sexta-feira, janeiro 30, 2009

A lâmina não é essa...

Este vídeo do Edward Current está engraçado e o objectivo dele é satirizar, não é ser rigoroso. Mesmo assim, apetece-me implicar porque comete um erro que vejo muitas vezes. No início do filme ele diz que a lâmina de Occam é que «se há várias explicações, aquela que tiver menos complicações ou premissas é normalmente a melhor». Isto não é a lâmina de Occam. É o princípio da parcimónia. É parecido mas não é o mesmo.

A lâmina de Occam diz-nos para não multiplicar entidades desnecessárias. Refere-se a elementos de uma hipótese que, de acordo com a própria hipótese, não a podem distinguir de outra que não os tenha. Por exemplo, nenhuma observação pode distinguir da física a hipótese que duendes indetectáveis fazem com que tudo aconteça como a física prevê. Podemos eliminar estes duendes da hipótese seguros que nunca vamos obter dados mostrando que afinal existiam. Pela hipótese, não poderá haver tais vestígios destes duendes.

Segundo o princípio da parcimónia, se duas hipóteses equivalentes explicam um dado conjunto de observações é preferível aquela que especula menos acerca do que não sabemos. Em parte porque é mais fácil formular e utilizar essa hipótese, e em parte porque arrisca menos. Se sabemos apenas que água com vinho embebeda, água com vodka embebeda e água com rum embebeda o melhor é começar pela hipótese que a água embebeda. É mais fácil justificá-la e testá-la do que especular acerca de um eventual factor desconhecido comum a estas misturas.

Mas esta preferência pela hipótese mais simples é arriscada, ao contrário da lâmina de Occam. É menos arriscado começar pela hipótese mais simples porque no outro extremo há uma infinidade de hipóteses infinitamente complicadas, que além de não servir para nada têm muito mais maneiras de estar erradas. Mas a explicação mais simples para um conjunto de dados pode mostrar-se incorrecta quando adquirimos dados adicionais. Parafraseando Einstein, a explicação deve ser tão simples quanto possível, mas não mais que isso.

Satisfeita a minha necessidade de ser picuinhas, passo então ao filme.



Via Pharyngula.

Uma nova perspectiva.

Alguns leitores queixam-se, com razão, da contaminação persistente da caixa de comentários com contributos que nada têm a ver com o post e que se repetem de forma patológica. Já me pediram para apagar alguns comentários mas isso iria suscitar acusações de censura e exigir-me ser mais rápido que um copy-paste e não fazer mais nada o dia todo.

Enquanto não encontrar solução melhor, sugiro que usem a opção “Fechar comentários” que está disponível na caixa de comentários, como indicado na imagem.

Puf, vai tudo

Desta maneira podem minimizar todos os comentários e abrir apenas os que quiserem clicando no icon (normalmente o símbolo do Blogger) à esquerda do nome do comentador.

quinta-feira, janeiro 29, 2009

Sócrates e Jesus.

Um ponto comum entre estes homens tão influentes na nossa civilização é que tudo o que sabemos deles nos chega contado por outros. Conhecemos os personagens mas não as pessoas. Sócrates protagoniza os diálogos de Platão, que deixou muito escrito acerca do seu mentor. Mas os diálogos platónicos não foram escritos com a intenção de relatar a vida de Sócrates. Foram escritos para ajudar Platão a exprimir certas ideias.

Com Jesus ainda é pior. Platão era discípulo de Sócrates; os autores do Novo Testamento estavam mais distantes de Jesus. Platão queria expor e criticar ideias enquanto os autores dos evangelhos queriam converter. Por isso retratam Jesus de formas diferentes conforme a sua audiência. Mateus foi escrito para os judeus, com grande atenção às profecias messiânicas. Lucas é para gentios, anunciando Jesus como o salvador da humanidade. E em João o personagem de Jesus é um deus.

Sócrates existiu, certamente, e deve mesmo ter sido um tipo feio e mal arranjado. Jesus também deve ter existido. Ser nazareno não dava jeito nenhum a um candidato a messias. Não teriam mencionado esse inconveniente se não fosse verdade. Ou ser atraiçoado por um dos seus próprios discípulos. Mas é razoável duvidar que Sócrates continuasse lúcido depois de uma noite inteira de farra e bebida. Mais ainda da rábula de ir nascer a Belém por causa de um recenseamento ou de um genocídio, para não falar de ter nascido de uma virgem e da milagrada toda.

O Jesus e o Sócrates que conhecemos são personagens de histórias. Essas histórias devem ter sido baseadas em pessoas reais, como se diz ainda hoje de alguns filmes, mas a ligação pode ser muito ténue e, depois de tanto tempo, é impossível distinguir exactamente o facto da ficção. Mas pouco importa. Pode ter algum interesse esgravatar os diálogos de Platão à procura de factos históricos, mas o que importa ali são as ideias que o filósofo queria transmitir. Os detalhes só compõem a narrativa. O mesmo se deve ler na Bíblia.

Os católicos criticam os evangélicos por lerem a Bíblia demasiado à letra. Mas todos, ou pelo menos a grande maioria, cometem o erro de ler os evangelhos como se fossem relatos históricos. Há lá ideias que vale a pena considerar mas não nos devemos perder no misticismo religioso que vem agarrado. É como passar a admirar Sócrates só por encontrar um texto a dizer que ele voava. Ou achar que o mais notável em Pitágoras era a coxa de ouro que diziam que ele tinha devido à sua origem divina.

É um erro acreditar em todas as histórias de um personagem de ficção só porque o personagem se baseia numa pessoa real. Especialmente quando nada sabemos acerca dessa pessoa além das histórias onde é personagem.

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Perguntem ao Sr. Harry Buttle...

O Supremo Tribunal dos EUA decidiu há duas semanas que são admissíveis em tribunal provas obtidas por erro nas bases de dados da polícia. O motivo foi a prisão de um homem do Alabama por um mandato de captura que não devia constar na base de dados. Quando a polícia o prendeu encontrou uma arma ilegal e anfetaminas, o que lhe valeu vinte e sete meses de prisão. O argumento da maioria de cinco juizes, contra quatro dissensores, foi que excluir provas obtidas indevidamente só serve para dissuadir a polícia de agir propositadamente em desrespeito da lei. Segundo estes juizes não se deve aplicar o princípio da exclusão quando o erro é não é intencional. Mas este é o problema de sempre. Os polícias são gente.

Em ciência sabemos bem disso. Muitas pessoas que se sentem incomodadas com alguns resultados da ciência, como a Terra ter mais que um punhado de milénios de idade, por exemplo, apontam que os cientistas são pessoas falíveis. Que cometem erros, que são teimosos e que alguns até chegam a ser aldrabões. Com se isso fosse novidade. Quem trabalha com eles, quem é um deles, sabe bem que são pessoas como outras quaisquer, com todas as virtudes e defeitos. É por isso que em ciência nos torcemos todos para que o erro não compense. Mesmo que seja sem intenção. Detalhamos os procedimentos, revemos os artigos uns dos outros, tentamos reproduzir os resultados independentemente e assim por diante para que ninguém beneficie com erros ou aldrabices. É a única forma de desencorajar a bandalheira.

Esta regra que o Supremo Tribunal americano aprovou é perigosa porque faz o contrário. Incentiva o desleixo. Desde que não pareça propositado, cometer erros é vantajoso à polícia. E sabe-se lá quantos “erros informáticos” vão acontecer quando um polícia se chateia com um vizinho ou quando lhe falta prender meia dúzia para preencher a sua quota anual.

Não sei como as coisas funcionam por cá mas, pelo tenho ouvido, parece-me que também precisamos desencorajar os erros nas investigações. É certo que isto dificulta o trabalho da polícia, que acaba por apanhar menos meliantes. Mas não podemos esquecer que somos todos da mesma espécie; nós, os meliantes e os polícias. O que nos distingue são as circunstâncias e, quase sempre, é a ocasião que faz o ladrão.

Acerca deste caso:
Electronic Privacy Information Center, Herring v. US.
New York Times, 14-1-09, Supreme Court Eases Limits on Evidence.

Via Schneier on Security.

Inquérito.

O Francisco Feijó Delgado (scheeko™) criou um pequeno questionário para sondar algumas crenças. A amostragem será tendenciosa pela auto-selecção e as sondagens na web são sempre susceptíveis de infecção por pessoas com demasiado tempo livre. Mas pode ser uma experiência interessante. Pelo menos dará uma ideia da relação entre a crença num deus ou na vida depois da morte e a motivação para preencher este questionário.

O post do Francisco está aqui e ele vai publicar os resultados no seu blog. Se preferirem ir directamente para o inquérito, a página é http://tinyurl.com/inquerito.

Podcast da entrevista à Rádio Europa

está disponível aqui:
Primeira parte
Segunda parte.

terça-feira, janeiro 27, 2009

Os ofendidos e a peruca de Luís XIV.

Antigamente, a sociedade organizava-se pela treta. O povo fazia o que era útil; comércio, agricultura, artes e ofícios. O clero e a nobreza mandavam. E para manter a ilusão que isto é que devia ser era preciso enfeites, rituais, tradições e títulos. E preservar o “bom nome” punindo qualquer desonra ou insulto. Sem uma repressão decisiva bastava umas bocas bem mandadas para pôr a careca a descoberto. Porque a única coisa que o rei, os bispos e os nobres faziam melhor que os outros era viver sem trabalhar.

