tua vida vale por ti, e não apenas pelo que os outros pensam da tua vida ou da tua morte.
Ludwig:
ResponderEliminarAcho que fugiste à questão que te coloquei.
Repara que eu nunca coloquei em causa que considerasses que existia uma diferença entre matar o bebé e deixá-lo morrer. O meu ponto nunca foi esse.
O meu ponto é simples: deixar o bebé morrer é algo eticamente GRAVE, mesmo que o legislador não tivesse considerado criminoso (que considera).
Tu foste falar em aborto e contracepção, mas quando fiz esta pergunta não estava a falar nem a pensar em nada disso. Apenas entendi que os teus pressupostos levam a conclusões indefensáveis (pelo menos assim o creio, e ainda não li nenhum esclarecimento que o desmentisse).
Por isso, peço que respondas à pergunta que coloquei no comentário anterior. Só é confusa se estiveres a associar à temática do aborto e afins. Mas a pergunta é simples. Eu descrevi dois actos (não salvar o bebé e não construír o robot) e pergunto: "são ambos igualmente condenáveis?".
«Não. Uma sociedade em que há um assassino, mata sem ninguém saber, o assassíno sabe que não há mais assassinos, e ninguém sabe que há um assassino. Todos se sentem seguros, mas o assassinato não é mais aceitável nessas condições.»
ResponderEliminarMas considerar eticamente aceitável esse acto contribuiria para que mais gente o tentasse cometer. E para que ninguém lutasse para o combater.
Em suma: um mundo inseguro e infernal.
"Por exemplo, a energia nuclear levanta um problema ético: beneficiamos agora mas legamos os resíduos radioactivos a gerações vindouras durante milhares de anos. É absurdo dizer que são eticamente irrelevantes porque estão no futuro, são seres potenciais, ou por ainda não terem actividade cerebral."
ResponderEliminarNão é eticamente irrelevante mas não pelo motivo que o Ludwig avança. A razão para a energia nuclear não ser eticamente irrelevante é que os problemas que lhe estão associados afectam toda a gente indiscriminadamente: as pessoas para quem não é relevante deixar um ambiente saudável para as gerações vindouras e as pessoas para quem isso é relevante.
Havendo pessoas para quem é importante a herança ambiental, então temos razões para ser contra o nuclear.
Com a IVG passa-se exactamente o mesmo. Para a mulher que quer ter o filho é extremamente relevante a sua vida e seria gravíssimo fazê-la abortar contra a sua vontade. Por causa dela e não do feto. São as pessoas que contam e não as possibilidades.
Não li tudo o que estava para trás por isso não sei se alguém já tinha mostrado o erro neste raciocínio do Ludwig Krippahl. Se repeti, peço desculpa.
«Eu acho que alguém que dá um tiro num adulto, de propósito, está intencionalmente a matar uma pessoa. Alguém que mata um feto de 10 semanas de propósito provavelmente não sabe que está a matar uma pessoa.»
ResponderEliminarLudwig,
pretendes que uma lei se baseie numa suposição do que as pessoas sabem sobre o aborto? Isso é um disparate...
(E o teu uso da palavra «pessoa» tem muito que se lhe diga, a menos que estejas realmente a usar a palavra indistintamente. Um óvulo fecundado é uma pessoa?)
Helder, quem disse que o deus de que falo é exatamente Zeus, Saci ou o Deus judaíco-cristão?
ResponderEliminarAliás, "Deus" com "d" maísculo porque o Deus de que discorro, no texto logo acima, trata-se de um substantivo próprio - e até onde sei, substantivos próprios são sempre singularizadores, iniciam-se com letra maiúscula (você pode até me acusar, e creio que injustamente, de ser um alienado pelas regras gramaticais).
No dia e no momento em que eu precisar falar em "deus" ou "deuses" no sentido comum (substantivo comum), eu inicio com letra minúscula.
E quanto a questão "o que faz com que 600 anos após o obscurantismo da Idade Média ainda faça sentido, para alguns, acreditar em qualquer deus?", posso adiantar-lhe que a historiografia predominante, linear, positivista, materialista e historicista, que enxerga uma razão histórica e não consegue abondonar uma crença teleológica antiga, uma espécie de cadeia de fatos que subjazem os indivíduos a ela submissos e que se sucedem numa relação lógica de causalidade para um fim, fez-nos acreditar numa coerência tamanha, onde a religião é dita como contrária à ciência, que perdemos a capacidade, e o interesse, em observar a Teoria da História, a Filosofia da História e da Ciência.
Qualquer um que estudar minimamente a história das grandes religiões e da ciência verá que não há como disassociar o desenvolvimento da ciência com as cosmovisões teológicas, filosóficas e metafísicas que conjuntamente a formaram. A ciência teria sido impossível sem elas.
Toda base científica da modernida nasceu de expeculações, primeiramente, teológicas e filosóficas, e não simplesmente pipocou empiricamente dos laboratórios ou das cabecinhas iluminadas de alguns indivíduos.
Pregar o fim da ciência, ou defender uma unidade religiosa homogenizante, é nos fechar num conjunto muito pequeno e limitante de crenças alienantes. A ciência perde com isso, pois perde-se criatividade e capacidade de rebelar-se.
