quinta-feira, janeiro 25, 2007

Actividade cerebral.

Isto hoje é à dúzia. Assim se estiverem fartos desta treta do aborto é só esquecer o dia 25. Desta vez é sobre um argumento usado por alguns defensores do sim: como o critério para determinar a morte é o fim da actividade cerebral, o critério para determinar quando começa a vida é o inicio da actividade cerebral.

A inferência não me parece justificável, pois não é claro o que é que a morte clínica tem a ver com o inicio da vida. Mas nem é preciso ir por aí porque a premissa está errada. Wijdicks descreve sumariamente o processo de declarar a morte cerebral (1):

«The declaration of brain death requires not only a series of careful neurologic tests but also the establishment of the cause of coma, the ascertainment of irreversibility, the resolution of any misleading clinical neurologic signs, the recognition of possible confounding factors, the interpretation of the findings on neuroimaging, and the performance of any confirmatory laboratory tests that are deemed necessary.»

O objectivo deste cuidado, que vai muito além de ver se há “actividade”, e determinar se a situação é irreversível. Além disso o critério da morte cerebral é apenas usado se o paciente permanece vivo, normalmente com ventilação assistida, soro, e assim. Este procedimento não se aplica a um sinistrado a quem o coração parou e os paramédicos não conseguem reanimar. Ninguém lhe vai fazer uma serie de testes neurológicos cuidadosos e isso tudo, porque é óbvio que atingiu um estado irreversível.

A definição de morte clínica tem mudado com o desenvolvimento tecnológico porque muito do que era outrora irreversível agora já não é, e a morte é definida como um estado irreversível. Se querem aplicar o mesmo critério têm que considerar o feto como um ser humano em coma com um prognóstico excelente. Ninguém vai desligar a máquina a um paciente desses.

1- Eelco F.M. Wijdicks, 2001, “The Diagnosis of Brain Death”, New England Journal of Medicine, 16, Vol. 344, pp 1215-1221

10 comentários:

  1. É óbvio que nas restantes situações se sabe perfeitamente que o cérebro não funcionará mais, e por isso é que não é feita essa verificação.

    De resto, volto a lançar o repto: se destruíres o cérebro de um indivíduo, mas mantiveres vivo o seu corpo, e depois substituíres o seu cérebro por o de um coleho (imaginando essa possibilidade), dirias que o indivíduo estava vivo de novo?


    Sem cérebro, o "eu" do indivíduo não existe.



    Na ficção antiga existia aquela situação em que dois indivíduos trocavam de cérebro.
    Se o Joaquim fosse gordo e o Pedro magro, e ambos trocassem de cérebro, dirias que o Joaquim passou a ter um corpo magro, ou que o Joaquim passou a ter o cérebro do Pedro?

    Melhor: se o Joaquim e o Pedro trocassem de cérebro, e depois destruísses um dos corpos, quem seria o sobrevivente? O dono do corpo restante ou o dono do cérebro restante.

    Em ambos os casos a situação é clara: o cérebro é o fundamental da pessoa, é o "eu" da pessoa.
    No segundo caso, o dono do cérebro sobrevivente mudou de corpo, o dono do corpo sobrevivente morreu.

    Sem cérebro não existe indivíduo. Não existe vida humana após o fim definitivo da actividade cerebral, e não existe vida humana antes do início definitivo da actividade cerebral.

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  2. Se o individuo fica permanentemente incapaz de fazer consciência então está morto como individuo. Se precisa de cérebro ou de um computador ou o que seja é indiferente.

    Mas é importante que a incapacidade seja permanente. Se não for, então está vivo. Tem futuro.

    A diferença é simplesmente essa: é uma pessoa viva se tem um futuro de pessoa; está morto se não tem esse futuro.

    Com a tecnologia presente, sem cérebro não se sobrevive como pessoa. Talvez no futuro se resolva a situação com um chips implantados. Com a tecnologia presente também não se sobrevive como pessoa sem figado. A actividade do fígado é tão essencial à sobrevivencia do eu como a do cérebro.

    Estás-te a basear numa relação meramente circunstâncial e a perder de vista o que é importante. O relevante para considerações éticas é a capacidade do ser para guiar o seu futuro. É isso que temos que respeitar. Os mecanismos específicos pelos quais o faz são irrelevantes.

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  3. bom, essa do fígado é surreal: se o meu morrer, e eu receber um transplantado, que mudança é que isso vai causar na minha existência individual?! é que fígados há muitos (quem sabe um dia até artificiais). mas cérebros?! o teu não funciona, trocas por outro, sem alterar a tua individualidade?? pleeease...

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  4. Ricardo,

    Então o fígado é surreal por causa da personalidade. Óptimo, estamos no bom caminho. Ao menos não é surreal por não ser cérebro.

    Por isso se substituires célula a célula o cérebro por outra coisa qualquer de forma a não alterar a tua consciência ou personalidade, o cérebro não será mais importante que o fígado, certo?

    Daí, primeiro ponto: o cérebro só parece ser importante por uma questão de limitação biológica e tecnológica. O que é verdadeiramente importante é essa tal coisa a que tu chamaste personalidade. O resto, incluindo o cérebro, pode ser mudado as vezes que se quiser desde que não afecte o importante. De acordo?