Com o progresso na tecnologia e nos direitos humanos a sociedade tornou-se mais aberta, exigente e auto-crítica. Hoje julgamos as pessoas mais pelo que sabem e pelo que fazem do que pelo ângulo do seu rabo com a Lua no dia em que nasceram. A sátira é apreciada por quase todos, especialmente quando apontada aos poucos que não a apreciam. E os insultos já não são desculpa para duelos. Hoje, ignorar insultos revela confiança e bom humor. Infelizmente, o culto do ofendido ainda nos persegue. Em parte por inércia cultural. E em parte porque a treta ainda governa alguns aspectos da nossa sociedade.

Na política, especialmente na pequenina, a aparência continua a contar. Daí os processos por difamação e tentativas de censura movidos por presidentes da câmara e afins. Mas é a religião que exige mais “respeitinho”, e um religioso é quase sempre um ofendido. Não me refiro ao crente, que geralmente tem uma convicção pessoal sólida, aberta à crítica e que não se ofende facilmente. Refiro-me ao fariseu moderno que põe toda a sua fé nos rituais picuinhas da sua religião. É esse que faz queixa quando os Gato Fedorento encenam uma missa ao Magalhães, que se faz de ofendido com uma piada acerca do presépio ou que protesta contra o ateísmo (mas disfarçado, para que quem o conhece não saber os disparates que diz).

E a lei ainda reflecte as modas de antigamente. Não pune quem gozar com a engenharia civil porque, digam o que disserem, ou se faz a ponte assim ou a ponte cai. Não pune quem maldisser a química, vilipendiar a matemática ou troçar da física. A realidade resiste bem à má-língua. A religião é que não. O ritual, a suposta virgem, o sagrado e essas tretas, por ser tudo mera invenção e palavreio, são muito vulneráveis à crítica. Ironicamente, a lei só protege a religião da “ofensa” porque a religião não merece respeito.

Se merecesse respeito não precisava ser protegida das críticas de ninguém. Quando temos razão não precisamos de nos fazer de ofendidos por discordarem de nós nem pedir que nos protejam da crítica. Nem o crente precisa disso. O religioso é que não pode fazer mais nada a não ser ofender-se a ver se têm pena dele. Em vez de acreditar num deus porque quer, que é justificação suficiente quando sincera, diz acreditar porque o filho da virgem ressuscitou, porque esta palavra é mais sagrada que as outras e assim por diante. Não conseguindo justificar uma convicção pessoal invocando um mar de tretas, resta-lhe só fazer queixinhas por os outros meninos gozarem com ele.

Isto vale para o ofendido religioso como vale para qualquer outro, seja monárquico, nacionalista ou simplesmente parvo. Vale para quem defende o que sabe não ter mérito tentando colmatar com a indignação aquilo que lhe falta na razão. Este artifício é contraproducente porque a indignação é um acessório ridículo e ultrapassado ao qual só recorre quem quer esconder algum defeito.

Concluo com este vídeo para premiar quem está seguro da sua fé como opção pessoal e para castigar os que fingem ter fundamento racional para os disparates que apregoam e depois se fazem de ofendidos se lhes descobrem a careca.

segunda-feira, janeiro 26, 2009

Bem metida...

No Arrastão, o Daniel Oliveira escreveu há dias:

«Ao que parece, os muçulmanos de uma cidade inglesa conseguiram bloquear a campanha do autacarro ateísta, pressionando a empresa de autacarros para não a aceitar. E esta, lamentavelmente, cedeu.»(1)

Os comentários vieram logo. Que era culpa da “esquerdalha”, que o Cardeal Patriarca é que tinha razão, que é mais um exemplo de cedência ao fanatismo religioso e assim por diante. Depois veio a correcção. Não foram os muçulmanos numa cidade inglesa. Foram os católicos em Génova (2).

A supressão da campanha ateísta em Génova mostra que as religiões só são tolerantes quando não têm outro remédio. Catolicismo ou islão, fazem o que lhes deixarem. E o resultado da experiência mostra que não podemos depender dos seguidores de uma religião para impedir que esta abuse do seu poder. Aquilo que denunciam noutra como claramente abusivo passa despercebido na sua.

Via Random Precision.

1- Arrastão, 21-1-09, Lamentável (actualizado: sorria, foi apanhado)
2- Telegraph, 19-1-09, Catholic Church blocks plans for atheist bus adverts

domingo, janeiro 25, 2009

Treta da Semana: A falta de razão de Manuel Morujão.

O porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Morujão, argumenta contra o reconhecimento legal dos casais homossexuais. Neste comunicado oficial da CEP o padre mostra que, se há objecções relevantes, ele ainda não as descobriu. Começa por considerar «desproporcionado que o partido do governo se fixe neste assunto dos casamentos homossexuais, quando há tantos problemas graves e gritantes na nossa sociedade actual, como seja a crise financeira e económica»(1). Teria razão se a proposta investisse milhares de milhões de euros na homossexualidade. Mas implementar esta alteração à lei custa meia hora de edição de texto e a publicação no DR. Não deve ser por causa disto que o nosso governo não resolve a crise económica mundial.

Depois obsta porque o governo devia tomar medidas «que ajudem a resolver o «Inverno demográfico» por que passa a nossa sociedade, com o envelhecimento progressivo da população, dada a baixíssima taxa de natalidade». Talvez devesse. Mas aumentar o abono de família ou construir creches não impede que se reconheça a união de pessoas do mesmo sexo. Morujão preocupa-se também com «a estabilidade da família» e «que os casais [...] se sintam forçados a uma drástica limitação da natalidade por falta de ajudas sociais», preocupações legítimas mas igualmente irrelevantes. Não está em causa a estabilidade da família, nem as ajudas sociais, nem a resolução da crise económica nem a preservação da fauna do estuário do Tejo.

Juntando absurdo ao irrelevante, propõe que «a nossa estrutural identidade é um valor a cultivar» e que é «um grave erro antropológico equiparar uma união homossexual ao casamento e à família.» Isto é absurdo porque a “nossa” identidade é a identidade de cada um de nós. De cada indivíduo, autónomo, com a sua maneira de pensar e de ser. Família e casamento não são o mesmo para todos, e o que se deve preservar não é a imposição de um conceito monolítico mas a liberdade de cada um casar e constituir família com quem entender.

E o que está em causa não são conceitos culturais ou religiosos. São os direitos legais do casal. As heranças, as decisões médicas quando um está incapacitado, o acompanhamento do cônjuge e assim por diante. A proposta é simplesmente evitar que a lei negue estes direitos a alguém só porque alguns consideram que metade do casal nasceu com o sexo errado. O próprio Manuel Morujão reconhece isto, recordando o «caso da Inglaterra que encontrou um quadro legal para uma união estável de duas pessoas do mesmo sexo, com certos direitos por exemplo a nível dos impostos e das heranças. Fez tudo isto, mas sem dar o nome e o estatuto de «casamento» e de «família».» Afinal, parece que o problema não é a economia, nem a taxa de natalidade, nem a identidade. É mera semântica, nome e estatuto. Uma desculpa fraca para não respeitar os direitos das pessoas. E, pior ainda, também esta é irrelevante.

Há muito tempo que temos nomes e estatutos diferentes. Casar “pelo civil” é celebrar um contrato sem obrigações religiosas, sem responsabilidades reprodutivas e que só dura enquanto as partes envolvidas não o dissolverem. Casar “pela igreja”, que se entende católica, é dizer ao padre que o casal vai ficar junto até que a morte os separe e que vai ter e criar os rebentos segundo os preceitos da Igreja. A alteração proposta é só no primeiro. O segundo fica como os católicos quiserem. E as famílias serão diferentes, com certeza, mas cada família é diferente de todas as outras de qualquer maneira.

Não há razões económicas, nem demográficas, nem culturais nem sequer semânticas para opor a legalização do casamento homossexual. Esta medida apenas concede a algumas pessoas os mesmos direitos que a maioria já tem. É só pela vontade de se meter na vida dos outros que alguém se opõe a isto. E é irónico que os padres católicos queiram ditar-nos o que é o casamento e a família quando a sua religião os proíbe de casar e quando a família que mais veneram é o marido, a mulher e um filho que esta teve com o Outro.

PS: Esta é a centésima edição desta rubrica. Agora sei como Sísifo se sentiu depois de rebolar o pedregulho cem vezes lá para cima...

1- Disponível no Companhia dos Filósofos, Comunicado do Porta-Voz da CEP

sábado, janeiro 24, 2009

Entrevista para a Rádio Europa.

Esta semana dei uma entrevista para a Rádio Europa, sobre ateísmo e sobre a AAP. A entrevista vai para o ar na próxima terça, dia 27, depois do noticiário das 18:00 (90.4 FM, Lisboa).

O podcast vai estar online uns dias depois em europaentrevista.podomatic.com.

Arábia Saudita declara Barbie uma ameaça à moral.

A notícia é antiga, de 2003, e as idiotices são as do costume. Mas merece menção pelo nome do sheik entrevistado. Sheik Abdulla al-Merdas. É que nem de propósito...

