quinta-feira, abril 30, 2009

Direitos sim, mas no papel.

A tecnologia é nova mas o conflito é antigo. O Artigo 11º da Carta dos direitos fundamentais da União Europeia estipula que «Todas as pessoas têm direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.»(1) É um bom princípio mas, na prática, é inconveniente para algumas pessoas. Infelizmente, é inconveniente para quem tem poder e para quem tem dinheiro.

Com a Internet podemos exercer a liberdade de opinião e a liberdade de trocar informação. Mas sem a ingerência de quaisquer poderes públicos, este exercício de liberdade pode ameaçar monopólios lucrativos e pôr a descoberto coisas que muitos políticos preferiam deixar entre eles. Por exemplo, a negociação do pacote de reforma das telecomunicações, que vai regular as telecomunicações na Europa.

A emenda 138, agora 46, estabelecia que o acesso à Internet não poderia ser cortado sem uma decisão judicial, de acordo com o direito fundamental à opinião e troca de informação. E fazia-o na secção dos deveres das entidades reguladoras, responsabilizando assim cada país pela protecção destes direitos dos seus cidadãos. A semana passada esta emenda foi aprovada na Comissão para a Indústria, Investigação e Tecnologia com 40 votos a favor e 4 votos contra (2).

Mas em negociações à porta fechada, esta emenda, e várias outras agendadas para discussão em plenário, foram substituídas com a intenção de votar apenas a versão negociada. Em vez de exigir uma decisão judicial para cortar o acesso a alguém, a nova versão exige apenas um “tribunal independente e imparcial”, o que não parece excluir processos meramente administrativos como o que a França está a tentar implementar. Além disso, esta provisão foi movida da secção sobre as responsabilidades do regulador para a secção sobre o âmbito de aplicação da lei, tornando-a ainda mais vaga e ineficaz (3).

Outra sequela da negociata é permitir às operadoras discriminar o tráfego na Internet em função de conteúdos ou serviços (4). Por exemplo, decidir que os seus clientes só podem aceder ao YouTube se pagarem extra ou vedar-lhes o acesso ao Google para que só usem o serviço de pesquisa que paga por isso à operadora. É como deixar que as companhias de telefones decidam com quem podemos falar, a que horas e o que podemos dizer.

É a guerra de sempre. Como os nossos direitos não estão à venda e frustram quem quer poder sobre nós, tanto comerciantes como políticos preferem direitos meramente decorativos. Quando a maioria exerce os seus direitos a minoria perde privilégios, e a Internet permite a todos um exercício eficaz deste direito à expressão, opinião e partilha de informação.

Podermos trocar informação com qualquer pessoa em qualquer ponto do mundo estraga o negócio de vender o acesso à informação e dificulta que moldem a nossa opinião ao que lhes dá jeito. Daí estas magníficas obras de legislação. O nossos direitos são enaltecidos, sacralizados e salvaguardados no papel, belos conceitos abstractos. Mas deixando sempre os buracos necessários para quem tiver equipas de advogados e deputados no bolso continuar a fazer o que quer.

Deputados portugueses no Parlamento Europeu.

Obrigado a todos que me enviaram estas notícias, tanto aqui como por email.

1- Parlamento Europeu, Carta dos direitos fundamentais da União Europeia
2- La quadrature du net, Victory for EU Citizens! Amendment 138 was voted again.
3- Monica Horten, IPTegriti, Telecoms Package Internet sell-out now agreed Via Remixtures.
4- La quadrature du net, Telecoms Package: Towards a bad compromise on net discrimination?

quarta-feira, abril 29, 2009

Financiar a criatividade, parte 4: uma solução.

O Barba Rija escreveu que a minha solução para o copyright é «vaga demais, ou se a compreendo bem, é inaceitável.»(1) A primeira parte é fácil de resolver. Aqui vai, por pontos, o que eu proponho neste momento.

Que qualquer sistema de regulação se aplique exclusivamente a actividades comerciais, não restringindo a partilha, o uso pessoal ou a criação de obras derivadas.

Que o período de protecção seja reduzido. Quando os livros tinham de ser transportados em veleiros e demorava semanas a preparar a impressão fazia sentido dar 14 ou 28 anos de copyright. Hoje pode-se transmitir o material para todo o mundo em minutos ou segundos. Não faz sentido esperar 120 anos até se tornar domínio público.

Que, mesmo como regulação comercial, seja aplicado apenas onde é útil e nunca impedindo a distribuição ou uso da obra publicada. A lei pode obrigar a dar ao autor uma comparticipação pelas aplicações comerciais da sua obra mas, uma vez que a publica, este deixa de poder proibir o seu uso, distribuição ou a criação de obras derivadas. O objectivo é incentivar a criatividade e a cultura, não é restringi-las.

Finalmente, que os direitos do autor sejam do autor. Inalienáveis, que não possam ser adquiridos por terceiros e privar o autor da liberdade de distribuir ou transformar a sua obra, ou de usufruir dela.

Proponho que isto é viável porque a criação artística é um serviço. Tal como um cirurgião, filósofo ou electricista, o escritor e o músico não vendem objectos. A forma mais viável de os financiar é pagando o serviço que prestam. Quem vende objectos é o distribuidor, quem copia, e o copyright foi concebido quando a cópia era o mais importante. De nada servia escrever livros se ninguém os imprimisse. Hoje a distribuição é secundária e não requer grande investimento. Hoje copiar é trivial.

Para alguns isto parece um problema. Como copiar é fácil, muita gente pode ficar à espera que o músico componha ou o escritor escreva para depois usufruir da obra sem pagar. Mas isto funciona para ambos os lados. Como copiar é fácil, o artista pode vender o mesmo trabalho a cem, mil, ou um milhão de pessoas, permitindo cobrar muito pouco a cada um e tornando pouco atraente ficar à espera da borla. Além disso, desta maneira o artista pode negociar a venda do seu trabalho antes de o fazer, em vez de trabalhar sem saber se vai receber algo em troca. Mesmo com o poder legal dos monopólios de distribuição, concedido pelo sistema vigente, esta alternativa já demonstrou ser viável.

O problema então é como um artista jovem e desconhecido pode arranjar compradores para o seu trabalho. A resposta é simples. Não pode. Tal como o jovem de 18 anos que quer ser arquitecto, cirurgião ou professor, o jovem que quer ser músico ou escritor tem primeiro de demonstrar a sua competência. Mas até nisso a facilidade de cópia o ajuda e, nesta fase, um maior investimento público em formação seria proveitoso. Mais proveitoso que o que gastamos em polícia e tribunais para apanhar a miudagem que troca ficheiros.

Há quem aceite tudo até aqui mas ache que não dá para os filmes por serem caros demais. O problema não é grave. Os filmes só são tão caros porque dão muito dinheiro e toda a gente quer encher os bolsos. E dão muito dinheiro porque muita gente vai ao cinema. Não é preciso restrições à cópia enquanto se vender bilhetes. E se um dia deixar de haver interesse no cinema não há restrições que safem este negócio.

Mas, provavelmente, haverá projectos criativos que não podem ser financiados num mercado livre de serviços. Se esses projectos tiverem valor para a sociedade o financiamento deve ser assegurado directamente pelo estado e não indirectamente pela restrição ao acesso. Pode-se fazer na cultura o que se faz na educação, na saúde, na justiça e na ciência. Festivais de música, uma biblioteca digital de acesso livre com todos os filmes que já foram editados, cursos de arte ou bolsas de estudo para artistas são exemplos do tipo de investimento público que pode financiar a criatividade.

A solução que proponho não é perfeita e falta-lhe muitos detalhes. Mas são detalhes que não considero importantes. O que importa é não financiar a criatividade à custa dos nossos direitos pessoais ou de restrições à própria criatividade, e enriquecer o domínio público em vez de o concessionar aos distribuidores. E não precisa ser uma solução perfeita porque basta ser melhor que o sistema que temos agora, o que não é difícil.

1- Financiar a criatividade, parte 3: de quem, a quem e o quê.

terça-feira, abril 28, 2009

Ontologia e bruxaria.

A linguagem serve tanto para agirmos sobre os outros, com promessas, mentiras, avisos e explicações, que facilmente esquecemos que uma representação simbólica apenas transmite ideias entre seres inteligentes. O sinal vermelho faz o condutor parar o carro, não pára um carro desgovernado. Mas a tentação da magia é forte e antiga. Implorar aos céus por chuva, rezar para afastar a tempestade ou a doença ou espetar alfinetes na representação de um inimigo na esperança que ele o sinta. Rituais, preces e invocações para manipular a natureza são tão ou mais velhos que a própria linguagem.

E ainda hoje são influentes. Muitos acreditam que se fez luz porque um deus disse “faça-se luz”. O padre transforma a substância da hóstia falando para o boneco. Literalmente. Um boneco que é sagrado pela mesma razão que faz espetar alfinetes no outro, a confusão entre o símbolo e aquilo que o símbolo representa. É essa confusão que faz o astrólogo pensar que Júpiter nos trama a vida só porque o julga representar uma treta qualquer. Que nos dá relutância em falar de coisas más por temer que as faça acontecer. E que faz muitos pensar, como o Miguel Panão, que uma ontologia não é algo que descreve o que existe mas sim «leis que definem a natureza da nossa existência»(1).

Isto está errado. Podemos definir o significado dos símbolos mas não podemos definir algo que não seja meramente conceptual. Algo como a «natureza da nossa existência». Essa é o que for e, tal como a rosa, tem o mesmo cheiro dêem-lhe o nome que lhe derem. Uma ontologia é uma representação simbólica daquilo que julgamos existir. É meramente descritiva, e nunca pode definir o que existe nem fazer com que exista.

A ideia que um deus criou as leis da natureza para obrigar o universo a ser assim também deriva desta confusão. As nossas leis têm poder sobre nós apenas porque queremos que tenham. Por si só, não fazem mais que representar conceitos, e no passado dia até 25 celebrámos um acto ilegal que, felizmente, levou à substituição de muitas leis neste país. E as leis da natureza nem isso pretendem ser. Apenas exprimem a nossa concepção da natureza. São tentativas de descrever a realidade, que já mudámos muitas vezes enquanto a realidade se manteve na mesma. Julgar que alguém pode criar a gravidade ou o indeterminismo quântico enunciando uma lei é tão disparatado como julgar que se pode transformar uma pessoa em sapo (ou uma hóstia em deus) dizendo hocus pocus.

O Miguel Panão escreveu também que não é «a favor de uma ontologia que se radica nas descrições do mundo, porque isso limita a possibilidade de pensar a ontologia para além das realidade materiais.»(1) É difícil perceber o que o Miguel Panão escreve, mas parece querer dizer que a ontologia não se deve limitar ao que podemos justificar como conhecimento. Ou seja, que é legítimo descrever conceptualmente entidades e relações sem sabermos nada acerca delas. Sem saber sequer se existem. Formalmente, concordo que sim. Podemos criar uma ontologia acerca do País das Maravilhas ou dos marcianos. Mas a ideia que basta enunciar algo para que, magicamente, se torne realidade já não é ontologia. É bruxaria.

1- Comentário em Deus é um frigorífico.

segunda-feira, abril 27, 2009

Um produto natural da natureza.

Afinal o dióxido de carbono não faz mal e isso do aquecimento global é tudo treta. Oiçam a explicação da Senadora Michelle Bachmann, republicana, do Minnesota.



Abraçar a ignorância torna tudo mais simples. Ridiculamente errado, mas simples.

Via Pharyngula.

domingo, abril 26, 2009

Financiar a criatividade, parte 3: de quem, a quem e o quê.