    Agora, o cérebro pode ser um indicador útil do estado do paciente. Tal como o figado ou coração ou outros órgãos vitais que podem justificar declarar-se que o paciente morreu, dependendo das circunstâncias. Basta ter evidências que não há mais nada a fazer por ele.

    Agora o segundo ponto. Se a tua personalidade mudar não dizemos que morreste. Se perderes as memórias, mesmo todas, não dizemos que morreste. A não ser que deixes de ser capaz de ter consciência alguma vez no futuro. É isso que é a morte.

    Por isso é que eu digo que o importante não é o cérebro nem o fígado, nem sequer a personalidade ou a memória, mas um futuro consciente. Se o tens, estás vivo e devemos considerar os teus interesses futuros. Se não o tens, vais para fertilizante. O resto é treta :)

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  5. oops, li mal: personalidade em vez de individualidade. Mas dá no mesmo; os esquizofrénicos também não são considerados mortos... :)

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  6. estás a voltar aos cenários de ficção-científica: é impossível perderes as memórias todas sem morreres. existem doenças onde podes ter dificuldade em aceder às mesmas, mas perder nunca as perdes: elas compõem a forma como a tua rede neuronal está organizada. perde-las em absoluto implica o desfazer dessa mesma rede neuronal e consequente desaparecimento da tua existência enquanto mente individual. quanto ao futuro consciente, de uma forma precisa esse também não existe (pode vir a existir ou não, não sabes).

    quanto ao primeiro ponto, volto a insistir, a morte de um coração ou de um fígado não implica a morte de uma dada mente. se o meu coração morre, posso tentar um transplante ou um artificial, para tentar manter a minha mente viva. já o contrário não se verifica: se a minha mente morre, a máquina pode ser desligada. este é o ponto fundamental; detalhes técnicos do procedimento de desligar a máquina apenas desviam a discussão deste ponto. também, naturalmente que se um coração de uma dada pessoa está morto faz umas horas, essa pessoa está morta: o terminar do fluxo sanguíneo no cérebro terminou com a actividade cerebral que caracterizava a mente individual que era essa pessoa.

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  7. Ludwig:

    Eu concordo que o importante não é o cérebro, mas sim o algoritmo que lá corre. A actividade cerebral é esse algoritmo a correr.

    Apenas digo que sem que o algoritmo esteja a correr, não tens "pessoa".

    E dei o exemplo do cérebro do coelho: se o teu cérebro fosse deitado fora, e no seu lugar fosse colocado o cérebro de um coelho (como uma forma tecnológica manhosa de tornar tal disparate possível), o teu corpo continuaria vivo.

    Se o teu fígado fosse substituído pelo do coelho, desde que funcionasse e garantisse a sobrevivência, tu estarias vivo. Mas no caso do cérebro, tu terias morrido.

    Ou seja: não há vida humana fora do cérebro. Sei que são questões conjunturais: uma dia que possas instalar os algoritmos que correm no cérebro noutra máquina, deixará de ser o cérebro que importa, mas sim o algoritmo - aliás, certas partes desse algoritmo (o controlo do batimento cardíaco pode ser irrelevante, caso se controle um corpo de silício).

    Mas actualmente essa tecnologia não existe, pelo que não é possível existir uma pessoa sem cérebro.

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  8. Mas vou aproveitar a tua ausência de preconceitos com o carbono para repetir um exemplo (que tenho alguma esperança de que seja esclarecedor) que já dei noutro artigo:

    «Imagina que eu passo 100h no laboratório a programar uma inteligência artificial que corre num computador de silício. (Bem sei que a arquitectura de von Neumann não é a ideal para isto, mas imaginemos...) Uma vez instalada, corre um algoritmo capaz de pensar, sentir, sofrer. E é capaz de o fazer tal como um ser humano. Um algoritmo que sofrerá com a sua destruição, uma vez que tenha sido inicializado.

    Suponhamos que:

    A - Antes de o instalar, hesito. Começo a pensar melhor, e decido não o instalar. Mais, destruo o código que fiz.

    B - Instalo o código, corro o algoritmo, e destruo-o.

    ----

    Na situação B estamos os 2 de acordo que eu matei. Aquilo que fiz é eticamente errado.

    Na situação A, para seres coerente, tens de dizer que eu também matei este ser, e que isso é eticamente errado.
    Mas não é.

    (Nota que este ser tinha uma personalidade específica, não era um entre milhões de algoritmos possíveis, mas sim um algoritmo concreto)


    Gostei desta tua ausência de preconceitos com o carbono, porque esta é uma excelente analogia com aquilo que é o aborto até às 10 semanas (mas existem algumas razões que na verdade podem tornar o aborto mais defensável).»

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  9. «Eu concordo que o importante não é o cérebro, mas sim o algoritmo que lá corre. A actividade cerebral é esse algoritmo a correr.»

    Isto continua a confundir factos com valores. Mas isso será para uma posta nova. Stay tuned :)

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  10. sim, continuarei sintonizado :)

    esta discussão está interessante.

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