Fairfax Digital, 10-9-03, Saudi police outlaw Barbie.

Via Dragoscópio.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Extremismo, só com moderação.

Foi marcado o julgamento do casal Neumann, do Wisconsin (1). Cristãos dedicados, sempre trataram a sua filha Kara com oração em vez de medicação. Infelizmente, a criança tinha diabetes e morreu em Março do ano passado. Tinha 11 anos de idade e nenhuma culpa pelos genes e pais que o deus dos seus pais lhe dera. Se condenados, os devotos Neumann podem cumprir até 25 anos de prisão. Não ajuda a Kara mas talvez evite que façam o mesmo a outro filho.

Felizmente, a maioria dos crentes não é idiota e a maioria das crianças não tem doenças mortais. Por isso a conjunção dos dois é rara. Mesmo assim, só nos últimos 25 anos a estupidite religiosa matou trezentas crianças nos EUA. É muito menos rara do que devia ser.

Mas também é preocupante que as crenças dos fundamentalistas e dos moderados sejam as mesmas. Ambos crêem que os filhos nascem com a religião dos pais, que as coisas acontecem segundo a vontade divina, que um livro sagrado é a palavra do seu deus e assim por diante. A grande maioria de crentes sensatos distingue-se da minoria de doidos apenas por levar as mesmas crenças menos a sério.

Pode bastar. Há muita gente que bebe bagaço ou fuma haxixe sem ser alcoólico ou drogado. Mas tem que ser pouquinho de cada vez. Também as crenças religiosas são para consumir com moderação por serem tão fortes. Há poucas religiões light. Um deus algo-poderoso que dê uns toques aqui e ali não satisfaz. Os crentes querem um Deus Todo-Poderoso, com maiúsculas e tudo, capaz de controlar todo o universo. Uma crença que os aqueça por dentro. Mas disso só se pode tomar um calicezinho aos domingos e dias de festa. E nunca quando se tem crianças doentes em casa.

1- New York Times, Trials for Parents Who Chose Faith Over Medicine

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Faltou o cinzento.

Este vídeo (1) apanha com as calças em baixo vários protestantes anti-aborto, ou pró-vida, ou o que for agora o termo politicamente correcto. A pergunta parece simples. Se o aborto for ilegal, como se deve punir as mulheres que abortem?



A dicotomia do castiga ou legaliza serve em muitos casos. Mas não em todos. Há problemas que não se resolve com a chave da cela mas que também não se pode ignorar. Por exemplo, a escolaridade obrigatória e o trabalho infantil. Muitas crianças no nosso país deixam a escola cedo demais. Porque são raparigas ciganas que entram na puberdade, porque os pais precisam de ajuda para cuidar do gado, porque levam as crianças quando vão mendigar ou até as põem a mendigar por eles. E isto deve ser ilegal.

Mas se me perguntarem o que fazer aos pais dessas crianças não sei o que dizer. Não recomendo prendê-los. Não resolvia o problema e seria até pior para as crianças. Mas nem por isso se deve isentar da escolaridade obrigatória os filhos de ciganos, de mendigos ou de pastores. Porque as leis não servem só para forçar o cidadão a portar-se como o estado quer. Algumas, como a da escolaridade obrigatória e a proibição do trabalho infantil, servem principalmente para pressionar o estado a atacar as causas do problema.

É difícil forçar os pais a zelar pelo futuro dos filhos. Não se consegue com multas ou prisões, que também não tornam as pessoas mais responsáveis pelas consequências do sexo. Isto vale para o homem que se quer ver livre da grávida, para a mulher que se quer livrar da gravidez ou para o casal que não quer saber dos filhos. Mas neste caso a dicotomia é falsa e é falacioso invocá-la. Porque o problema não é uma escolha a preto e branco entre castigar os pais ou deixá-los ser tão irresponsáveis quanto quiserem. O mal menor está naquele cinzento onde nem se resolve à força problemas familiares nem se faz da irresponsabilidade um direito legal. É um campo minado de dificuldades práticas mas as alternativas são piores, tanto de um lado como do outro.

1- Via Pharyngula

quarta-feira, janeiro 21, 2009

A origem inteligente do estado do tempo.

Um artigo da autoria de Constâncio Ladainha, gertrudista.

Revendo a matéria dada nos artigos anteriores, sabemos que Gertrudes criou todos os seres vivos segundo um plano divino inteligente e cada um de acordo com a sua espécie. Excepto os que têm muitas espécies parecidas. Esses foram criados de acordo com um tipo qualquer e pronto, porque quem vê uma mosca vê todas e não vamos exigir da Criadora a paciência de fazer uma a uma duzentas mil espécies quase iguais. Mas a criação inteligente não é apanágio dos seres vivos. Está em todo o lado. Até na chuva e no vento.

Este facto irrefutável pode ser explicado com a bela metáfora que devo ao leitor João. A tortilha gertrudista, uma deliciosa mistura de três ingredientes:

a) Toda a informação inteligentemente codificada é informação codificada inteligentemente.
b) O estado do tempo tem informação codificada.
c) Misturando o ovo e a batata conclui-se que o estado do tempo não pode ser explicado por teorias naturalistas mas apenas pela inteligência de Gertrudes.

Não chove por acaso, meus senhores!

Foi o Contra-almirante Francis Beaufort, hidrógrafo gertrudista, quem decifrou o código meteorológico de Gertrudes, reconhecido em todo o mundo como informação codificada e inteligente. O famoso site The Weather Doctor concorda com os gertrudistas ao chamar-lhe «Weather Notation Code». Lá está! Um código inteligente!

A informação inteligente codificada no estado do tempo pode ser medida por todos os critérios de quantidade, qualidade, frescura e simpatia. A quantidade de símbolos é grande. Temos b. para céu limpo, bc. para parcialmente encoberto, c. para nublado, f: para nevoeiro denso e muitos outros como podem ver aqui. Os símbolos e o próprio estado do tempo seguem regras de sintaxe rigorosas. Por exemplo, nunca chove durante secas prolongadas nem neva quando está calor. A semântica do tempo também é rigorosa e rica. Uma chuvada forte significa sempre chão molhado. Pelo critério pragmático podemos ver que há uma grande quantidade de operações complexas realizadas pelo vento, pelo sol e pela chuva, com o propósito de criar efeitos magníficos como dunas e rios.

ATENÇÃO! MUITA ATENÇÃO!

A tortilha gertrudista é irrefutável e 100% sobrenatural. Só a crença cega no naturalismo filosófico leva alguns a pensar que o vento sopra por acaso e que os cristais de gelo se formam aleatoriamente.

Gertrudes mostra-nos a Sua mensagem em tudo o que vemos, um universo rico em informação codificada onde cada gota de água significa “molhado” e cada dia de sol codifica “aproveita agora para secar a roupa que com este calorzinho seca num instante”. Isto devia bastar para acreditarem em Gertrudes e no Seu poder criador inteligente.

Mas se não bastar lembrem-se que Gertrudes é infinitamente justa. Como qualquer jurista vos poderá explicar, o princípio fundamental da justiça é que todos nascemos culpados e merecedores de sofrimento eterno. Felizmente, Gertrudes é também infinitamente misericordiosa, e como qualquer ser benevolente e justo Ela dá um jeitinho, por especial favor, e safa quem a bajular.

terça-feira, janeiro 20, 2009

Esclarecendo.

O Alfredo Dinis pediu alguns esclarecimentos acerca do slogan da campanha ateísta inglesa, «There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life». O primeiro é «Não consigo entender por que razão a improbabilidade da existência de Deus deverá tornar as pessoas mais felizes [ou] a existência de Deus deverá torná-las infelizes. Alguém me quer explicar isto?» (1)

A existência de deuses não depende da nossa felicidade, tal como o estado do tempo não depende da minha vontade de ir à praia. São questões de facto e não de preferência. Se chover, chove. Se não houver deuses, não há. E tudo indica que não há. Durante milénios apontaram deuses nas doenças, no nascer do Sol, na criação da Terra e na origem da vida. Foi sempre falso alarme. Os deuses de hoje são tão ténues e distantes que nem se lhes distingue existência de inexistência. Seja para nossa felicidade ou tristeza, provavelmente não existem.

O Alfredo continua. «Sou cristão, acredito na existência de Deus e isso faz-me feliz. [...] Porque deveria tornar-me ateu?» A mensagem não é “torne-se ateu”. É não se preocupem com a vossa religião e, sobretudo, com as dos outros. Não se preocupem se um homem quer casar com um homem ou se uma mulher quer ser sacerdote. Não se preocupem com aquilo que só vos preocupa por motivos religiosos.

«Se eu fosse ateu ou simplesmente agnóstico, ficaria preocupado com o slogan. É que não me dá a certeza de que Deus realmente não existe. Por que razão viver nesta incerteza me faria feliz?»

Se o meu objectivo fosse crer especificamente numa certa crença também queria sentir certeza. Mas não me interessa crenças falsas. O que quero é a crença que melhor corresponda à realidade, seja que crença for. Quero chegar à verdade ou o mais próximo que conseguir. Quero acreditar que está um dia de sol só quando estiver mesmo em vez de apanhar uma chuvada convencido que está bom tempo. Por isso não abdico da dúvida. É a dúvida que me faz procurar a verdade. A certeza só convida a ficar pelo caminho.