Em troca do meu trabalho recebo legumes, roupas e mais coisas em que converto o salário. E a liberdade de fazer o que gosto, o prazer de ensinar e de ser útil a alguém. Sem um nível de vida confortável teria de dar prioridade às primeiras. Mas como o salário chega para isso o resto torna-se mais importante. Se me oferecessem dez vezes mais para fazer um trabalho chato eu recusava. É importante lembrar que incentivo não é igual a dinheiro e quanto melhor o nível de vida mais importantes são os outros factores. Para estimular a criatividade não é preciso muito dinheiro. É preciso aplicá-lo bem.

É certo que os accionistas investem pelo lucro. Incentivar o investimento privado exige dar dinheiro. Mesmo assim, a concessão de monopólios pode ser má ideia. O monopólio sobre a venda de um medicamento dá lucro por cobrarem mais que poderiam num mercado livre. Por cobrarem a quem precisa do medicamento, obrigando o estado a comparticipar a compra. E se nós é que pagamos a conta, mais valia financiar directamente a investigação em vez de criar este sistema convoluto para enriquecer accionistas. Mesmo se o incentivo é só monetário dar dinheiro é melhor que inventar leis. Sempre sabemos quanto custa, quem paga e quem lucra.

O Desidério comete dois erros quando afirma que «o primeiro passo para garantir a continuidade da informação de qualidade, assim como da cultura em geral ou da ciência, é divulgar a ideia de que essas coisas custam muito dinheiro»(1). Apresenta o dinheiro como factor determinante, mas quando vivemos em segurança e conforto há outros factores muito mais importantes. E descura a natureza cooperativa da criatividade. Mesmo neste bloguezito o investimento colectivo dos leitores é muito maior que o meu. Se quinhentas pessoas perderem dois minutos com este post investem dez ou vinte vezes o que eu investi. Mais os comentários, que além de incentivar, inspiram com a crítica e contribuem para o resultado. Mesmo que, individualmente, eu seja o autor por ser o principal investidor neste blog*, o meu contributo é uma pequena fatia do esforço total. A criatividade é comunicação. Sozinho, sem o esforço também criativo dos que lêem e comentam, não fazia nada.

Ironicamente, o Desidério critica o «modo aristocrático» de pensar nestes problemas quando ele próprio sofre do seu maior defeito. «Não podemos ter a veleidade de pensar que a generalidade da humanidade é como nós. Isso revela uma grande falta de observação e sensibilidade. A verdade, desagradável, é que a maior parte da humanidade prefere gastar dinheiro em palermices e não em informação ou cultura de qualidade.»(1) Não é só o dinheiro. Se houvesse um comprimido para aprender cálculo diferencial muita gente daria mais dinheiro por isso do que daria pela Caras ou TV-Mais. O problema é que a “informação de qualidade” exige esforço da parte de todos. É isso que leva muitos a preferir ler a Caras em vez de estudar análise matemática. Não se pode compreender o problema da criatividade pensando deste modo aristocrático que considera o nobre autor o único participante activo e a plebe uma massa amorfa de consumidores passivos.

O Desidério propõe que cada um pague pelo acesso ao que aprecia. Mas pagar o acesso não é pagar o trabalho. Neste modelo o autor é o macaco que toca realejo e depois estende o chapéu. O gestor de direitos fica com o dinheiro e o macaco com amendoins. Não é uma forma eficiente, nem digna, de incentivar a criatividade. Apoiamos durante anos os jovens que querem ser engenheiros, cirurgiões ou professores, enquanto adquirem e demonstram as competências necessárias. Depois são livres de competir no mercado vendendo o seu trabalho sem a obrigação de ceder direitos sobre aquilo que criam.

Mas certas áreas da criatividade concessionámos aos distribuidores. Abandonámos os criadores. O jovem músico tem de vender os seus direitos às editoras para poder começar a carreira. Estas ficam com o poder legal de proibir o acesso à música. Ao autor e a todos nós que, ainda por cima, temos de financiar o policiamento dos nossos direitos. Muito poucos artistas ficam ricos, e só pela lotaria da publicidade e modas. Pelo número de cópias, como se essa fosse a medida do valor da criatividade.

O que devemos fazer é acabar com as restrições à distribuição e a cobrança pelo acesso a bens imateriais como ficheiros, programas e músicas. O que se deve pagar é o trabalho de criar. Quando é feito. Como os outros profissionais, os artistas devem ser apoiados durante a sua formação e negociar a sua remuneração sem depender de promessas vagas ou a troco de direitos. Infelizmente, tal como o Desidério, muitos confundem o acesso livre com o trabalho gratuito. É discussão para outro post, por isso ficam só dois exemplos. Disponibilizar as minhas aulas é dar acesso livre ao fruto de um trabalho que foi pago. Trabalho gratuito é este de desenlear confusões como as do Desidério.

* Com o devido reconhecimento ao Jónatas Machado pelo seu empenho com as teclas Ctrl, C e V.

1- Desidério Murcho, 19-4-09, Jornalismo de qualidade e palermices

sábado, abril 25, 2009

Treta da semana: Os hipersensíveis.

«Hipersensiveis, Higly Sensitive, Innate Sensitive, Empath, Criança Indigo, Criança Cristal, estes são alguns dos termos utilizados para referir todos aqueles que possuem Hipersensibilidade (sobre os estímulos sensoriais).»(1) Mas isto é mais que uma mera agregação de tretas. É científico. «É um dado cientifico que cerca de 15% a 20% da população é mais sensível aos estímulos». Mais sensíveis que quê? perguntam vocês. Também não sei. Presumo que sejam mais sensíveis que os 80% a 85% da população que são menos.

Estas estatísticas são fascinantes. É um dado igualmente científico que 48% dos condutores têm mais acidentes e 32% das crianças adoecem mais facilmente. E o grande problema do nosso sistema educativo é que mais de metade dos alunos têm notas piores que os restantes. Estes graves problemas só se resolverão quando houver uma noção elementar de estatística.

O autor do site também esclarece a origem da hipersensibilidade, que «decorre de um traço genético especifico, que pode ser herdado de país hipersensiveis ou simplesmente ser adquirido à nascença». Se este também for um dado científico vai revolucionar a genética molecular quando elucidarem o mecanismo que permite adquirir traços genéticos quando se nasce, em vez de nove meses antes, que é quando normalmente se adquire estas coisas.

Quem divulgou a hipersensibilidade foi Elaine Aron, autora do livro The Highly Sensitive Person, com um milhão de cópias vendidas (2). No site podemos fazer um teste para ver se somos altamente sensíveis ou se temos uma criança altamente sensível. O teste para as crianças tem vinte itens, cada um a ser marcado se for «verdadeiro ou pelo menos moderadamente verdadeiro para a sua criança, ou se já foi durante algum tempo». Visam identificar traços raros nas crianças, como «queixa-se quando a roupa faz comichão», «tem dificuldade em adormecer depois de um dia excitante», «faz muitas perguntas» ou «é muito sensível à dor». Com treze ou mais respostas afirmativas a criança é, provavelmente, muito sensível. Mas se não marcamos treze não faz mal. «se só uma ou duas questões forem verdadeiras para a sua criança, mas se forem extremamente verdadeiras, pode ser justificado dizer que a sua criança é altamente sensível». Eu deixava também um aviso: “Se a sua criança não passa este teste de hipersensibilidade e não for um boneco de madeira leve-a imediatamente ao médico.”

Há negócios que são bons mesmo em tempo de crise. Dizer às pessoas que são especiais ou, melhor ainda, que os seus filhos são hiper-mega-super-qualquer coisa, é sempre uma boa maneira de lhes vender tretas.

1- Hipersensibilidade.org
2- The Highly Sensitive Person
3- Is Your Child Highly Sensitive?

sexta-feira, abril 24, 2009

Um mar de piratas.

Na última semana os fundadores do Pirate Bay foram condenados a um ano de prisão e a pagar três milhões e meio de dólares (1). Por um juiz que é membro de várias organizações de defesa de copyright, às quais também pertencem os advogados da acusação (2). A seguir à sentença a IFPI exigiu a vários ISP suecos que bloqueassem o acesso ao Pirate Bay, o que estes recusaram (3), e alguém criou o Pirate Google (4), um site onde se encontra o mesmo que no Pirate Bay mas usando apenas o Google.

Com o julgamento, a sentença e, agora, o imbróglio com o juiz, o número de militantes do Partido Pirata sueco (5) duplicou para mais de 30 mil. Popular entre os jovens num país com uma abstenção típica de 73% nas eleições europeias é possível que consiga os 4% de votos necessários para eleger um deputado ao Parlamento Europeu (6). Não se vai tornar uma grande força política, mas este crescimento certamente chama a atenção dos outros partidos.

No Parlamento Europeu, o Comité para a Indústria, Investigação e Tecnologia adoptou uma emenda à directiva sobre telecomunicações, proibindo privar alguém de acesso à Internet sem o devido processo judicial (7). Rejeitam assim a “solução” francesa de cortar a Internet ao terceiro aviso, pelo alegado crime de copiar números, sem supervisão judicial, presunção de inocência ou direito de defesa. Mas como a quota das que dão no cravo não pode ultrapassar as dadas na ferradura, o Parlamento Europeu aprovou também a extensão do copyright sobre gravações de 50 para 70 anos (8). O raciocínio parece ser que 50 anos é pouco incentivo para gravar discos novos. Os vinte anos seguintes são cruciais para a criatividade dos octogenários.

Mais discreto foi o que aconteceu no Mininova, um tracker e fórum semelhante ao Pirate Bay (e que celebrou recentemente oito mil milhões de dowloads). Um utilizador do fórum criou um torrent duma actuação do cómico Louis CK. Pouco depois, o Louis CK comentou no fórum que não tinha nada contra a partilha de ficheiros mas pedia que retirassem aquele porque era um trabalho em curso que ele não queria distribuir inacabado. O próprio autor do torrent retirou-o e pediu aos administradores que o eliminassem do tracker (9). Um bom exemplo de como o juízo vai substituindo os juízes, apesar dos obstáculos.

Um obstáculo que está a desvanecer é a noção infundada que o autor tem o direito de proibir. Como se eu escrever isto aqui, por me dar na gana e sem me encomendarem o sermão, me desse algum direito moral de vos proibir seja o que for. De ler isto ao telefone ou enviar por email, de copiar à mão ou imprimir. Os direitos que eu tenho como autor são os direitos que tenho como pessoa. O direito de não me atribuírem o que não disse nem que atribuam a outros o que é obra minha. Essas proibições que tanto invocam não são direito nenhum.

A pena é que este obstáculo se desvaneça por pragmatismo e não por compreensão dos valores morais. Muita gente partilha coisas convencido que está a fazer uma maldade. Mas, intuitivamente, muitos também percebem que partilhar o que não custa dar aos outros é uma coisa boa. Em vez de reprimir isto devíamos aproveitar a facilidade com que se copia o digital para ensinar os mais novos a partilhar. Não só ficheiros mas também ideias, inspiração, valores e conhecimento. Não para substituir o capitalismo, que também faz falta, mas como uma demonstração saudável que não é preciso fazer tudo por dinheiro.