Lembremos, por exemplo, que Darwin foi estutande de teologia e que seu avó era membro de uma ordem mística que acreditava na evolução espiritual dos homens - uma forma pré-embrionária do que viria a ser, alguns anos mais tarde, o espiritismo de Alan Kardec (é quase certo que essa crença do avó foi fundamental para a teoria darwiniana - aliás, teoria essa, em vários pontos, muito questionável, como podemos observar nos debates contemporâneos entre cientistas e filósofos da ciência). Além de Darwin, Newton também estudou teologia. Galileu era sobrinho do papa, Mendel era padre e Einstein acreditava num espécie de deus panteísta etc. Não nego que existam conflitos entre crenças e instituições religiosas e a ciência. A vida em sociedade é assim, conflituoso. Existiram, e existem, religiosos intolerantes, assim como ateus e cientistas. A ciência já andou de mãos dadas com o autoritarismo, assim como a religião. Aliás, a ciência não fez nada, e sim os cientistas (e estes são homens, com valores, crenças e ideais os mais diversos)
Essa idéia de religião X ciência é uma construção historiográfica e inteltual rígida fruto de um conjunto de circustâncias ideológicas e históricas identificáveis, historiografia essa que pineirou a história e adulterou o sentido de tantos outros fatos para que se criasse uma cadei de fatos pretensalmente coerentes que nos dão a imprenssão de uma opsoição feroz entre formas diversas de conhecimento.
Caro Luis V,
ResponderEliminarTal como para mim seria muito relevante se o uso de energia nuclear em gerações passadas me tivesse causado deformações que me matassem às 10 semanas, também era relevante para mim se a minha mãe me tivesse morto às 10 semanas.
Discordo fortemente de quem sugere que toda a minha existência é eticamente irrelevante.
bom, cheguei tarde à discussão, mas posso ainda dar os meus 5 cêntimos! se a tua mãe tivesse morto o embrião do qual tu resultaste, às 10 semanas, isso na realidade seria irrelevante "para ti" pois "tu" nunca terias chegado a existir. logo, esse argumento não pode ser usado pois descreve um acontecimento que é impossível de ocorrer :-)
ResponderEliminarCaro Ludwig,
ResponderEliminarNo caso dos resíduos nucleares, a sua indevida acondicionação pode vir a matar pessoas como eu. Não estamos a falar de embriões de 10 semanas. Não são vidas potenciais. Aquilo que morre na altura é uma vida igual à minha. Abortar às 10 semanas não é matar uma vida igual à minha. O anacronismo não está aí. Se eu programar uma bomba para rebentar daqui a 100 anos tendo como consequência a morte de 50 seres humanos adultos isso é tão criminoso como se ela rebentasse agora. Quem morre são seres iguais a mim e é por isso que o consideramos criminoso.
Caro Francisco,
ResponderEliminarQuando eu falo na vida de uma pessoa, não me refiro à vida num certo instante (sábado à tarde, por exemplo), mas à vida toda.
A vida toda daquele feto, se o deixarmos viver, é equivalente à minha vida toda se me deixarem viver. É certo que ele está numa fase da sua vida diferente da fase da minha em que agora eu estou. Mas as nossas vidas como um todo não serão muito diferentes. Todos somos fetos às 10 semanas e trintões aos 34.
Ricardo,
ResponderEliminarPorque é que terás tu mais legitimidade que eu para decidir se era ou não eu aquele feto de 10 semanas com as minhas células, o meu DNA, os meus anticorpos, e que cresceu até ser o que eu sou agora?
No meu corpo mando eu! :)
Ludi,
ResponderEliminarse no teu corpo mandas tu, porque não escolheste a tua alimentação durante os primeiros 9 meses (no mínimo...), porque não escolheste onde ias e onde ficavas, porque não tomaste decisões sobre o teu corpo?
(Mas vejo que fugiste à minha questão. Parece-me que não tens qualquer critério que distinga um aborto de um homicídio. E isso é um problema...)
Ricardo,
ResponderEliminarSuspeito que não tens lido nada do que eu tenho escrito. Só para recapitular:
1- não há um homicidio. Só no nosso código penal há uma meia dúzia de homicídios diferentes. Peço que comeces por ver as diferenças entre eles (motivo, estado de espírito de quem mata, circunstâncias da morte, etc).
2- não tenho uma definição rigorosa de homicidio. Se te referes simplesmente ao acto de matar outro ser humano então o aborto é homicídio. Se for algo mais específico, depende da definição.
3- a etiqueta é irrelevante. Os principios éticos e o que infiro deles já expliquei. Por mim podes chamar-lhe o que quiseres. O que chamamos rosa cheirava ao mesmo se lhe chamassemos outra coisa.
«Quando eu falo na vida de uma pessoa, não me refiro à vida num certo instante (sábado à tarde, por exemplo), mas à vida toda.»
ResponderEliminarE isso é anacrónico. Para mim a vida toda é toda a vida que ele já teve. A minha vida toda são 23 anos e qualquer coisa. Matar-me não é crime por se impedir que eu chegue aos 70. É crime porque isso me priva de viver a minha vida como eu quero. Um feto com 10 semanas não tem querer.