«O slogan pressupõe ainda que o mundo se divide em duas partes: a dos ateus, que são felizes e gozam a vida ao máximo, e a dos crentes que vivem infelizes e incapazes de tirarem o máximo partido da vida.»

Não é entre ateus e crentes. O slogan sugere uma divisão entre aqueles para quem a fé é uma opção pessoal, que cada um terá ou não conforme queira, e os outros que vêem a sua religião como um dever. Regras a cumprir. Os padres não podem casar, deve-se confessar os pecados, as mulheres não podem celebrar missa, nunca negar o Espírito Santo e assim por diante. A mensagem dos ateus é que a religião é opcional. Venerem o que quiserem, comam hóstia se gostarem, com ou sem manteiga, e casem-se com quem entenderem que ninguém, nem sequer Deus, tem nada a ver com isso.

Aprecio estas perguntas contundentes que o ateísmo estimula. É justo e gratificante que pessoas como o Alfredo confrontem os ateus com as suas dúvidas. Porque este diálogo crítico com os ateus contrasta com o ecumenismo melindroso e hipócrita que aconchega religiões. Os líderes de cada religião apregoam às outras o respeito mútuo, a compreensão e a coexistência de “diferentes verdades”. Mas dentro da sua congregação sabem que quando há duas versões da mesma verdade pelo menos uma tem que ser treta. José Policarpo gerou polémica afirmando o óbvio porque aquelas palavras eram para consumo interno mas foram publicitadas como produto de exportação. Isto violou o acordo sagrado das religiões nos países democráticos. Não criticar para não ser criticado.

Com os ateus não há melindres. Se o José Policarpo tivesse aconselhado as raparigas católicas a não casar com ateus ninguém ligava. E se o Alfredo Dinis confrontasse evangélicos ou muçulmanos com este empenho já se tinha metido num monte de sarilhos que nem Jahve sabia onde acabavam. Mas nós não temos telhados de vidro. De todos os que rejeitam Jesus como deus, Maomé como profeta ou o Papa como infalível os ateus são os únicos sem uma crença a jeito para apedrejar em retaliação. Não é possível dissuasão ou détente. É por isso que consideram o ateísmo o maior drama da humanidade. Mas o diálogo assim é mais interessante.

1- Alfredo Dinis, 19-1-09, autocarros cheios de equívocos.

Editado a 21-1 para corrigir o dia de sol. Obrigado ao Mário Miguel.

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Bom e barato, VII

No interesse da transparência, o nosso estimado governo criou no verão passado um site com as compras por ajuste directo de todas as entidades públicas (1). Para não ser demasiado transparente, a pesquisa diz sempre «Não foram localizados resultados». Experimentei “Loures”, “Odivelas”, “Câmara municipal de Odivelas”. Nada. Com “Lisboa” lá saiu um registo: «Sessão de esclarecimento». Sem mais nada, fiquei pouco esclarecido.

A Associação Nacional de Software Livre (ANSOL) criou um acesso aos mesmos dados com um sistema de pesquisa fácil de usar e funcional (2). É o defeito do software livre. Poupa-se uns trocos, é certo, mas depois dá-se ao utilizador uma coisa que funciona e lá vêm os contribuintes bisbilhotar as contas. Não tem jeito nenhum. Por isso é que o nosso governo investe em software proprietário. O Ministério da Defesa, por exemplo, comprou 672.827,00 € de licenças ao El Corte Inglês (3). Julgo que o pacote inclui a garantia que a Espanha não nos invade.

Esta base de dados entretém. É rir para não chorar. Destaco o Centro de Formação Profissional para o Comércio e Afins (CECOA) pela sua gestão informática. Com um investimento de pouco mais de meia dúzia de milhões de euros, o CECOA conseguiu recuperar os dados que perdeu ao poupar largas centenas de euros não fazendo cópias de segurança (4). E uma menção honrosa para a Câmara Municipal de Loures pelo presépio de Natal. Sessenta mil euros (5). Uma bagatela, considerando o trabalho que isto poupou aos miúdos da catequese e o consolo que deu aos mais carenciados. Quem não tinha dinheiro para medicamentos ou para os livros dos filhos podia ao menos reconfortar-se com a aplicação dos seus impostos no burro do José e na vaca da Maria.

Mas passemos do roubo legal para o ilícito que dizem ser roubo. Se estão fartos de esperar até às duas da manhã para descobrir se dá mais um episódio da vossa série favorita ou se a programação mudou de novo, não desesperem. Sites como o RapidShare Links têm a solução.

A legalidade é questionável. A RapidShare oferece de graça o alojamento de ficheiros e ganha dinheiro com a publicidade, o que lhe deu problemas por permitir carregar ficheiros sob copyright (6). E carregar esses ficheiros para os servidores é ilegal em alguns países por disponibilizar conteúdos proprietários.

Mas ao contrário do P2P, onde descarregar também partilha o ficheiro com outros, descarregar ficheiros destes servidores é como ver filmes no YouTube. A transferência é apenas do servidor para o nosso computador e isto não parece ser punido pela lei. Ainda. Talvez seja de aproveitar enquanto não sai legislação para nos obrigar a ver os anúncios no intervalo.

Se vão usar o RapidShare ou serviços parecidos sugiro que instalem o JDowloader, um aplicativo em Java que automatiza o descarregamento dos ficheiros (7). Mas atenção! Não façam nada de ilegal. Cumpram a lei e estoirem milhões de euros dos contribuintes a recuperar dados e a pagar por software que não funciona. Não se ponham a partilhar informação gratuitamente porque isso é roubo.

1- www.base.gov.pt
2- Público, Site particular permite saber tudo o que o portal das compras públicas não mostra. O site que ANSOL criou é transparencia-pt.org.
3- Com esta pesquisa podem ver uma lista de várias compras de licenças.
4- As contas do CECOA
5- E as da Câmara Municipal de Loures
6- Digital Media Wire, German Court: RapidShare Must Proactively Nix Infringements
7- JDownloader

domingo, janeiro 18, 2009

Treta da Semana: Outra avaliação.

O decreto-lei 78 de Abril de 2006 transpõe a directiva 2002/91/CE do Parlamento Europeu para regular o desempenho energético e climatização de edifícios. A Agência para a Energia (ADENE) ficou responsável pelo funcionamento do Sistema Nacional de Certificação Energética e da Qualidade do Ar Interior nos Edifícios (SCE) criado por esse decreto-lei (1).

Em traços largos, o SCE regula a certificação de edifícios por meio de peritos qualificados que trabalham por conta própria ou em empresas públicas ou privadas. Tal como os arquitectos, engenheiros ou técnicos das companhias do gás, estes peritos certificam que certos aspectos dos edifícios estão em conformidade com a lei. A ADENE é responsável pela formação e fiscalização regular destes peritos. Nada disto teria interesse neste blog se não fosse o artigo 12º do DL-78/2006:

«1 - A ADENE fiscaliza o trabalho de certificação do perito qualificado, com base em critérios de amostragem a aprovar pelas entidades responsáveis pela supervisão do SCE.
2 - As actividades de fiscalização referidas no número anterior podem ser contratadas pela ADENE a organismos públicos ou privados.»
(2)

Ou seja, a fiscalização pode ficar a cargo de empresas concorrentes. Que foi o que a ADENE fez. Contratou a Société Générale de Surveillance SA (SGS) para fiscalizar a certificação de edifícios de acordo com o SCE (3), um serviço que a SGS também oferece (4). Isto é bom para a ADENE porque não deve ter problemas em convencer a SGS a fiscalizar a concorrência. E é bom para a SGS porque pode aconselhar os seus clientes a escolher quem tem mais probabilidade de passar na fiscalização. E pode examinar tudo o que os seus concorrentes fazem quando os fiscaliza. E pode garantir que todos os seus concorrentes serão excelentes. É sempre bom competir com a excelência. Serão poucos. Muito poucos. Mas se sobrar algum será excelente.

O outro parceiro fiscalizador é o Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ), que é parte de um grupo privado de empresas (5) e cuja participação garante a idoneidade do processo. Não só porque evita que seja só uma empresa a fiscalizar a concorrência (assim são duas) como facilita chegar àquele sítio no meio das costas que dificilmente se alcança sozinho.

É claro que há pessoas insatisfeitas. Por muito bom que algo seja há sempre quem diga não gostar. Mas ignoremos a pequena minoria de todos os outros técnicos, clientes e utentes dos edifícios que não pertençam à ADENE, ISQ ou SGS, e abracemos este método de avaliação. Premiar os melhores professores perguntando a alguns se são eles ou os colegas que merecem a promoção. Garantir peritagens de qualidade pondo umas empresas a fiscalizar a concorrência. Proponho também que a ASAE contrate pastelarias para fiscalizar as pastelarias vizinhas. Afinal, os donos das pastelarias percebem o negócio e sabem ver, melhor que ninguém, se a pastelaria do lado merece ser fechada.