E o obstáculo maior ainda é o dinheiro. Tanto pela sua relação promiscua com os legisladores como por tentar legitimar o copyright enquanto protecção necessária à economia. Mas há que ver isto em perspectiva. Em 2008 vendeu-se 18 mil milhões de dólares de música no mundo todo (10). Se toda esta indústria falisse hoje, ao fim de um ano teria 0,5% do impacto que teve o colapso do sistema de crédito (11). É metade do mercado mundial de iogurte (12), que se vende a menos de um euro por pacote apesar de custar mais a fabricar que um CD. E as companhias de lacticínios também têm outros custos. O investimento em biotecnologia, a criação e preservação de estirpes microbianas, o controlo de qualidade, a distribuição, marketing, etc.

Mas copiar iogurte é legal. Põe-se leite morno na iogurteira, uma colherada de iogurte e a bicharada cresce de borla. Por isso quem vende iogurtes tem de vender pacotes práticos, vários sabores, iogurtes cremosos e essas coisas que atraem o comprador. E têm de vender barato. Se põem o iogurte a 10€ o pacote quem ganha dinheiro são os fabricantes de iogurteiras.

Por muito que a Danone chorasse, invocasse a propriedade das estirpes de lactobacilos ou vendesse iogurtes com uma licença proibindo o seu cultivo em leite morno, nunca aceitaríamos a criminalização do iogurte caseiro ou que viesse a ASAE a casa confiscar iogurteiras. É isto que temos de dizer às industrias do copyright. Se precisam de protecção comercial, pode-se pensar no assunto, mas sem afectar a nossa vida pessoal.

Obrigado pelos links ao Mama Eu Quero, ao Mário Miguel, ao Oscar Pereira, a um ou mais leitores anónimos e a também a quem me enviou alguns por email.

1- Gizmodo, Pirate bay found guilty
2- ZeroPaid, Pirate Bay lawyers demand retrial. Também no The Local e WinTech (este último em Português)
3- ZeroPaid, Swedish ISPs ignore request to block the Pirate Bay.. Também na WinTech, em Português.
4- The Pirate Google
5- Piratpartiet
6- Zeropaid, Could Pirate Bay Verdict Affect EU Elections?
7- Computing.co.uk, EU balks at French three-strike internet rules.. Em português no Sol e no Remixtures
8- Miguel Caetano, Remixtures, Parlamento Europeu estende direitos de autor dos artistas para os 70 anos
9- Zeropaid, Comedian Louis CK Asks Mininova Uploader to Remove Content
10- Reuters, Global music sales keep falling, pretty much everywhere, via Remixtures
11- BBC, Meltdown losses of '$4 trillion'
12- O iogurte é 13% (Euromonitor) do mercado global de lacticínios, que vale 275 mil milhões de dólares (Dairy reporter). Foi surpreendentemente difícil encontrar o valor do mercado global de iogurte na net. Só ia parar a sites de venda de relatórios de mercado...

quinta-feira, abril 23, 2009

Pensamento Crítico.

Alguns leitores devotos manifestaram-se preocupados por eu leccionar uma disciplina de pensamento crítico. Talvez por esquecer que dou aulas a adultos, ou talvez por reconhecerem a fragilidade das suas crenças, temem que o meu ateísmo desencaminhe os alunos. Provavelmente este post não os deixará descansados, mas não me importa. É só um pretexto para escrever sobre algo que me interessa.

Quando defendemos uma opinião, formamos uma crença ou tomamos uma decisão temos a tendência de agarrar a primeira que aparece e só depois, se sentirmos necessidade, racionalizar a escolha. Não é maldade nem incompetência. É porque, durante milhões de anos, as decisões mais importantes dos nossos antepassados foram tomadas com urgência e informação escassa. Os que ponderaram cuidadosamente se o restolhar era mesmo um leão e os que exigiram evidências objectivas antes de pensar mal dos estranhos que se aproximavam não chegaram a antepassados de ninguém. Durante muito tempo, o óptimo não foi só inimigo do bom mas também fez mal à saúde.

Hoje é diferente. As decisões importantes tendem ser a longo prazo e permitir ponderação. A informação é abundante, se a conseguirmos separar do ruído. Temos mais controlo sobre o que nos rodeia, mais responsabilidades e somos mais dependentes de uma compreensão rigorosa da realidade. Hoje precisamos de pensamento crítico. Deixar os nossos processos mentais a correr sozinhos enquanto esperamos o resultado já não serve como serviu antigamente. Hoje é preciso tomar conta de como pensamos e de como escolhemos actos, valores e crenças. E isto é como andar de patins. Qualquer um consegue, mas tem de aprender.

Avaliar argumentos é um bom treino. É útil por si e também porque um argumento é a expressão de um raciocínio. A capacidade de identificar conclusões e avaliar as inferências desde as premissas não só serve para fazer juízos acerca do que nos vendem mas, principalmente, acerca de como nós próprios pensamos. Por isso o pensamento crítico não ensina a provar que Sócrates é pai de um cão ou a fingir sinceridade como um bom pregador. Não é essa a argumentação que interessa. Ensina a dissecar o raciocínio, e a expor as suas peças e como encaixam, para que se possa julgar o seu mérito.

Eu desvio-me um pouco do programa típico de pensamento crítico, mais focado na argumentação, e dedico também algumas aulas à análise de modelos científicos. Não só porque lecciono a disciplina a futuros engenheiros mas também porque esta matéria mostra a vantagem do rigor conceptual e de distinguir claramente os modelos e a realidade que queremos compreender. A análise informal de modelos estatísticos e causais ajuda também a lidar com margens de erro, incertezas e a diferença entre causas e correlações, aspectos importantes de muitos problemas que enfrentamos.

Mas o principal é sempre a forma de pensar. Não é o conteúdo dos pensamentos. As hipóteses ou decisões em si não importam nestas aulas, onde se aborda temas que vão da astrologia às sondas em Marte e das aparições em Fátima ao direito à greve nas forças de segurança. O propósito destes temas é dar problemas abertos para os alunos explorarem sem se preocupar com a resposta certa. Isto é importante para podermos focar o processo de raciocínio. É mais difícil do que pode parecer à primeira vista, em parte pela nossa tendência de formarmos uma opinião antes de pensarmos porquê essa em vez de outra qualquer. E, em parte, pela dificuldade que temos em nos distanciar das ideias que analisamos.

Com duzentos alunos há sempre temas que incomodam alguém. Seja a astrologia, o criacionismo, os OVNI, os milagres, o futebol, a religião ou as medicinas alternativas. Não se pode evitar. Por um lado porque seria anti-pedagógico excluir qualquer tema por ser desconfortável quando a ideia principal é que o pensamento crítico nos serve porque pensamos, sempre que pensamos, e acerca do que for. Por outro lado porque este desconforto é em si resultado de uma falha que o pensamento crítico tenta corrigir.

Muitos me têm criticado, aqui e noutros sítios, de ser intolerante ou intransigente só porque tento ser claro no que digo. A prática comum para parecer aberto às ideias dos outros é envolver as suas em termos tão vagos e ambíguos que nem o próprio percebe o que diz. Ser frontal, julgam muitos, é ser fundamentalista. Mas são coisas diferentes. É mais vulgar a violência por ideias mal compreendidas do que por conceitos claros e objectivos. E a melhor forma de apresentar uma ideia à critica alheia é expondo-a com clareza. Por isso é importante sermos capazes de lidar com ideias claras, tanto as que nos são queridas como as que nos repugnam. E essa capacidade também se desenvolve com a prática.

Esta é uma época de esclarecimento. Não no sentido romântico do século XVIII mas no sentido prático de sermos uma sociedade de informação. Pela primeira vez na história, o cidadão comum tem acesso a mais informação do que pode processar. Temos de aprender a lidar com isso. Aprender a pensar correctamente. Não é preciso saber navegar para molhar os pés à beira-mar, mas no meio do oceano ou nos deixamos de tretas ou estamos perdidos.

terça-feira, abril 21, 2009

Ligações perigosas.

Paulo Santos é porta-voz do MAPINET*, um “movimento cívico” que «nasceu quase espontaneamente fruto de uma maior consciencialização de algumas pessoas que dependem económicamente (sic) das indústrias culturais»(1). Essas pessoas são a Associação do Comércio Audiovisual de Portugal, a Associación de Empresas del Video, a Associação para a Gestão da Cópia Privada, a Federação de Editores de Videogramas e outras que tal (2). Segundo o Paulo Santos, «A pirataria na Internet ajuda a financiar grupos terroristas e está ligado (sic) com o crime organizado.»(3)

Esta ligação absurda entre a partilha de ficheiros e terrorismo é mais uma fantasia do mundo dos Mapinetas, onde um grupo de associações de cobrança é um “movimento cívico”. O problema da indústria de distribuição é que o CD e o DVD são obsoletos. Podemos ter centenas de filmes num HDD, milhares de músicas no telemóvel e descarregar qualquer coisa em poucos minutos com um click. Culpam os clientes e forçam leis cada vez mais coercivas mas continuam a perder negócio porque já não servem para nada.

É verdade que, como um CD gravável é cem vezes mais barato que um CD de música, vender CD copiados era dinheiro fácil, com menos riscos que vender droga ou assaltar bancos. Mas isto era consequência dos monopólios sobre a distribuição. Um mercado livre e competitivo não permite a margem de lucro obscena que atrai os criminosos. Era por isso que estes vendiam CD copiados em vez de batatas ou pastéis de nata. Mas isso era dantes. Até nisto os Mapinetas estão desactualizados.

Hoje, nem ao preço da uva mijona se vende música em CD, e os jogos e filmes vão pelo mesmo caminho. Por causa da Internet, que afecta todos os distribuidores. Dentro ou fora da lei. A cópia pirata dava dinheiro antes da banda larga e dos discos de terabyte. Há uns anos via muitas vezes filmes e música pirata à venda à entrada do Metro. Mas a partilha de ficheiros acabou com esse negócio (4). Agora os vendedores à entrada do Metro vendem fruta, pão e bolos. Ou guarda-chuvas, quando está mau tempo. Ninguém quer comprar rodelas de plástico.

O Paulo Santos diz que «Em Portugal, o MAPiNET e as entidades que estão no MAPiNET têm indicações claras de que há ligações perigosíssimas.» E há mesmo. Não na partilha de ficheiros nem na venda de cópias ilegais, que já não dá dinheiro. As “ligações perigosíssimas” são entre as sociedades de cobrança e os legisladores.

É isso que faz com que a lei trate qualquer cópia como um crime económico e dê aos distribuidores acesso a informação privada apenas por acusarem alguém (5). É por isso que leis contra a nossa liberdade pessoal são negociadas à porta fechada, como se fossem meros tratados comerciais (6). E são essas ligações perigosas que nos podem sujeitar ao sistema preferido dos Mapinetas: «Pretende-se um aviso, um segundo aviso e, depois, eventualmente, cortar aquele acesso». Avisam e pronto, ficamos sem o meio de comunicação mais importante que temos. Que não serve só para falarmos ou consultar coisas. É onde pagamos os impostos, nos registamos como eleitores, requisitamos cartões de crédito, pagamos contas e vamos às compras.

Querem o poder de nos privar disto só com a acusação de não lhes comprarmos o que querem vender. Coisas que não nos interessa comprar e que valem muito menos que as liberdades que nos querem tirar. E sem juízes nem julgamento, só com a queixa. A partilha de ficheiros não está a financiar o crime organizado. É quem quer restringir o aceso à cultura que está a organizar com os nossos legisladores algo mais perigoso que muitos crimes. A repressão pela força da lei. É esta ligação perigosa que temos de quebrar.

1- MAPiNET, Manifesto
2- MAPiNET, Membros
3- TVI-24, 21-4-09, Pirataria na Internet ajuda a financiar terrorismo. Obrigado pelo email com o link.
4- TorrentFreak, 17-3-08, P2P File-Sharing Ruins Physical Piracy Business
5- IP Justice, 9-3-09, EU Passes Dangerous IP Law, Despite MEP’s Conflict of Interest, “Midnight Knocks” by Recording Industry Executives Get Go-Ahead
6- Wikipedia, ACTA

segunda-feira, abril 20, 2009

Deus é um frigorífico.

Durante muitos séculos teólogos e filósofos têm debatido como é que Deus pode operar sobre o mundo material. Finalmente, o Mats encontrou a resposta.

«O que o frigorífico faz é "suspender" os efeitos das leis da decomposição de modo a preservar os alimentos. O frigorífico não "viola" nenhuma lei apenas e só porque suspende os efeitos dos processos naturais. […] No que toca aos chamados "milagres" ocorre exactamente o mesmo. Deus opera no mundo material temporariamente ao suspender os efeitos de uma ou mais leis naturais para benefício humano. Ele não "viola" as leis da natureza. Por exemplo, quando o Senhor Jesus Cristo trouxe Lázaro dos mortos, será que as leis que operam na decomposição do tecido biológico estavam em operação? Certamente que sim, mas o Senhor suspendeu os efeitos (não a lei) para nosso benefício.»

Nem sei o que dizer. Sinto-me como um deputado da oposição que, depois de colocar uma pergunta importante sobre o orçamento, vê o primeiro ministro pôr um nariz encarnado, tocar a buzina duas vezes e sair do hemiciclo batendo no chão com as longas pontas dos sapatos. E eu sem a prática que os deputados têm com estas coisas.

1- Mats, Milagres não violam leis da ciência

Roto e nu.

Rita Lobo Xavier, professora de direito na Universidade Católica, escreveu recentemente no Público que «era fundamental aprender a reconhecer e a rejeitar os argumentos inválidos»(1). Um argumento é inválido quando a conclusão fica por justificar mesmo que se aceite as premissas. E a própria Rita Lobo Xavier dá um exemplo.

Partindo das premissas que «só enquanto homens ou mulheres [os seres humanos] devem ser protegidos contra as discriminações em função da raça, do sexo ou das preferências sexuais» e que «Os homens e as mulheres com preferências sexuais por pessoas do mesmo sexo não são impedidos de casar por causa da sua orientação sexual», conclui que «Não existe aqui qualquer discriminação: pelo contrário, a lei trata os homens e as mulheres como tal, independentemente das suas preferências sexuais.»

É fácil ver que o argumento não é válido. Vamos assumir que as premissas são ambas verdadeiras. Que homens e mulheres não devem ser discriminados, enquanto homens e mulheres, nem em função do sexo nem da orientação sexual. E vamos assumir que esta lei não discrimina quanto à orientação sexual. Daí não se pode concluir que não exista qualquer discriminação porque é possível discriminar o sexo sem discriminar a orientação sexual. E a lei que temos discrimina explicitamente o sexo dos nubentes. Só deixará de existir “qualquer discriminação” daquelas enunciadas quando a lei não impedir casamentos por motivo do sexo dos nubentes, tal como já acontece com a raça ou o credo. Também estes já foram motivo de impedimento legal, mas já não são.

E um argumento ser válido significa apenas que se aceita a conclusão caso se aceite as premissas. Como isto, por si, não obriga a aceitar as premissas, mesmo um argumento válido pode ser rejeitado. É outro problema do argumento que Rita Lobo Xavier apresenta. A primeira premissa diz que se deve evitar discriminar alguém somente enquanto homem ou mulher. Eu rejeito esta premissa. É enquanto pessoas que não devemos ser discriminados porque é por sermos pessoas que a discriminação é má. Sermos homens ou mulheres não tem nada a ver com isso. E rejeito também a premissa que esta lei não discrimina pela preferência sexual. Não o faz explicitamente, mas ao discriminar os nubentes quanto ao sexo acaba por discriminar também preferências sexuais, proibindo todos os homossexuais de casar de acordo com as suas preferências.

E além daquilo que o argumento enuncia explicitamente, também o que fica por dizer pode levar à sua rejeição. Por exemplo, «Este ambiente de argumentação manipulada contribui para que se encare com grande leviandade as consequências da adulteração do casamento civil». Em rigor, isto é apenas uma afirmação e não um argumento explícito. Mas, implicitamente, a afirmação assenta em duas premissas omitidas. Que permitir o casamento homossexual adultera o casamento civil e que advêm daí consequências que não devem ser encaradas com leviandade. Nenhuma das premissas se aproveita.

O casamento é a união de duas pessoas. Essa união, entre essas duas pessoas, não se adultera por causa do sexo de outras duas pessoas que, algures, se unam pelo mesmo processo. Nem há consequências de monta. Neste momento, dois homens casarem-se em Badajoz não tem quaisquer consequências para o meu casamento. Não vejo que mal advenha se um dia fizerem o mesmo em Elvas. O perigo de apoiar argumentos ou afirmações em premissas escondidas que não sejam consensuais é dar a sensação de defender um preconceito que se sabe indefensável. O leitor estranha que se invoque consequências sérias sem que sejam evidentes nem se explique quais são.

À parte destes pequenos detalhes, estou inteiramente de acordo com o artigo. É mesmo fundamental sermos capazes de rejeitar argumentos inválidos, assentes em premissas dúbias ou cujo suporte se esconda da vista por saber-se inadequado.

1- Rita Lobo Xavier, Público, 15-4-09, Argumentação inválida e manipulação. Não encontrei o texto disponível no site do jornal, mas está em vários sitios, como aqui. Obrigado a quem me enviou o email com o artigo.

sábado, abril 18, 2009

Treta da semana: A honestidade do milagre.

O Bispo Auxiliar de Lisboa, Carlos Azevedo, escreveu ontem no Correio da Manhã sobre o que chamou “desonestidade ateísta”: «Porque respeito e considero o ateísmo atitude séria, estranho esta campanha anticatólica, mascarada de ateísta. Afirmar que Nuno Álvares Pereira foi canonizado graças a um milagre que ridicularizam, é desonesto.»(1)

Eu, ateu, não respeito o ateísmo nem o considero intrinsecamente sério. Enquanto atitude, o meu ateísmo pessoal é tão sério quão sério me sinto no momento. Sou ateu tanto a sorrir como a franzir o sobrolho. E enquanto ideia acerca deste universo o ateísmo não merece respeito. Nem deve ser respeitado. Como qualquer ismo, deve ser avaliado e discutido sem o pudor e a parcialidade que o respeito obriga. O respeito reservo-o só para quem sente. Não o desperdiço em ideias abstractas. E uma forma de respeitar as pessoas é precisamente pela critica frontal e justificada das ideias que propõem. Menos que isso é condescendência ou aldrabice, e nenhuma dessas é respeito.

A primeira ideia a criticar é que os ateus que troçaram do milagre do óleo conduzem uma «campanha anticatólica, mascarada de ateísta.» Não é verdade. Se há campanha é antitreta. Aos católicos que se sintam especialmente visados recomendo que dependam menos dos milagres para a sua fé ou que mudem de Papa. Melhor ainda, façam ambas.

Mas a tese central de Carlos Azevedo é ser desonesto «[a]firmar que Nuno Álvares Pereira foi canonizado graças a um milagre». No entanto, ele próprio admite que o milagre foi uma das condições necessárias à canonização: «A canonização […] tem como razão primeira as virtudes fora do comum [...]: entrega total ao serviço da pátria, confiança absoluta em Deus, perdão, partilha, serviço aos pobres. A segunda prende-se com a fama de santidade[...]. Só em terceiro lugar se atende, como confirmação, à ocorrência de um milagre».

As criticas dos ateus e da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) não visaram as virtudes patrióticas de Nuno Álvares Pereira nem a opinião popular. Não me oponho que o considerem um patriota nem me diz respeito que Guilhermina de Jesus lhe peça milagres. A crítica foi à confirmação por um milagre que não é preciso ridicularizar de tão ridículo que é. E esta crítica não depende do milagre ser a única razão para canonizar o estimado general. Haver outras razões é irrelevante. A fantochada é a mesma.

E, por falar em desonestidade, Carlos Azevedo afirma também que «É o mesmo anticatolicismo primário a motivar o desacordo com o facto de o Presidente da República integrar uma Comissão de Honra que promove comemorações destinadas a valorizar a dimensão nacional de Nuno Álvares Pereira.». Isto é falso. O problema que a AAP apontou não foi a valorização da “dimensão nacional” de ninguém (2). O problema é o Presidente da República e vários dignatários do governo representarem o nosso país numa missa católica, no Vaticano, celebrada pelo Papa para comemorar o selo de “santo” que esta igreja atribui ao Nuno Álvares Pereira. Que não é santo por ter sido bom general ou bom português. É por ter demonstrado «confiança absoluta em Deus». No deus dos católicos, entenda-se. Se fosse ateu, judeu, muçulmano ou budista o Papa não o canonizava, por muita virtude que tivesse.

Como respeito as pessoas aceito, e defendo, que cidadãos como Aníbal Cavaco Silva e Carlos Azevedo são livres de crer no que quiserem e o celebrarem como entenderem. Mas esse mesmo respeito pelas pessoas faz-me opor à participação oficial do estado português nesta missa. A condecoração da santidade católica exalta e reconhece a fidelidade ao deus dos católicos. Tanto por decência como pela constituição o estado deve isentar-se destas matérias, não galardoando ou censurando ninguém por fidelidade a qualquer deus. E uma parte integrante deste processo de canonização é a crença supersticiosa que o fantasma de Nuno Álvares Pereira vagueia pelo éter, ouve preces e convence esse deus a fazer milagres.

Carlos Azevedo conclui, como é costume nestas coisas, afirmando que «A identificação [...] entre religião e superstição é enganadora e velha.» Velha, é. Tão velha como ambas. Mas que é enganadora, como também é costume, só afirma. Como muitos outros, fica aquém de explicar a diferença entre a superstição e a crença em milagres.

Obrigado ao Bruce Lóse pelo link.

1- Carlos Azevedo, CM, 17-4-09, O Alicerce das Coisas, Desonestidade ateísta
2- Comunicado da AAP, 5-4-09, A canonização de Nuno Álvares Pereira (no Diário Ateísta)

quinta-feira, abril 16, 2009

Bom e barato, IX

O Gimp (GNU Image Manipulation Program) serve para desenhar, retocar fotografias e compor imagens. Tenho estado a usá-lo e parece-me ter tudo o que o Photoshop tem. Pelo menos tem tudo o que alguma vez usei no Photoshop, mais uma data de coisas que não sei para que servem e, certamente, um punhado mais que nem imagino. E, além de gratuito, é mais pequeno e mais rápido a carregar.

Tenho estado também a usar o OpenOffice cada vez mais. Tal como o Gimp, parece fazer tudo o que faz o equivalente pago, é mais pequeno e até gosto mais do aspecto. O problema é a inércia de ter todos os documentos antigos em formatos Microsoft, bem como quase tudo o que me enviam. Mas como agora muita gente está a usar o Office 2007 e eu não quero uma coisa ainda mais inchada que o Office XP, acabo por ter de converter os documentos de qualquer forma. Uma boa desculpa para largar as coisas do tio Gates.

Já tinha mencionado o OpenOffice em 2007, noutro contexto. Nessa altura, o IPQ formou uma comissão técnica para a normalização de documentos digitais. A Microsoft estava lá mas a Sun, que promove o OpenOffice e normas abertas para documentos, não pôde participar porque, disseram, não havia espaço na sala (1). O sucesso da Microsoft deve mais aos cotovelos que ao software. Outro exemplo disso é o Windows que vem instalado nos computadores que compramos, pelo qual pagarmos sem nos perguntarem se queremos nem nos dizerem quanto custa. E custa. Quem quiser saber mais sobre este imposto Microsoft pode visitar o site da campanha Não Quero Imposto M$.