Até eu estou tentado. Em vez de perder tempo a avaliar trabalhos e exames, em cada 200 alunos vou nomear 100 para me dizerem quais são os 100 que merecem passar. E se alguém questionar o mérito do sistema justifico-o facilmente apontando que os 100 que nomeio são sempre os aprovados. Claramente os mais habilitados a avaliar o desempenho dos colegas.

1-Portal do SCE.
2- IAPMEI, Decreto-Lei nº 78/2006 de 4 de Abril de 2006
3- GETEP, Fiscalização aos peritos qualificados.
4- SGS Portugal, SCE – Sistema de Certificação de Edifícios
5- Grupo ISQ

Para a Joaninha.

Joaninha a 7000 imagens por segundo. Não se vê os sapatos de salto alto, mas mesmo assim é giro.

sábado, janeiro 17, 2009

Tirar as rodinhas.

Minerva era o pseudónimo famoso do até recentemente desconhecido Park Dae Sung, um blogger sul coreano seguido por centenas de milhar de pessoas. Em Agosto do ano passado, Park escreveu que o Banco Coreano do Desenvolvimento não devia financiar a Lehman Brothers, que faliu pouco depois do banco ignorar o prognóstico. Park também previu a queda do won e outras desgraças financeiras na Coreia do Sul, e a sua clarividência, críticas ao governo e estilo satírico deram-lhe muitos seguidores.

No dia 29 de Dezembro, Park escreveu que o governo coreano tinha dado uma “ordem de emergência” a instituições financeiras para deixarem de comprar dólares. Isto lançou a confusão no mercado de divisas e obrigou o governo a negar ter dado tal ordem. Apesar de retirar o post e pedir desculpas pouco depois, no passado dia 10 Park foi preso e acusado de divulgar informação falsa com intenção maliciosa. A pena pode ir até cinco anos de prisão.

Muitos julgavam que Park era um perito em economia com ligações a pessoas influentes, e o próprio Park alegara ter formação na área e experiência em Wall Street. Mas é um desempregado com 31 anos que nem completou a faculdade e tudo o que sabe de economia aprendeu em livros e pesquisas na Internet. Para alguns isto faz dele um aldrabão. Para outros mostra que qualquer pessoa percebe mais de economia que o governo. Para mim o problema não é quem escreve. É quem lê.

Não é justo que o prendam. Aldrabou, mas se fosse um jornalista multavam o jornal e despediam-no; não o prendiam por dar informação falsa logo a seguir retractada. Os governos costumam prender jornalistas é por dizer a verdade, e suspeito que o que tramou Park não foi a argolada final mas as vezes todas que acertou. E um blogger anónimo não pode ser mais responsável pelo que escreve do que um jornalista profissional.

É preciso limites para a liberdade de expressão. Incitar violência e ódio, burlar ou organizar práticas criminosas não são um direito. Mas os limites para quem escreve num blog devem ser os mesmos que para quem fala numa esplanada ou jardim. Não é por mais pessoas conhecerem uma opinião que o opinador tem mais responsabilidade pelo que escreve. Se Park tivesse uma página que ninguém lia podia ter escrito o que quisesse sem problemas. Ele não foi preso pelo que escreveu mas por aquilo que outros decidiram ler.

E antes de castigarmos os bloggers há muitos que devemos punir por prejudicar outros com afirmações falsas. Políticos, líderes religiosos e os responsáveis por quase todos os programas de televisão, só para dar alguns exemplos. Certos cargos ou posições de autoridade exigem mais responsabilidade do que ter uma ligação à Internet.

Por isso sou contra castigar na web coisas que não se punia se ditas na rua. Blogs e páginas pessoais são só uma forma moderna de falar. São um jardim onde todos se ouvem e todos falam com quem querem. Não são como canais de televisão ou jornais onde alguns controlam aquilo que os outros vêem ou dizem. A regulação da web deve considerar que esta é uma forma simétrica de comunicar em vez de a equiparar a sistemas assimétricos de comunicação em massa. O que deve regular a web é a liberdade de contestar e criticar em vez das restrições às expressão e à crítica.

O problema é que isto exige mais maturidade. Exige a capacidade de criticar o que se lê, procurar confirmação independente e considerar a origem da informação. Exige o contrário do que a comunicação em massa nos ensinou, que é confiar nos jornais, rádio e televisão. Confiar que “eles” sabem o que nos dizem. A confiança e regulação convêm a quem governa e a quem controla estes meios de comunicação, mas não serve numa sociedade em que todos podem comunicar com todos os outros. Não podemos amordaçar toda a gente nem responsabilizar uns por aquilo que os outros decidem ler, acreditar ou levar a sério.

Quem ocupa certos cargos deve ser responsável pelo que diz no exercício dessas funções. É uma exigência razoável a quem representa uma posição oficial ou é remunerado por ser uma fonte fiável. Mas quem fala ou escreve a título pessoal deve ser tão livre na Internet como à porta de sua casa. Livre de chocar, ofender, enganar-se ou dizer disparates sem que o prendam por isso. Porque só lhe liga quem quer. É como leitores que temos que aprender a pedalar pelo que lemos sem as rodinhas da censura agarradas a quem escreve.

A notícia está aqui no Herald Tribune, e várias reacções no Technorati. Obrigado pelo email com o link.

sexta-feira, janeiro 16, 2009

É isto.



Via Sandwalk.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Macaco tagarela.

tá-se bem

«Se quer ser respeitado, pare de se autodefinir e autodeterminar como um macaco tagarela.» Sugestão do Jónatas Machado em Culinária verbal.

Comunicar é comum nos animais mas uns são mais sofisticados que outros. Os macacos de Vervet têm sons de alarme diferentes para indicar águias, cobras ou leopardos. Criaram um verdadeiro código inteligente convencionando uma correspondência entre cada som e ameaça. Mas nisto nós batemos todos os outros. Muitos animais comunicam o estado em que estão. Zangados, com o cio, assustados. Alguns conseguem comunicar o que está presente, como os macacos de Vervet ou os golfinhos que dão um nome a cada indivíduo. Mas nós comunicamos o que nos der na gana.

O Homo sapiens anatomicamente moderno surgiu há duzentos mil anos. Mas durante cento e cinquenta mil anos comportou-se como os hominídeos que o precederam. Foi há cinquenta mil anos que os nossos antepassados começaram a demonstrar características particularmente humanas como comércio a longa distância, ferramentas bem trabalhadas, arte, enterros, música e jogos. Cultura. E isto deveu-se provavelmente à linguagem.

A nossa linguagem não é um código trivial que apenas emparelhe sinais com significados. É um sistema complexo onde o significado emerge da combinação regrada dos símbolos. Enquanto o grito do Vervet avisa que há uma cobra por perto, para nós “cobra” pode ser a cobra que está ali, a cobra que vimos ontem, qualquer cobra, nenhuma cobra ou até que alguém nos faz pagar pelo bilhete. É uma grande ferramenta de comunicação.

A cria do Vervet só pode aprender o sinal quando aparecer uma cobra. Os nossos antepassados ensinavam os filhos contando histórias de quando o bisavô foi mordido por uma cobra ou como o tio matou uma cobra com a lança. Mas este poder é uma faca de dois gumes. A linguagem que serve para comunicar factos também serve para enganar e manipular. Serve para contar às crianças que as cobras mordem quem desobedece aos pais e para contar aos pais que a Grande Cobra no Céu castiga quem desrespeita o sacerdote.

E não se limita à comunicação com os outros. O macaco que só sabe gritar “cuidado com a cobra!” não ganha nada em dizê-lo, para além de salvar os parentes que carregam os mesmos genes. Para o macaco que vê a cobra o aviso não traz novidade nenhuma. Em contraste, o macaco que tem uma linguagem simbólica ganha muito em falar sozinho. Pode inventar histórias acerca do que faria se visse uma cobra, do que poderia ter feito com a cobra que viu ou até convencer-se que o cagaço que apanhou era só prudência e sensatez. O macaco tagarela inventa-se e transforma-se pelas histórias que se conta de si mesmo.

É por isso que somos o animal racional. Não por sermos muito racionais mas porque nós é que contamos a história. Nesta história somos especiais, criados à imagem da Razão Suprema que fez todo o universo à medida da tagarelice do macaco. E, como muitas histórias, esta tem um pouco de verdade. Manipular símbolos levou-nos a inventar computadores, mandar sondas para outros planetas e compreender as nossas origens. Este poder soltou-nos por partes da realidade que nem conseguimos imaginar.

Mas também nos prende em fantasias e nos engana com tretas. Inventamos deuses e doutrinas para fingir que o errado é certo. Quando a razão nos falha, o que não é raro, agarramo-nos a histórias como se a realidade fosse só palavras. E se estiver escrito em papel velho é o delírio. O maior disparate é promovido a Verdade.

Não devemos ter vergonha dos nossos primos só por não serem tagarelas. Mostram o que nós somos melhor do que muitas histórias que inventamos e convidam-nos a olhar a realidade como é, sem querer centrar tudo em nós. A fazer esta vida contar em vez de contar com outra depois desta. Porque não é a tagarelice que merece respeito. Como Huxley disse a Wilberforce, é melhor ser descendente de um macaco do que usar esta capacidade humana só para se enganar e distorcer a realidade.

A imagem foi tirada da contracapa do livro Bonobo, the forgotten ape, do Frans de Waal e do Frans Lanting, U. of Cal. Press.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

Antecipar o terrorismo.