Deixando agora o software, descobri recentemente o Mailinator. É um serviço gratuito que cria uma caixa de correio sempre que recebe um email para qualquer endereço num dos seus servidores. Por exemplo, se alguém enviar um email para enderecotodoxpto@mailinator.com, se não existia passa a existir. E para ler o email nessa caixa de correio basta ir ao site e escrever o endereço. Nem sequer tem password. Não serve para ter uma conta de email pessoal mas é óptimo para os todos os sites chatos que exigem um endereço de email para registo. Basta dar um endereço no Mailinator e ir lá ver a senha, link ou o que for que mandam quando nos registamos. Sempre alivia um pouco o spam no nosso email a sério.

Para terminar, uma notícia. A Encarta vai fechar. Esta enciclopédia da Microsoft foi bastante famosa e fez frente à Enciclopédia Britânica. Mas isso foi antes da Wikipedia. Sem a protecção de monopólios legais nem uma empresa como a Microsoft consegue enfrentar milhões de pessoas a colaborar por gosto.

1- Copy Vai-te...

quarta-feira, abril 15, 2009

A tal coisa do estatuto...

Numa conversa que ficou pendurada há mais de um mês (e peço desculpa pela demora), o Cordeiro Lobo afirmou que «o único critério com alguma validade para fundamentar a tomada de decisões acerca da vida humana é precisamente o estatuto do ser em que existe vida humana.»(1) Discordo. “Estatuto” é um termo ambíguo que pode conotar algo arbitrário e meramente convencional. Como o estatuto de doutor honoris causa ou de aposentado. Nesse sentido o estatuto é moralmente irrelevante. E mesmo quando denota algo mais objectivo, como o estatuto de maior de idade, remete para critérios que podem não ter qualquer peso moral. Por isso se o tal estatuto de ser humano se baseia em algo moralmente pertinente, não o será por ser estatuto mas por aquilo em que se baseia. Então, proponho, esqueçamos o post-it a dizer “com estatuto de humano” e foquemos as razões que o justificam. Essas sim serão o fundamento para tomar decisões acerca da vida. E nem necessariamente só da humana.

Na mesma conversa, o Bernardo Mota revela outro problema de focar isto do estatuto. Eu propus que, ao contrário do aborto que elimina um embrião saudável implantado no útero, a criação de um embrião em laboratório não levanta problemas éticos. O Bernardo discordou. «Se bem percebi, antes da escolha entre implantar ou não implantar o embrião, a vida dele tem valor nulo, ou pelo menos, indiferente. Mas, se ele for implantado, então já passa a ter valor positivo, e a questão deixa de ser indiferente. […] Por muitas voltas que dê, olhando o embrião de vários prismas, parece-me ser RIGOROSAMENTE o mesmo embrião, quer fora do útero, quer implantado nele.»

Pode ser o mesmo embrião. Pode até ter o mesmo estatuto. Mas o que importa na ética é fundamentar as normas que regulam as nossas decisões (a moral). Por isso o problema ético é um de comparar as diferentes alternativas. Se eu estou às portas da morte com uma infecção, o meu estatuto, e o valor da minha vida, é o mesmo quer haja ou não antibiótico suficiente para me salvar. Mas a moralidade do médico decidir deixar-me morrer depende muito das alternativas que estavam ao seu alcance.

É isto que se passa com o embrião. Não é o seu valor ou estatuto que está em causa mas o valor que as alternativas representam para ele. Se a escolha é entre sobreviver uns dias numa caixa de Petri ou não ser sequer criado tanto-lhe faz o que escolhermos. Qualquer moralismo que se faça disto será mera consequência trivial de inventar um “estatuto”. O Bernardo escreveu que «é imoral colocar embriões nessa situação de não implantação». É, mas só se a implantação é uma alternativa praticável. Se não for, então tanto faz.

O caso do embrião implantado no útero é diferente não por o embrião ser outro ou ter outro estatuto mas porque as alternativas acessíveis são diferentes. Nesse caso a escolha é entre terminar a sua vida ou deixá-lo viver sete ou oito décadas como um de nós. Isso, para aquele ser, é muito mais relevante que meia dúzia de dias numa caixa de Petri, independentemente do rótulo que lhe ponham ou da opinião que tiverem dele.

Cada vez mais me parece que esta fixação nos estatutos é um empecilho. Não importa a designação que damos àquilo que cada coisa é, se lhe chamamos “pessoa”, “criança”, “feto” ou “colónia eucarionte”. O que devemos considerar é o valor que têm as consequências de actos deliberados, para quem estes actos afectam.

1- Treta da Semana: O valor das pontas.

terça-feira, abril 14, 2009

Como vender várias vezes a mesma coisa.

O Kindle 2, o novo leitor electrónico da Amazon, tem um sistema de síntese de voz que permite ouvir os textos. A novidade não é grande; há muitos programas que podem fazer isto em qualquer computador. Mas preocupou Roy Blount, o presidente da Author's Guild, a SPA dos Estados Unidos. «Kindle 2 consegue ler livros em voz alta. E o Kindle 2 não paga a ninguém por direitos sobre audio»(1). Sob pressão desta organização, a Amazon cedeu e decidiu alterar o sistema «para que os detentores de direitos possam decidir, para cada título, se querem que o sistema de síntese de voz seja activado ou desactivado»(2). Entenda-se que o detentor dos direitos não é a pessoa que comprou um aparelho para ler e ouvir textos e que pagou pelo texto que tem no aparelho. Isto refere-se ao direito de quem quer vender o mesmo livro várias vezes, uma para ler, outra para ouvir.

Outro exemplo do ridículo destas leis é o I-Pod com 40 músicas que o presidente Obama ofereceu à rainha Isabel II de Inglaterra. A doutrina da primeira venda estipula que, uma vez vendido um suporte material de um conteúdo sob copyright, o comprador tem automaticamente o direito de dar ou vender esse objecto que comprou. Um livro, quadro ou cassete, por exemplo. Mas com os conteúdos digitais compra-se uma “licença de utilização” que não pode ser vendida nem transmitida a outros. À luz destas licenças, o presidente dos Estados Unidos é um pirata que distribuiu conteúdos protegidos sem a devida autorização dos detentores de direitos (3).

Estas tretas só vão acabar quando se reconhecer que o trabalho criativo é um serviço que deve ser remunerado em função do esforço e da qualidade do serviço prestado e não à posta, dúzia ou quilo do que quer que tenha resultado da actividade.

Tudo via o blog do Larry Lessig.

1- New York Times, 24-2-09, The Kindle Swindle?
2- New York Times, 27-2-09, Amazon Backs Off Text-to-Speech Feature in Kindle
3- EFF, 2-4-09, iPods, First Sale, President Obama, and the Queen of England

segunda-feira, abril 13, 2009

Miscelânea Criacionista: A ciência é falível.

Os criacionistas gostam de apresentar listas de hipóteses científicas que foram aceites numa altura e mais tarde rejeitadas. Julgam que isso reforça o criacionismo. Mas os erros de datação demonstram tanto que a Terra tem seis mil anos como os lances falhados do Ronaldo provam que eu sou o melhor futebolista do mundo. E é um tiro no pé. Porque é precisamente a nossa falibilidade que torna a ciência tão importante. Precisamos de um método para detectar e corrigir erros. E o maior erro de todos é rejeitar a possibilidade de ter cometido algum.

Um exemplo do Marcos Sabino é a polémica acerca de pegadas humanas encontradas no México, descritas como tendo quarenta mil anos de idade. Segundo o Marcos, «Este episódio revela bem as areias movediças dos métodos de datação. Foram empregues 5 métodos de datação diferentes. A idade menor deu 38 mil anos. A maior deu 1,3 milhões de anos. Depois é uma questão de escolha»(1). As pegadas foram encontradas num depósito de cinza vulcânica (2) e a descoberta é polémica porque sugere uma colonização da América muito anterior ao que é aceite e porque a datação destes vestígios é difícil. A cinza vulcânica forma-se pela desintegração do solo e magma em fragmentos diminutos, durante uma erupção. Por isso estes depósitos são misturas de rochas com idades diferentes. Além disso quer-se datar as supostas pegadas, que podem ter a idade do depósito de cinza ou resultar de processos mais recentes. O Marcos Sabino intitulou o post «As pegadas que mostram a pessegada que é a Teoria da Evolução», mas o que este episódio mostra é o contrário. Mostra que a ciência tem o cuidado de questionar as premissas e uma atenção crítica aos detalhes.

Outro exemplo do Marcos Sabino é o de um depósito de basalto no rio Colorado que foi datado em 150 mil anos, nos anos 70. Mas essa idade é inconsistente com certas estruturas à superfície da rocha, que o rio teria erodido se fossem tão antigas. Por isso decidiu-se balizar a idade da rocha com várias técnicas. O Marcos descreve assim este trabalho: «Estas foram as idades obtidas (valores em milhares de anos e por ordem crescente): 8; 15; 16; 17; 19; 19,6; 20; 23; 28. Concluíram que a idade das lavas é de 20 mil anos.[...] No final deve ser somar tudo e tirar a média.»(3)

Se o Marcos leu o resumo do artigo que citou (4) deve ter reparado que a estes valores estavam associadas margens de erro. Como é normal em qualquer medição. O primeiro é de 8 ± 19 mil anos, determinado em quatro amostras pelo método de 39Ar/40Ar. Este método substituiu, em grande parte, o método de datação por K/Ar que deu a estimativa original de 150 mil anos. Mas, tal como o antecessor, pode ter uma margem de erro grande, especialmente em minerais tão recentes. Daí que o intervalo estimado pro este método vá de zero a 27 mil anos de idade.

As outras datas foram obtidas, de várias amostras, por técnicas diferentes como a comparação do magnetismo da amostra com o perfil de variação do campo magnético da Terra ou a medição de 3He, produzido perto da superfície da rocha pelo bombardeamento regular de raios cósmicos. O trabalho não foi calcular a média de um conjunto aleatório de valores. Foi uma análise metódica de muitas peças de evidência. Isoladamente, nenhuma seria suficiente para fundamentar uma conclusão. Mas, como um todo, justificam confiança nesta nova estimativa. O valor aproximado de vinte mil anos é compatível com a erosão observada e está dentro das margens razoáveis de erro das várias medições por métodos independentes.

É irónico que os criacionistas critiquem esta forma de mudar ideias e corrigir erros. É precisamente este o maior valor da ciência. Nos anos 70 propôs-se uma idade de 150 mil anos para aquela rocha porque alguma evidência o sugeria. Mas esta estimativa foi questionada por ser incompatível com outras observações e, recolhidos mais dados, concluiu-se que a rocha era mais recente. Não foi por fezada, pancada ou apetite. A ciência substitui hipóteses rejeitadas por outras com um fundamento mais sólido e que, objectivamente, merecem mais confiança. É este critério que permite à ciência progredir em vez de estagnar ou simplesmente vaguear de hipótese em hipótese ao sabor da crença pessoal ou do carisma dos pregadores.

A alternativa do Marcos é datar tudo pela bíblia. Seja que rocha for, tem seis mil anos e está o caso arrumado. Dá pouco trabalho e nunca é preciso mudar de opinião. Mas este método de fechar os olhos, tapar os ouvidos e gritar “la la la” é pouco fiável para compreender seja o que for. Mais vale tentar encaixar as evidências em teorias coerentes e cada vez mais sólidas, mesmo que isso obrigue a rejeitar algumas crenças pelo caminho e a reconhecer que não somos infalíveis. Nem nós, nem os livrinhos que escrevemos.