Onze de Setembro é uma data ligada ao terrorismo na mente de todos. Mas os peritos avisam que é perigoso fiar-se demasiado nesta ligação. A cadeia noticiosa Onion relata uma análise exaustiva, feita pela CIA e pelo Department of Homeland Security, que sugere que os terroristas poderão atacar noutra data. Terror Experts Warn Next 9/11 Could Fall On Different Date.

Via Schneier on Security.

Editado: estas coisas da Onion são como as cerejas...


Breaking News: Series Of Concentric Circles Emanating From Glowing Red Dot



Apple Introduces Revolutionary New Laptop With No Keyboard

terça-feira, janeiro 13, 2009

A liberdade aos saltos.

O PS apresentou um projecto lei para limitar o sal no pão e obrigar que se indique quanto sal têm os produtos embalados. O limite proposto para o sal no pão é 14g por quilo, um pouco abaixo da média corrente de 20g. Esta medida é semelhante à prática noutros países europeus e parece seguir recomendações da OMS (1).

Soube disto pelo Blasfémias, onde todos discordam. Perguntam se vão fazer o mesmo ao bacalhau (2) e aos saltos altos (3), apelam à defesa da liberdade (4) e até comparam isto com a regulação do sexo (5). A condenação é tão consensual como a confusão. Os saltos dos sapatos que usamos, o sexo e o tempo que o bacalhau fica de molho são coisas que nós escolhemos. A quantidade de sal no pão que compramos é o comerciante que decide.

Quem tem de limitar o consumo de sal por motivos de saúde depende da honestidade do vendedor. Esse pão tem pouco sal? Tem sim senhor, compre à vontade que não faz mal nenhum. Nem sequer tem um rótulo para confirmar. E os malefícios do excesso só se sentem tarde demais. Compramos o pão sem saber quanto sal tem nem notar se é demais.

Proibir a venda de pão com excesso de sal é até mais razoável que proibir a venda de iogurtes fora de prazo. Os iogurtes, ao menos, vêm com o prazo no pacote. E não proíbe ninguém de comer iogurte estragado ou pão salgado. Apenas torna menos prejudicial a opção que escolhemos por omissão quando nem notamos que há escolha. É razoável que quem quiser prejudicar a saúde o faça conscientemente e não por um hábito despercebido.

Ironicamente, é esta crítica no Blasfémias e noutros blogs que põe em perigo a nossa liberdade. É boa ideia averiguar se vale a pena legislar o sal no pão. Se 20g ou 14g for indiferente para a saúde concordo que não se gaste recursos nisto. Mas a objecção que levantam confunde a regulação comercial com uma intromissão na esfera pessoal. Proibir o uso de saltos altos, regular o tempo de demolha do bacalhau ou legislar sobre as posições sexuais é muito diferente de regular a venda de iogurtes ou de pão.

Será sempre preciso regular o comércio. Não vamos deixar o merceeiro decidir se vende legumes com pesticidas ou iogurtes estragados. E será sempre preciso proteger a nossa liberdade. É da natureza do colectivo, seja estado ou mercado, procurar mais poder sobre o indivíduo. Para conjugar estas necessidades há que distinguir a regulação do mercado em beneficio do indivíduo e a regulação do indivíduo em proveito do estado ou do comércio.

Os análogos de proibir os saltos altos são proibir que se descodifique os sinais que a TV-Cabo nos manda para casa, que se solde um chip à Playstation ou que se copie CDs. São análogos por proibirem actos pessoais em benefício de interesses comerciais ou burocráticos. Mas muitos esquecem os direitos pessoais e traçam a linha pelo que estão habituados. As coisas novas podem levar com as regras que o governo quiser ou que os comerciantes pedirem, por muito que afectem a nossa vida pessoal. O que não se pode regular é o pão e o presunto que a avó já comprava. Mesmo quando só se regula o comércio e mesmo quando é mais fácil pôr sal no pão ensosso que tirá-lo ao pão salgado.

1- Público, 9-1-09, Deputados socialistas querem reduzir sal no pão
2- Gabriel Silva, 10-1-09, Para quando a obrigatoriedade do bacalhau light?
3- Helena Matos, 14-1-09, Aerosoles já!
4- João Miranda, 12-1-09, O valor da liberdade individual
5- LR, 12-1-09, Regulamente-se a queca!

segunda-feira, janeiro 12, 2009

Culinária verbal.

Avaliar centenas de trabalhos deu-me para escrever isto. Não são conselhos porque são banais demais, e não é desabafo que para isso um post não chega. São só uns condimentos que gosto de pôr no que escrevo e que gosto de saborear no que leio. Nem vou perder tempo com os três ingredientes básicos, escrever com as letras do costume, pontuar onde faz sentido e saber o que as palavras querem dizer (“denotar” não é uma maneira fina de escrever “notar”, e não há razões de carisma religioso). Esses problemas são demasiado deprimentes, por isso fico-me por outros menos graves.

Como o assunto. Singular. Gosto de chocolate e gosto de bacalhau à braz. Mas a mistura errada faz o todo enjoar mais que a soma das partes. Um texto curto deve falar de um assunto. Um texto mais longo deve avisar o leitor onde acaba um tema e começa outro. Senão cai a sobremesa na sopa. E, em caso de dúvida, o mais seguro é apagar.

Apagar é mais importante que escrever. Se parece estranho, vejam que a pior consequência de apagar demais é não ter nada escrito. Normalmente, é menos grave que escrever asneira. E, mesmo quando tudo corre bem, escrever é esculpir o texto. Não é tricotar palavras. Eu não gosto de dar um texto por acabado se não apagar pelo menos um terço. Senão vai lixo agarrado de certeza. Ideias repetidas, frases desajeitadas e palavras que destoam. Palavras a mais estragam tudo.

As palavras não são para se ver. São a janela por onde se mostra ideias ao leitor. Muita bonecada no vidro e não se vê o outro lado, o que só é bom se não houver nada para ver. E as palavras fartam mais que os assuntos porque temos de as repetir vezes sem conta. Por isso querem-se invisíveis. Textos sobre disparates podem ter “disparate” escrito dezenas de vezes que ninguém nota. Uma boa palavra passa despercebida. Mas ao segundo “despautério” já o leitor se aborreceu de ler outra vez o mesmo. Há que poupar as palavras caras para ocasiões especiais.

As frases também têm que ser limadas. Segurar as primeiras palavras como a ponta solta que se enfia pelos nós até desenlear o sentido da frase não é coisa que se exija ao leitor só para perceber o que escrevemos. A frase deve desenrolar-se com um olhar. Se o assunto é complicado e não cabe numa frase elegante, não faz mal. Cabe em duas ou três. É aproveitar enquanto o ponto final não paga direitos de autor.

E o texto deve acabar no fim. É mais difícil do que parece. Mesmo quando volta à ideia inicial, o texto deve guiar o leitor por um caminho seguro e deixá-lo confiante que saiu na paragem certa. Muitos textos acabam órfãos porque o autor dá tantas voltas que se esquece para onde ia.

Finalmente, as regras são para quebrar. Como na culinária, escrever não dá gozo se só se segue a receita. Mas é preciso ter regras antes de as poder quebrar. E é preciso evitar os batidos de ovo cozido*. Se os meus alunos tivessem este cuidado já tinha acabado de avaliar tudo há dias. Paciência. Lá vou empurrar os olhos por mais uns textos acima a ver se acabo hoje os que me faltam.

* Um dos insucessos mais memoráveis da minha curta carreira juvenil na culinária de improviso.

domingo, janeiro 11, 2009

Então e o “provavelmente”?

Em Barcelona os evangélicos responderam à campanha dos ateus. O slogan da campanha evangélica é «Deus, sim, existe. Desfruta a vida em Cristo». Vamos ver quantos padres e teólogos os criticam por afirmarem que Deus existe quando não há provas disso.

Pisca de Gente, 7-1-09, Deus e Barcelona.
Sol, 11-1-09, Ateus divulgam mensagem contra Deus em autocarros de Londres e Madrid.

Treta da Semana: Jenny contra as vacinas.

Isto hoje tem que ser rápido. Faço doze anos de casado; não é um bom dia para perder muito tempo com o blog. Especialmente se quero chegar aos vinte e quatro.

A Jenny McCarthy é actriz, no sentido lato, e mundialmente conhecida pela fama que tem. E, tragicamente, é mãe de uma criança autista. O autismo foi diagnosticado pouco depois da criança ser vacinada, o que não é de estranhar. As crianças tomam várias vacinas nos primeiros anos de vida e é muito difícil diagnosticar o autismo antes de desenvolverem comportamentos sociais e começarem a falar. Desta infeliz correlação, e contra todas as evidências, algumas pessoas concluem que são as vacinas que causam o autismo. Agora a Jenny usa a sua celebridade para convencer as pessoas a não vacinar os filhos (1).