1- Marcos Sabino, 10-4-09, As pegadas que mostram a pessegada que é a Teoria da Evolução
2- Site do projecto: Mexican Footprints
3- Marcos Sabino, 11-4-09, Rio Colorado - Um grande exemplo da fiabilidade dos métodos de datação
4-Wendell Duffield et. al., Multiple constraints on the age of a Pleistocene lava dam across the Little Colorado River at Grand Falls, Arizona. Geological Society of America Bulletin, Volume 118, Issue 3 (March 2006), pp. 421–429

domingo, abril 12, 2009

Treta da semana: Impor o quê?

«Não há regime democrático sem a protecção daqueles que não pensam de acordo com a maioria.»

Começa assim o artigo do Francisco Vieira e Sousa* no Público de ontem. Mas não é contra a censura, a prisão de dissidentes políticos, a discriminação de minorias ou algo do género. É contra a educação sexual. Como é costume em quem defende tretas, o Francisco Vieira exige que se proteja uns das ideias dos outros. E o raciocínio é tortuoso. «Ninguém tem o direito de impor a todos os pais qual é forma como deve a escola ensinar aos seus filhos a "melhoria dos relacionamentos afectivo-sexuais dos jovens" ou o que é a "noção de família".» A educação é dos filhos. O que está em causa aqui não é o que o estado impõe aos pais mas sim as restrições que os pais querem impor à educação dos filhos.

Concordo que haja limites para o que a escola ensina e como o ensina. Não deve traumatizar as crianças. Numa aula sobre a segunda guerra mundial ou a inquisição deve-se evitar imagens ou descrições gráficas que não sejam adequadas à idade dos alunos. E também na televisão pública. Ontem deu na RTP a história do senhor crucificado. É sempre a mesma mas, se há quem goste, compreendo que a passem todas as páscoas. Só não é razoável fazê-lo às quatro da tarde. O homem a gritar e espernear de dor enquanto lhe pregam os braços à cruz, com jorros de sangue e closeups dos pregos, é coisa para dar à noite quando as crianças estiverem a dormir. Essa forma de ensinar deve ser evitada.

E a escola não deve mentir. Como faz na treta da educação religiosa que temos, onde cada aluno leva com a fábula preferida dos pais em vez de aprender os factos acerca de quem acredita no quê. E o que motiva esta oposição à educação sexual é o mesmo que motiva a oposição a uma educação religiosa adequada. Há pais que pensam que educar é vedar o acesso a certos factos para melhor manipular opiniões. Por isso não querem que os filhos aprendam que há muitas religiões e que cada uma se diz mais verdadeira que as outras. E é por isso que querem ser só eles a dizer aos filhos o que é uma família, um “relacionamento afectivo-sexual” ou que formas de contracepção existem.

Este projecto-lei não impõe nada aos pais. Os pais continuam livres de ensinar que só se pode ter sexo depois do casamento, que só o casamento católico é que conta e que uma família é sempre um homem, a “sua” mulher e as crianças que deus mandar. O propósito da educação sexual é mostrar que nem todos pensam o mesmo. É mostrar os factos. Que há famílias sem filhos, ou com pais divorciados ou casais do mesmo sexo. Que há pessoas que usam contraceptivos ou que têm relações sexuais antes do casamento. E talvez seja este o papel mais importante da escola. Mostrar às crianças que há mais coisas que aquilo que os pais julgam, sabem, aprovam ou querem que elas aprendam.

Aos pais continua a competir educar os filhos, mas educá-los não é moldar-lhes o cérebro. É prepará-los para compreender a realidade e para formarem as suas próprias opiniões. Esta liberdade, naturalmente, preocupa os pais. Eu também não quero um filho padre ou criacionista. Mas não é “protegendo-os” destas ideias que os vou educar. É um facto que há pessoas que discordam de mim, e importante que os meus filhos saibam disso.

Num regime democrático não temos só de reconhecer o direito daqueles «que não pensam de acordo com a maioria». Temos também de reconhecer o direito dos que não pensam de acordo com qualquer minoria, seja os pais dos alunos ou o Francisco Vieira. E é o direito de discordar que temos de reconhecer, e não o suposto direito de vedar a alguém o acesso à informação de que não gostamos. Porque também os filhos têm direito de discordar dos pais e porque a educação é muito diferente da ignorância selectiva.

* Francisco Vieira e Sousa é secretário-geral do Fórum para a Liberdade e Educação. O artigo citado foi reproduzido em vários blogs. Por exemplo, aqui.

sábado, abril 11, 2009

Diz que é uma espécie de moral.

Muito do valor da nossa civilização é fruto do esforço colectivo para fundamentar a moral em algo que todos partilhem. O progresso tem sido lento e difícil, um longo caminho desde que os filósofos gregos começaram a pensar sobre o que é o bem e como devemos ser e agir. Mas, graças a este projecto em curso, reconhecemos hoje que as crianças também são gente, que os animais merecem consideração, que ninguém é menos que os outros só por ter aquele sexo ou cor da pele, ou mais que os outros por nascer naquela família ou ter um nome comprido.

O progresso na ética é difícil porque exige participação e consenso. É preciso que a maioria aceite os mesmos factos e adopte os mesmos valores, o que pode demorar muitas gerações. Mas é possível progredir sem coação quando os factos são verificáveis e os valores assentam na nossa capacidade de perceber a posição do outro. Por exemplo, durante muitos séculos a escravatura era socialmente aceite e as crianças eram consideradas propriedade dos pais. Mas é um facto que tanto crianças como escravos são gente. Sentem, pensam, têm vontade de um futuro, e isso qualquer um de nós pode constatar. E qualquer pessoa normal pode imaginar-se na posição do injustiçado e perceber o valor dos direitos das crianças ou condenar a escravatura. Desta forma não é preciso ameaçar sanções ou prometer recompensas para persuadir alguém a distinguir o bem e o mal.

As religiões têm atrapalhado este processo. Propagam os seus valores com promessas e ameaças, o que é imoral e fomenta conflitos sempre que não conseguem impor um consenso à força. Fossilizam mentalidades insistindo no ritual, na tradição e no sagrado bolor das velhas escrituras, o que dificulta a correcção de erros passados. E, nas religiões, nem os factos são confirmáveis nem os valores universais. As religiões distinguem-se por dar suma importância ao que, de tão arbitrário que é, se torna irrelevante para quem estiver de fora.

Por exemplo, o Bernardo Mota transcreveu no seu blog uma rábula do Nuno Serras Pereira, que compara a distribuição de preservativos a dar luvas de boxe aos homens que batem nas mulheres. A ideia é que devemos modificar os comportamentos em vez de dar profiláticos. Mas é uma comparação ridícula para quem não partilhar a sexofobia católica. O mal da agressão é evidente se nos imaginamos no lugar do agredido. Com ou sem luvas de boxe, poucos gostam de levar pancada e mesmo os que gostam reconhecem ser desagradável para quem não goste. Mas se imaginamos um acto de sexo consensual não se nota mal nenhum por ambos os parceiros decidirem usar preservativo. Ninguém sofre nem é sujeito a algo contra a sua vontade. O “mal”, neste caso, vem só da oposição arbitrária ao látex.

Por isso não há consenso acerca dos valores característicos de cada uma religião. O Miguel Panão escreveu que «Uma relação sexual em período infértil é um acto de Deus, porque foi assim que nos fez. No caso dos contraceptivos, é o casal que toma nas suas mãos os poderes de decidir ou não sobre a vida, colocando de lado a acção de Deus.» (2) Isto parte da premissa implícita que esse deus tem alguma coisa a ver com o que o casal faz na cama. Mas não é evidente que tenha. Seria uma intromissão ilegítima vinda do carpinteiro que fez a cama, do pedreiro que fez a casa ou dos pais do casal, que os criaram. Se eu me imaginar no papel de criador do universo também não vejo que legitimidade isso daria para me intrometer na intimidade alheia. Não há forma de partilhar este juízo de valor do Miguel. Ou se decide, porque sim, que o deus do Miguel é que manda na nossa cama ou se discorda da premissa e o argumento fica sem fundamento.

E nada justifica o alegado facto. Não temos evidências que o deus do Miguel exista, nada indica que, se existir, se preocupe com os nossos actos sexuais e mesmo que se preocupe não há indícios que prefira o calendário ao látex. Até pode ser o contrário. O próprio Miguel afirma que «Deus é insondável e os seus caminhos Misteriosos»(2). Com maiúscula e tudo. Com tanto mistério não há razão para crer que o Miguel saiba alguma coisa sobre o que afirma. Não faz mais que especular, tal como fazem os padres, os bispos e tantos outros auto-proclamados porta-vozes dos deuses.

Isto não é um bom fundamento para a moral. É um bom tacho para quem convencer os outros que sabe o que um deus quer e que isso importa para alguma coisa. Mas nem é uma maneira fiável de distinguir o bem e o mal nem nos dá uma base comum para resolver divergências de forma racional.

1- Bernardo Mota, 6-4-09, Luvas de boxe.
2- Comentário em Instrumentalizar a sexualidade

quinta-feira, abril 09, 2009

O milagre como causa.

Em breve será canonizado o Nuno Álvares Pereira, guerreiro, patriota, cristão devoto e oftalmólogo honoris causa. Uma parte do processo de canonização «consiste no exame dos milagres atribuídos à intercessão do “venerável”. Se um deste milagres é considerado autêntico, o “venerável” é considerado “beato”. Quando após a beatificação se verifica um outro milagre devidamente reconhecido, então o beato é proclamado “santo”, como acontecerá com D. Nuno Álvares Pereira.» (1)

O primeiro problema é concluir que o milagre é autêntico, como apontou David Hume. Um milagre é algo contrário às leis da natureza. Se estiver de acordo com o que consideramos natural não é um milagre, mesmo que seja invulgar. Usando o exemplo de Hume, uma pessoa aparentemente saudável morrer de repente não é um milagre. É raro mas não viola qualquer lei da natureza. Milagre é ressuscitar depois de morto três dias. Isso sim violaria o que esperamos ser a forma como a natureza opera.

Mas só apontamos como uma lei da natureza aquilo em que temos o máximo de confiança que se pode justificar. Aquilo que verificamos ocorrer sem excepção. É por isso contraditório afirmar que algo é uma lei da natureza e, ao mesmo tempo, que um milagre a violou. Se conhecemos uma excepção já não podemos concluir que é uma lei da natureza. Ou, como argumentou Hume, não podemos aceitar um milagre com base no testemunho seja de quem for porque nunca o testemunho de uma pessoa, ou mesmo de muitas, pode ser um fundamento mais sólido do que aquele que exigimos para designar algo como lei da natureza (2).

Outro problema é identificar o milagreiro responsável. A senhora Guilhermina pediu a cura ao Condestável mas, na sua aflição, certamente também terá proferido muitos “Ai Jesus”, “Valha-me Nossa Senhora” ou “Deus me acuda”. E nada impede que outro santo se tivesse compadecido do seu sofrimento e, mesmo sem invocação, pedido a cura ao Altíssimo. É por isso precipitado, e especulativo, proclamar Nuno Álvares Pereira como o milagreiro neste caso.

E há ainda outro problema. Mesmo supondo que houve milagre e que Nuno Álvares Pereira tenha pedido a Deus que curasse o olho da senhora Guilhermina, só podemos atribuir a cura ao beato se estabelecermos uma relação causal entre o pedido, o milagre e a cura. Ou seja, se pudermos concluir que a intercessão do beato causou a intervenção divina e que a resultante suspensão das leis da natureza causou a cura à senhora Guilhermina. Sem estabelecer uma relação causal apenas podemos constatar uma co-ocorrência que pode ser mera coincidência. E não se quer santos por coincidência. Julgo eu.

Uma causa é um factor sem o qual o efeito não ocorre e que obriga a ocorrência do efeito se estiver presente, sendo todos os outros factores constantes*. Por isso podemos inferir uma relação causas se controlarmos os outros factores. Por exemplo, num grupo de pessoas com lesões oculares causadas por óleo quente testamos uma terapia em metade e comparamos os resultados com os restante, não tratados, que servem de controlo. Assumindo que todos os outros factores são semelhantes ou aleatoriamente distribuídos pelo grupo, qualquer correlação é indicativa de uma relação causal entre terapia e cura. Infelizmente, isto não se pode fazer com santos milagreiros. Pode-se fazer com médicos, medicamentos ou qualquer terapia mas, por alguma razão, os santos iludem qualquer tentativa rigorosa de examinar o seu trabalho.

A outra forma de estabelecer uma relação causal entre é conhecendo o mecanismo pelo qual uma causa produz um efeito. Se a bola branca bate na bola preta e esta última começa a rolar posso afirmar que o seu movimento foi causado pela colisão porque compreendo o mecanismo. Só que isto também não se aplica aos milagres. O mecanismo pelo qual os santos pedem favores a Deus pode ser semelhante ao que se passa por cá, mas o passo seguinte é um mistério absoluto.

Mesmo assumindo que Deus suspendeu a operação normal da natureza no momento da cura da senhora Guilhermina não podemos concluir que essa suspensão causou a cura. Porque nem podemos procurar uma correlação entre ambos numa experiência controlada que elimine a correlação com outros factores, nem conhecemos o mecanismo pelo qual suspender as leis da natureza pode curar um olho. E nunca poderemos conhecê-lo, porque todos os mecanismos que conseguimos compreender são aqueles que fazem parte das regularidades que podemos observar na natureza.

Antecipando já a confusão costumeira, deixo claro que não pretendo demonstrar a falsidade do milagre, da cura ou do santo. Parece-me que esta cura milagrosa é uma treta, mas não é isso que estou a defender aqui. O que quero defender é que a conclusão da Igreja Católica é infundada. Não têm, nem poderão alguma vez ter, evidências que justifiquem concluir que ocorreu um milagre, que o milagre causou a cura e que foi a intercessão deste homem morto que causou o milagre. Mais uma vez, vendem pura especulação como se fosse conhecimento.

* Se for um factor causal determinista. A coisa complica-se um pouco quando os factor causal é probabilístico, mas a ideia é a mesma. E não me parece que seja suposto Deus fazer milagres com margem de erro e intervalo de confiança.

1- Agência Ecclesia, 3-7-08, Papa reconhece milagre do Beato Nuno de Santa Maria
2- Um excerto do texto original de Hume está em Modern History Sourcebook: David Hume: On Miracles, por Paul Haslall.

quarta-feira, abril 08, 2009

Convém saber mais um pouco...

O Marcos Sabino tem um post intitulado «O que toda a gente devia saber sobre a datação radiométrica»(1), onde expõe o que diz ser «as pressuposições dos geólogos». Ilustra com o exemplo que deu numa palestra em Espinho, a alunos de um liceu (2). Uma torneira pinga 50 ml por hora. Por baixo da torneira há um recipiente com 300 ml de líquido. Para estimar o tempo que a torneira pingou é preciso saber quanto líquido tinha o recipiente no inicio, se o ritmo das pingas foi constante e se não houve perdas ou ganhos de líquido por outras vias. Diz o Marcos que o mesmo se passa com a datação radiométrica, onde extrapolar das quantidades de isótopos para a idade da rocha «depende de factores não observados e não conhecidos que simplesmente se têm de assumir»(1). Dá a ideia que os geólogos nunca pensaram neste problema.

Vou dar o exemplo da datação por estrôncio (Sr) e rubídio (Rb), mais complexo que a torneirinha do Marcos mas mais realista. Dos quatro isótopos de estrôncio, usam-se dois relativamente comuns (cerca de 10% do total, cada um) para a datação por este método. O 86Sr é estável e não resulta de nenhum decaimento radioactivo, por isso a sua quantidade no mineral é constante. O 87Sr é formado pelo decaimento radioactivo do isótopo de rubídio 87Rb, por isso a sua quantidade vai aumentando com o tempo num minério que contenha 87Rb. Isto não são “pressuposições” gratuitas mas sim dados confirmados experimentalmente, pois este decaimento pode ser medido e estas reacções nucleares são bem conhecidas. Também se sabe, com confirmação experimental, que o 86Sr e o 87Sr são quimicamente idênticos. Diferem apenas na massa atómica mas, como é normal nos isótopos do mesmo elemento, reagem quimicamente da mesma forma e, por isso, são incorporados nos minerais na mesma proporção.

Tipicamente, uma rocha é uma mistura heterogénea de vários minerais. Quando a rocha se formou cada mineral tinha uma concentração inicial diferente de Sr e Rb, conforme a sua composição química. Mas a proporção de 86Sr para 87Sr era igual em toda a rocha porque estes isótopos são quimicamente indistintos. Os minerais mais ricos num serão mais ricos no outro, proporcionalmente. Com o passar do tempo, o decaimento do 87Rb em 87Sr vai diminuir a quantidade de 87Rb e aumentar a de 87Sr. Como a proporção inicial de 86Sr para 87Sr era igual em todos os minerais, a quantidade total dos isótopos pode ser medida em cada mineral, e uns minerais têm mais Rb que outros, é possível descobrir todas as incógnitas (3) e não só datar cada mineral independentemente como confirmar os valores obtidos, porque todos os minerais que se formaram quando a rocha solidificou têm de ter a mesma idade.

Os métodos reais de datação são complexos porque os geólogos não se limitam a assumir o que não sabem. Ironicamente, são os criacionistas que assumem uma idade para a Terra sem a validarem devidamente. Os cientistas têm o cuidado de questionar as premissas e de as fundamentar em resultados experimentais. Talvez o Marcos leia isto e reconheça que, por ignorância, tinha subestimado a atenção ao detalhe com que os cientistas resolvem estes problemas. Infelizmente, a minha experiência com o criacionismo sugere que o Marcos já sabia disto mas queria dar a ideia, errada, que os cientistas inventam os resultados. É a grande diferença entre ciência e evangelização. Quando alguém fala de datação radiométrica numa sala de aula os alunos assumem que está a explicar um problema científico tentando dar uma ideia correcta, fiel aos factos e que esclareça. Mas o criacionista quer evangelizar e, para esse propósito, os factos são plasticina para moldar e torcer como der mais jeito.

Não sei se algum dos alunos desse liceu de Espinho vai ler isto, mas gostava de deixar uma ideia da magnitude do erro do Marcos. O nosso sistema solar tem cerca de 4.5 mil milhões de anos e o universo 13.5 mil milhões de anos. Estes valores foram medidos de várias formas independentes. Por radiometria, pela cosmologia, pelas reacções nucleares nas estrelas, pela geologia e assim por diante. Sabemos a idade do universo como sabemos que são 314 km de Lisboa ao Porto. Em ambos os casos precisamos assumir muita coisa acerca dos instrumentos de medição, mas em ambos os casos testamos essas premissas e confirmamos com medições independentes. O Marcos propõe que o universo tem apenas uns milhares de anos de idade. É legítimo questionar a precisão de qualquer medição, mas o valor do Marcos é um milhão de vezes menor que aquilo que os dados sugerem. É como dizer que a distancia entre Lisboa e Porto foi mal medida e que o valor correcto é de 31 centímetros. Não é apenas errado. É ridículo. E só porque vem escrito no livro preferido do Marcos...

No post do Marcos o Mats avisou «prepara-te para começares a receber ataques espirituais. O inimigo não gosta quando Deus é glorificado, especialmente quando isso pode influenciar os mais novos.» Antecipando a crítica criacionista, quero deixar claro que isto não é um ataque espiritual, não me incomoda que glorifiquem quem quiserem ou que o Marcos fale da sua fé. Nem me considero inimigo do Marcos. Mas oponho-me a que deturpem a ciência para enganar as pessoas. Se o vosso deus se glorifica com essa desonestidade então guardem-na para os locais de culto onde, certamente, será apreciada. Mas não a tragam para as salas de aula.

1- Marcos Sabino, 31-3-09, O que toda a gente devia saber sobre a datação radiométrica
2- Marcos Sabino, 24-3-09, Criacionismo no liceu de Espinho
3- Mais detalhes, incluindo a parte matemática, em Radiometric Dating, por Stephen A. Nelson.

terça-feira, abril 07, 2009

Modelos e realidade.

A confusão entre o que imaginamos de uma coisa e a coisa em si é um problema comum. Como na noção, errada, que podemos dissociar ontologia de epistemologia. A ontologia é um relato acerca de entidades e das suas relações. Vai do mais abstracto, como considerar o que é existir, ao mais concreto, como afirmar que algo existe. Por exemplo, “há yetis no Evereste” é uma afirmação ontológica. A epistemologia é um relato acerca do conhecimento, de como sabemos e de como podemos avaliar se um modelo corresponde à realidade.

Se bem que a existência de yetis no Evereste não dependa de sabermos se eles existem, uma afirmação acerca dos yetis não é os yetis em si. É um modelo conceptual que só merece confiança conforme corresponda à realidade. Por isso tudo na ontologia, além da definição dos termos, depende da epistemologia. Não é razoável afirmar que algo existe sem saber o que se diz e, especialmente, quando se afirma aquilo que nem se pode saber. Da virgindade de personagens históricos à natureza de certos deuses.

Outra manifestação desta confusão é pensar que se encaixa a ciência na religião dizendo que deus criou as leis da natureza e opera segundo estas. As leis da natureza que a ciência propõe são elementos dos modelos. São conceitos criados pelos cientistas para descrever a natureza. Segundo os modelos das religiões as leis da natureza foram criadas por deuses que só não as mudam porque não querem. Estes modelos são obviamente incompatíveis, e a ilusão de compatibilidade vem de confundir o modelo religioso com a realidade que a ciência modela.

Alguns crentes alegam que o seu deus não é uma hipótese mas algo que se sente. Por isso, dizem, não é preciso validar nada. E é verdade que uma sensação não é um modelo. Se sinto uma dor no abdómen, sinto-a. Não preciso averiguar se corresponde à realidade. Mas atribuir essa dor a algo que a explique, como uma apendicite, cria um modelo e levanta a hipótese do modelo corresponder, ou não corresponder, à realidade. É isto que acontece quando um crente explica a sua sensação como resultando de uma relação com um deus ou intervenção do espírito santo. Isso é um modelo, e se está ou não correcto é uma hipótese.

A acusação de querer reduzir a natureza àquilo que a ciência conhece é outro exemplo da confusão entre modelos e realidade. O reducionismo é importante na ciência mas opera sobre os modelos, não sobre a natureza. Dizer que a química se reduz à física é dizer que os modelos da química são deriváveis dos modelos da física. As expressões que descrevem reacções químicas são uma extrapolação das descrições da física para valores estatísticos em grandes números de moléculas. A fisiologia reduz-se à química e, eventualmente, esperamos que a psicologia se reduza à neurologia, fisiologia e tudo por aí abaixo. Mas isto não quer dizer que haja pedaços químicos na natureza que, puf, se reduzam a pedaços físicos. O que se reduz são os modelos.