Por causa destes disparates de famosos, e de jornalismo irresponsável (2), no Reino Unido a incidência de sarampo em 2007 foi dez vezes maior que no ano 2000*. Isto porque muitos pais tiveram medo de dar a vacina tríplice aos seus filhos, apesar das garantias dos pediatras. A prevenção do contágio, das vacinas aos preservativos, é normalmente vista como protegendo o indivíduo precavido. Mas isto é só metade da história. Nenhuma protecção é 100% eficaz para quem se expõe ao contágio, e o efeito principal destas medidas é reduzir a taxa de transmissão e diminuir a incidência da doença na população. A vacinação protege-nos por reduzir o contacto com pessoas infectadas.

Por isso quem não vacina os seus filhos beneficia da mesma protecção que os outros. Se quase todos se vacinarem. Mas se os penduras se tornam uma minoria significativa a taxa de infecção aumenta e todos são prejudicados. Por vezes inofensiva, neste caso a tendência dos famosos para dizer disparates (3) é perigosa se muita gente seguir estes conselhos irresponsáveis.

Felizmente, nem todas as celebridades são tolas. A Amanda Peet, «chocada com a quantidade de informação errada por aí, especialmente em Hollywood»(4), decidiu fazer campanha para que os pais dêem mais atenção aos médicos que aos actores quando decidem sobre a saúde dos filhos (5). Nesta guerra de celebridades, a Amanda tem duas vantagens sobre a Jenny. É mais gira (6) e é actriz sem precisar de esticar tanto o termo. Mas a Amanda usa o cérebro, uma desvantagem significativa terreno onde combatem, enquanto a Jenny deixa o dela guardado entre a bóia para o deserto e o repelente de gambusinos. Por isso a luta promete ser renhida.

1- PR.com, Jenny McCarthy on Healing Her Son’s Autism and Discovering Her Life’s Mission.
2- António Granado, 1-9-08, Mau jornalismo de ciência.
3- BBC, 27-12-08, Stars 'misleading' about science
4- Melissa Lafsky, 11-7-08, Autism and Vaccinations: A Celebrity Smackdown
5- WCBSTV, Peet Heads Campaign Urging Vaccinations For Kids
6- Elizabeth Snead, 30-9-08, Innoculate this: Amanda Peet, Jenny McCarthy's verbal vaccine war

* Editado: tinha-me esquecido desta referência. Sow the wind, Economist, 4-12-08.

sábado, janeiro 10, 2009

Simpático e perigoso.

A Fernanda Câncio tem no DN de hoje um artigo interessante sobre o Carlos Esperança. Um relatório da PIDE caracterizou-o como «simpático e, portanto, perigoso». Simpático sei por experiência que é. Perigoso também pode ser, mas só para as crendices infundadas e os tachos que nelas se aquecem. Do “portanto” é que discordo. O Carlos é um perigo para os disparates, mas é não pela simpatia. A simpatia, sempre presente quando se fala com ele, sai de mansinho quando ele escreve para não lhe tirar o gume às palavras. O perigo do Carlos é saber pensar no que vê e saber escrever o que pensa. É isto que assusta aqueles que escondem o que fazem baralhando o pensamento dos outros.

O artigo: Aos que por obras humanas se vão dos deuses libertando.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Evolução: Por toda a parte.

É comum, e errado, pensar a evolução como progredindo para um fim. A sequência do peixe que se transforma em anfíbio, réptil, mamífero e finalmente em homem sugere que o peixe já planeava unhas e cabelo. Mas a evolução é mais como um balde de berlindes despejado contra a parede. Em retrospectiva, cada encontrão e ressalto parece ter servido para pôr aquele berlinde exactamente ali. Mas ia parecer o mesmo qualquer que fosse o sítio ou o berlinde. O filme de cada berlinde faz parecer que havia um plano a seguir mas a visão do conjunto desengana-nos.

Assim, podemos distinguir dois problemas. Um é compreender as nossas origens sabendo já que existimos. É traçar, em retrospectiva, o trajecto que o berlinde percorreu. A física e a teoria da evolução explicam o que levou aquele berlinde ou aquela espécie a estar ali e a ser como é. Bem diferente é ponderar o que temos de especial para que a evolução conspirasse criar-nos. Esse é um falso problema. É como perguntar o que tem o berlinde azul de especial para que todos os outros o empurrassem exactamente para onde calhou. Nada. Se repetíssemos a experiência nem aquele berlinde ia parar ali nem nós seriamos como somos.

Isto não reduz a física e a teoria da evolução à narrativa do passado. A curto prazo podemos prever com detalhe as trajectórias dos berlindes ou as variações das características nas populações. O que faz a incerteza eventualmente dominar as estimativas é a complexidade dos sistemas, não a natureza das teorias. E há aspectos previsíveis mesmo a longo prazo. Podemos prever aproximadamente a distribuição dos berlindes pela sala em função da altura a que despejamos o balde, da espessura da alcatifa ou dos obstáculos que há no chão. E como olhos, pernas, asas e mandíbulas evoluíram independentemente várias vezes, podemos prever que se repetíssemos a evolução da vida na Terra, essas características iriam surgir de novo*.

Outro falso problema é haver seres vivos cada vez mais complexos. A vida surgiu com microorganismos simples que se juntaram em organismos multicelulares e eventualmente deram florestas, baleias e nós. Parece que uma tendência misteriosa os empurrou para a complexidade. Mas a tendência, tal como nos berlindes que se espalham pela sala, é apenas que a vida se espalhe pelas configurações que se reproduzem com sucesso. E a vida também começou contra a parede, encostada ao mínimo de complexidade abaixo do qual não é possível competir como ser vivo. Dali só havia um lado para onde se espalhar. De qualquer forma, ainda hoje quase todos os seres vivos são bactérias. Salvo raras excepções, a vida continua encostada à parede.

A evolução não conduz a vida a um destino ordenado. Espalha-a caoticamente por todos os cantos e feitios em que esta prolifere, revelando que, contrariamente ao que se acreditou durante muito tempo, o universo não foi feito a pensar em nós. E isto incomoda alguns. Como ao berlinde que desse graças pela posição privilegiada que supunha merecer, também a muita gente incomoda saber que somos o que nos calhou pelo entornar do balde. Além disso, a evolução não é só algo que aconteceu. Está a acontecer. Os berlindes espalham-se com o balanço da queda e param em pouco tempo, mas a evolução é empurrada pela energia de uma estrela com cinco mil milhões de anos pela frente.

Por isto, a teoria da evolução é incompatível com um propósito inteligente para a nossa origem. Alguns tentam conciliar a teoria da evolução com um plano divino propondo que a evolução foi apenas o mecanismo que o criador escolheu para nos criar, mas isto não faz sentido. Estamos a meio do processo e não é coisa a que recorra quem sabe o que quer e como o obter. Para pôr o berlinde azul exactamente naquele canto não se despeja o balde do outro lado da sala. A evolução, como método de criação inteligente, só faria sentido se o criador não soubesse bem o que queria e pusesse tudo a mexer a ver se dava alguma coisa interessante.

Mas o pior em tentar conciliar a teoria da evolução com uma criação inteligente é não perceber uma parte importante do que a teoria nos diz. Que não é preciso inteligência nem propósito para a vida surgir, evoluir e tornar-se inteligente. Basta herança com modificação e tempo para que, mais cedo ou mais tarde, a vida se espalhe o suficiente para encontrar um canto de onde possa compreender a sua origem.

* Assumindo que já havia triploblastos (quase todos os animais excepto alguns como alforrecas, esponjas e corais). A evolução é mais complexa que um balde de berlindes, e pode ter sido uma grande sorte terem surgido certas coisas como eucariontes e embriões com três camadas.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

O Fim do Mundo.

Alguns leitores criticaram a mensagem da campanha publicitária dos ateus, “não se preocupe e goze a vida”*. Hoje, no Metro de Odivelas, uma senhora bradava religião a todos que, sem outro remédio, passavam perto dela. O fim do mundo está próximo, lamentava (ou regozijava, talvez). Aceitem Jesus, exortava. E mais umas tretas. Ocorreu-me que esta tinha muito a ganhar se seguisse o conselho dos ateus britânicos.

Notei também que ninguém lhe dizia nada. A mim já me chamaram de intolerante e arrogante só por escrever que não existem deuses. Ela berrava aos ouvidos das pessoas e ameaçava-os com o fim do mundo e todos fingiam que não era nada. Não estou a criticar, porque eu fingi o mesmo. O rosto da fé, muitas vezes, tem cara de poucos amigos, e é prudente só acusar de intolerante quem tolera a crítica.

Mas o que queria dizer com este post é que a mensagem de não se preocupar não se dirige apenas aos crentes que se preocupam por ter a fé que têm. Diz a todos que ninguém se precisa preocupar por não ter fé em deus nenhum.

*Post de ontem, Deus e o tabaco.

quarta-feira, janeiro 07, 2009

Deus e o tabaco.

Ontem começou a Atheist Bus Campaign, uma campanha publicitária organizada por ateus do Reino Unido, com o slogan «Deus provavelmente não existe. Agora deixe de se preocupar e goze a vida»(1). Não há consenso acerca do “provavelmente” entre os ateus. Richard Dawkins, por exemplo, preferia “quase de certeza”. Mas segundo Tim Bleakley, o director da firma de publicidade contratada para esta campanha, foi necessário incluir o “provavelmente” para evitar uma violação do código publicitário. Porque, para os religiosos, dizer simplesmente que Deus não existe «seria enganador»(2).