A razão para isto é a natureza não se dividir em química, física e psicologia. Isso é apenas a nossa forma de organizar modelos. A realidade é toda a mesma, e isto obriga os modelos de uns aspectos a depender dos modelos de outros aspectos. Não precisa ser uma redução completa; os modelos da química e da física focam aspectos diferentes e adequam-se a fenómenos diferentes. Mas têm de encaixar tão bem que são forçosamente compatíveis e até equivalentes em certos aspectos fundamentais. Porque têm de descrever a mesma realidade.

Isto permitiu deitar fora a alquimia, a astrologia, o criacionismo, a teoria dos quatro humores e outras tretas. Como os modelos têm de encaixar, quando um é irredutível aos outros é sinal que está errado. E quando compreendermos a consciência e as emoções humanas esse modelos também terão de encaixar com os restantes. Ou seja, não espero encontrar lá coisas como almas ou deuses. Não defendo esta posição por querer limitar a natureza mas porque, neste momento, os melhores modelos que temos, e que formam a rede de explicações mais completa, não têm esses apêndices.

Mas nem tudo é ciência. A filosofia clarifica os conceitos que precisamos para construir os modelos e explora modelos como os da ética, que descrevem o que deve ser e não o que é. A arte suscita emoções e a cria modelos acerca daquilo que não é mas que podemos imaginar. A religião faz o mesmo que a arte, mas com mais pretensões. A ciência gera e avalia modelos acerca da realidade.

Por isso a ciência não abarca tudo o que somos ou fazemos. Abarca só a pequena parte dos modelos conceptuais que, justificadamente, julgamos corresponder à realidade. Isto não limita a realidade porque são apenas modelos, nem estão necessariamente correctos porque a justificação é sempre incerta e provisória. Mas isto abarca todo o conhecimento explícito. Tudo o que podemos exprimir simbolicamente e que sabemos corresponder à realidade é fruto da ciência. Tudo o resto que se diz da realidade são também modelos mas, por rejeitarem o crivo epistemológico da ciência, são modelos que não se justifica considerar correctos.

domingo, abril 05, 2009

Treta da semana: sincronizar é o que está a dar.

Dias 6 e 7 de Junho vai-se realizar o primeiro Congresso Internacional de Sincronização com o Planeta Terra. Isto porque o nosso planeta «possui vida própria com os seus ciclos de relação e interacção com o conjunto dos planetas do Sistema Solar e com a Galáxia na qual estamos inseridos. Sincronização com o Planeta Terra, significa sintonizarmos com o seu ritmo e com a sua natureza intrínseca. Quanto mais conhecermos o biorritmo terrestre e as suas leis, mais estaremos aptos para nos sintonizarmos e passarmos a emitir a frequência vibratória humana que se harmoniza com a do próprio planeta.»(1)

O autor desta magnífica explicação é o organizador do congresso, Luís Resina. Segundo a sua biografia, «Frequentou o Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, altura em que começou a dedicar-se à pratica Astrológica»(2), e o objectivo do congresso é «Aproveitar o que há de melhor no diálogo e nas parcerias entre saberes opostos e complementares, refiro-me ao domínio religioso (não sectário), ao domínio científico (não dogmático) e ao domínio artístico (não marginal).»

Quem defende o diálogo entre os “saberes complementares” costuma defender também que a ciência é que não pode ser dogmática. Os outros “saberes” reclamam sempre a sua crença, seja o deus que é amor seja a sincronização com a Terra. Mas se os biólogos disserem que «ciclos de relação e interacção com o conjunto dos planetas» não dão vida própria a coisa nenhuma, ou se os físicos disserem que «a frequência vibratória humana» nem sequer faz sentido (será o som de uma cacetada na cabeça?), então são dogmáticos. Intolerantes. Arrogantes, que se julgam donos da verdade.

Qualquer afirmação exclui a sua negação. Por isso, a única forma de evitar o dogmatismo é sendo incoerente. O que é pior. O dogmático sempre consegue estar enganado. O incoerente nem isso. Um dogmatismo aliado à capacidade de mudar de ideias é a única protecção contra a infinidade de disparates que podemos conceber. É o que faz a ciência. A ciência é dogmática quando diz que algo tem de ser assim e não pode ser de outra forma. Mas não se prende a isso, e se diz que algo é assim diz também como se pode saber caso não seja. E quando se descobre que não é, a ciência muda. O dogmatismo é sempre provisório. Mesmo que alguns cientistas, individualmente, se recusem a mudar de opinião, nenhum dogma colectivo sobrevive à refutação pelas evidências.

Quem quer dialogar com a ciência tem de fazer o mesmo. Tem de apresentar todas as suas hipóteses como provisórias e sujeitas a refutação. E tem de especificar o que é que as pode refutar. Seja um deus que é amor seja a sincronização das vibrações humanas com o ciclo da Terra. Sem isto não há diálogo. Não há sequer tema para a conversa.

Para terminar gostava de salientar o optimismo dos congressistas. A sessão de encerramento é «Meditação sobre Portugal e envio de Energia para o Planeta Terra»(3). A bomba nuclear que dizimou Hiroshima libertou 63 terajoules. A cada segundo, a Terra recebe do Sol quase três mil vezes mais energia, 174 petajoules. Não sei quanta energia tencionam enviar para a Terra (ou onde a irão buscar), mas suspeito que estejam a sobrestimar os efeitos deste esforço.

Obrigado ao João Moedas pelo link.

1- Entrevista a Luís Resina no Portal Milénio (documento em pdf).
2- Biografia do Luís Resina no Portal Milénio.
3- Congresso Internacional de Sincronização com a Terra

sexta-feira, abril 03, 2009

A diferença entre roubar e copiar.

A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) detém neste momento 41.2 milhões de euros de “direitos de autor” já cobrados mas ainda não entregues aos autores. «Pedro Campos, da administração da SPA, explica que a SPA tende a demorar entre seis meses a um ano a pagar os direitos já cobrados, intervalo que deve a questões técnicas, como, por exemplo, a dificuldade em identificar exactamente os beneficiários dos direitos cobrados às televisões, ou a promotores de espectáculos.»(1) Identificar os autores geralmente é fácil. O problema é identificar os “beneficiários”. Principalmente quando é tão conveniente que demore...

A notícia no Público adianta que «Segundo a Deloitte, a SPA teria activos no valor de 61.829 milhões de euros, mas os seus “capitais próprios negativos” atingiriam actualmente 13,140 milhões de euros, e, em 2008, o resultado líquido negativo teria sido de 2,189 milhões de euros.» Parecem-me milhões demais, tanto em activos como em gastos, para uma organização que supostamente só cobra de um lado para dar a outro. Talvez seja por isto que querem passar a ideia que ladrão é quem copia e não quem mete ao bolso.

Reconheço que qualquer sistema de financiamento público terá defeitos. Mas o que precisamos considerar é se o estado dar dinheiro directamente aos artistas terá mais defeitos que o sistema que temos agora.

1- Público, 1-4-09, Declaração de voto alerta que SPA já não tem dinheiro para pagar aos autores, via Remixtures

quinta-feira, abril 02, 2009

Financiar a criatividade, parte 2: financiamento público.

O Desidério sugeriu que o financiamento público da criatividade é errado porque é «tirar dinheiro às pessoas contra a sua vontade, através de impostos, para financiar o que elas na verdade se recusam a financiar voluntariamente»(1). Rejeito este argumento geral contra os impostos porque há situações em que são uma forma razoável de colmatar os defeitos do mercado livre. Para financiar infra-estruturas, bens públicos, cuidados médicos, educação e assim por diante. E a criatividade.

Antes de defender esta posição quero apontar que muito do financiamento à criatividade que julgamos privado é, na verdade, financiamento público. Por exemplo, as patentes sobre a produção de medicamentos distorcem o mercado e exigem que o estado comparticipe a compra. O copyright digital restringe a todos, contra a sua vontade, a liberdade de trocar informação e exige que o erário sustente os mecanismos que obrigam milhões de pessoas a respeitar o monopólio. Mais ou menos disfarçado, salvo raras excepções a criatividade já é um investimento público. Mas o que quero justificar é que deve ser um investimento público e não apenas que já é.

A criatividade transforma material público. O bolo que faço é meu porque o trabalho e os ingredientes são meus. Mas se faço uma escultura na areia ou limpo um monumento público não fico dono do produto final porque a matéria prima não era minha. O mesmo se passa com este texto. O trabalho de o escrever é meu mas as palavras não são. Tal como quem limpa monumentos, quem escreve pode legitimamente vender o seu trabalho, mas não o produto desse trabalho. E o principal produto da criatividade são ideias, o que não é propriedade. O pintor pinta com as suas tintas na sua tela e, por isso, o quadro é seu. O objecto material, de tela e tinta. Mas a imagem, em abstracto, não é de ninguém. Sendo a criatividade a transformação de algo público naquilo que não pode ter dono não é razoável que seja o mercado a financiá-la.

Além disso, a criatividade vale, principalmente, como infra-estrutura e a longo prazo. Houve alguns benefícios imediatos da invenção da roda ou de formas de produzir electricidade mas nada que se comparasse ao valor acumulado de tudo o que estas inovações permitiram criar. O financiamento privado não serve para aquilo que traz valor aos outros ou que tenha retornos apenas a longo prazo. Como demostra o uso de patentes e direitos de cópia para impedir a inovação por parte de terceiros e maximizar o lucro imediato do detentor.

Finalmente, o melhor incentivo à criatividade é o acesso às criações. Aos artigos científicos, às músicas, à literatura e aos filmes. Isto é fundamental para a inovação. O Desidério quer um sistema menos aristocrático onde todos possam criar. Concordo com o objectivo. Não podemos depender só do talento dos ricos. Mas propõe que todos paguem pelo acesso àquilo de que usufruem, com a consequência que só os ricos poderão ter o acesso à cultura que é preciso para poder ser inovador.

Dificilmente se encontra um melhor candidato ao financiamento público. A matéria prima é de todos, o produto não é propriedade, a sua utilidade é pública e o seu maior valor vem a longo prazo. E para atrair o investimento privado é preciso restringir o acesso, por imposição legal, para que o mercado tenha algo que possa vender. O que, além de exigir financiamento público, acaba por inibir a criatividade que se quer incentivar.

Por isso rejeito o financiamento pela restrição ao acesso. Em vez disso deve-se pagar o trabalho de quem cria com um financiamento público transparente, onde se saiba quanto é gasto e em quê, em vez deste sistema opaco que financia a distribuição com privilégios legais e custos escondidos. Invista-se em escolas, bolsas de estudo e museus, por exemplo, e em tornar o mundo digital numa biblioteca pública.

O que não exclui o financiamento privado onde este funcione sem monopólios ou outros privilégios legais. Onde o mercado possa ser mesmo livre. Os carpinteiros, actores, músicos e escritores podem vender o seu trabalho directamente a quem o queira. Os filmes terão sucesso comercial enquanto alguém comprar bilhetes de cinema. E admito que haja casos excepcionais onde o financiamento público complemente o privado com algumas concessões legais como patentes. Mas estas excepções devem ser avaliadas caso a caso para garantir que são bons negócios para a sociedade. Não faz sentido o financiamento público pela concessão automática de monopólios a qualquer pessoa que junte de uma forma nova pedaços do que é de todos.

1- Desidério Murcho, 2-3-09, Comprar e vender ideias.