Em rigor, isto é correcto. Não podemos saber nada com certeza absoluta. Por exemplo, não podemos ter a certeza absoluta que o tabaco prejudica a saúde. Se expusermos quinhentos ratos a fumo de tabaco e estes sofrerem mais de cancro que os quinhentos do grupo de controlo, o melhor que podemos dizer é que provavelmente o tabaco causa cancro. Por muitos ratos, ou humanos, expostos ao tabaco, há sempre a possibilidade do resultado ser por outra coisa qualquer. A recolha de dados confirmatórios aumenta a confiança mas nunca dá certeza absoluta. Resta sempre algum "provavelmente".

Mas eventualmente a confiança é tão alta que é melhor dizer simplesmente que o tabaco causa cancro no pulmão. Vir escrito nos maços que o tabaco provavelmente prejudica a saúde é que seria enganador. O “provavelmente”, se bem que correcto em teoria, na prática sugere uma incerteza maior que essa possibilidade irredutível de ter havido algum erro.

A conclusão que Deus não existe merece mais confiança que os malefícios do tabaco. O Deus judaico-cristão, omnipotente e omnisciente, é incompatível com o universo que conhecemos. As leis da física não permitem omnipotência nem omnisciência, e isso sabemos com mais certeza do que sabemos que o tabaco faz mal. Os crentes contrapõem que não se pode concluir que o deus deles não existe porque, sendo omnipotente e omnisciente, pode esconder-se onde entender e fazer milagres sem ninguém ver. A física pode ser milagre, o Big-Bang pode ser milagre, a origem da vida pode ser milagre. Não se vê a mão de Deus mas ela está lá, invisível.

Mas então também o cancro dos ratos pode ter sido obra de Deus e afinal o tabaco não faz mal nenhum. Se não podemos concluir que Deus não existe quando tudo sugere outras causas, também não podemos concluir que o tabaco faz mal só por ser isso que as evidências indicam. Se calhar o cancro é um milagre invisível. O cancro, e tudo o resto. Porque se não rejeitamos estas hipóteses impossíveis de testar ficamos condenados à ignorância e incapazes de decidir. Qualquer coisa que aconteça, por muito óbvia que pareça a sua causa e por muito fácil que seja de explicar, pode ter sido milagre de Deus, da Virgem, do São Nãoseiquantas ou até de gremlins invisíveis.

O tabaco faz mal e Deus não existe. Provavelmente, sim, mas esse provavelmente é tão insignificante que mais vale poupar os pulmões e os joelhos.

1- Atheist Bus Campaign
2- New York Times, 6-1-09, Atheists Decide to Send Their Own Message, on 800 Buses

terça-feira, janeiro 06, 2009

Novidade antiga.

O Miguel quer ser profissional. Quer fazer cada trabalho com a garantia, por acordo prévio, de quanto vai receber pelo serviço. E quer vender esse esforço sem ter que ceder a liberdade para trabalhar. Isto não seria novidade se o Miguel fosse professor, motorista ou jardineiro. Quase todos os profissionais trabalham assim. Infelizmente para o Miguel Caetano, ele é formado em jornalismo e quer fazer da escrita a sua profissão. Autor do Remixtures, para mim o melhor blog nacional sobre copyright e cultura livre, o Miguel Caetano oferece o seu conhecimento e serviços jornalísticos cobrando por artigos ou palestras que lhe queiram encomendar. A condição que impõe é poder publicar o que escreve no seu site sob uma licença que permite a partilha livre e adaptação desse material para fins não comerciais (1).

Espero que o Miguel tenha sucesso com isto, mas temo que enfrente dois grandes obstáculos. Um é a mentalidade que ficou deste século em que os distribuidores dominaram a criatividade. Um leitor do Miguel comentou que «o que podes fazer [é] escrever um livro sobre o assunto. Tenho a certeza que, tal como eu, tens mais leitores que comprariam várias cópias, para ter e oferecer.» Muitos julgam que quem escreve deve ganhar pela cópia e não pelo trabalho de escrever, como se o autor fosse uma máquina de fotocópias. É uma ideia conveniente para o distribuidor, que faz questão de a vender ao público para ficar com o grosso do negócio. Mas é degradante que avaliem o trabalho do autor pelas cópias que vende, e é injusto exigir-lhe que trabalhe primeiro e depois logo se vê quanto recebe.

Outro leitor do Miguel comentou «sou outro leitor que se perde. a informação existe sob muitas formas no mundo virtual, pagar pela liberdade da informação seria um erro estúpido». Vítima da propaganda dos distribuidores, este leitor não consegue perceber que pagar ao autor e restringir o acesso são coisas diferentes. A restrição é necessária para o distribuidor fazer negócio porque, se o acesso for livre, ninguém precisa desse intermediário. Mas do autor precisamos sempre, para criar a obra, e é esse trabalho que o Miguel quer cobrar.

Esta propaganda também leva a confundir os direitos do autor com a restrição da cópia e partilha quando, na verdade, a restrição retira direitos ao autor. Eu tenho o direito de usar as minhas calças e os meus conhecimentos de programação. Se bem que tenha que restringir aos outros o uso das minhas calças para que eu as possa usar à vontade, isto é um problema dos objectos materiais que não afecta os meus conhecimentos de programação. Desses posso usufruir livremente sem ter proibir outros de partilhar o que lhes transmiti. O mesmo se passa com o Miguel e os seus textos.

Alguns leitores do Miguel talvez pensem que ou ele faz tudo de graça prescindindo dos seus direitos ou então restringe o acesso para ganhar dinheiro. Não percebem que a restrição de acesso é a única forma de quem contratar o Miguel conseguir privá-lo de direitos sobre o que criou. Ao exigir a liberdade de partilhar o que escreveu o Miguel protege o seu direito de usar o que criou. E investe. Investe em leitores, que são a sua fonte última de rendimento. E, ao permitir que transformem o que ele criou investe na cultura, a matéria prima partilhada que ele usa para criar.

Além desta mentalidade, o Miguel tem que lutar contra a lei. Alguns defendem que por ser legal fazer o que o Miguel quer fazer então a lei não o impede. Mas isto é como dizer que a lei do trabalho permitir contratos sem férias não impedia ninguém de ter férias. A lei que temos permite a quem contrata um autor retirar-lhe direitos sobre a sua obra. Tal como aconteceria com as férias, isto faz com que a maioria dos contractos incluam esta clausula e dificulta a negociação de alternativas. A lei que temos dá mais poder de negociação aos distribuidores, cujos serviços são cada vez menos necessários, em detrimento dos autores que devíamos incentivar e favorecer.

O modelo de negócio que o Miguel Caetano propõe não é novo. Negociar um preço e cobrar por um serviço é uma solução justa e já muito antiga. Mas parece novidade porque nos habituaram a ver o autor subordinado ao distribuidor e a pagar a criatividade à resma de papel ou à rodela de plástico. Espero, e não só para bem do Miguel, que a sociedade corrija rapidamente esse erro e comece a pagar aos criadores para enriquecer a nossa cultura em vez de pagar aos distribuidores cedendo bocados da nossa cultura.

1- Miguel Caetano, 4-1-09, Freemium, o modelo de negócio do Remixtures.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Miscelânea criacionista: definir o aumento de informação.

Depois de muitos leitores pedirem ao Jónatas Machado para explicar o que entende por aumento de informação, o Jónatas respondeu. «Quanto à questão de saber como se descreve um aumento de informação, basta perguntarem a um programador de computadores como é que se aumenta a informação»(1). Obrigado, Jónatas.

A formalização de Kolmogorov, Chaitin e Solomonoff originou a importante teoria algorítmica da informação. A ideia fundamental é que a quantidade de informação numa sequência de símbolos S é dada pelo comprimento da menor descrição auto-contida de S. Como uma descrição auto-contida é um programa este formalismo é excelente para a informática. Por exemplo, podemos ver que uma sequência de mil “A”s tem pouca informação porque pode ser descrita pelo programa “escreve A mil vezes”.

Fundamental para a informação algorítmica é que a informação de S não é uma propriedade da sequência em si mas depende da linguagem com que a descrevemos. “Escreve mil vezes A” é mais longo que “Ax1000”. Isto não é um problema porque a diferença no comprimento das descrições mínimas em duas linguagens é sempre menor que uma constante. Por isso quanto mais informação S tiver menos diferença faz a linguagem com que descrevemos S. E é importante porque deixa claro que a informação de algo depende da sua descrição e não é um atributo da coisa por si.

Isto permite esclarecer a confusão criacionista de dizer que o ADN tem origem inteligente por ter muita informação. Sabemos que uma sequência de ADN tem muita informação pelo comprimento do menor programa capaz de gerar essa sequência. Ou seja, a descrição da sequência é comprida. Mas o que exige inteligência é a descrição. A confusão dos criacionistas é como dizer que num cardume de cem mil sardinhas todas têm que saber contar até cem mil. Só é preciso saber contar para saber que são cem mil, não para serem cem mil. Um monte de areia tem muita informação, se o quisermos descrever em detalhe. Ou uma nuvem, as gotas num espirro e a chuva que cai. O que exige inteligência não é a informação em si. É a capacidade para a medir.

E com este formalismo podemos definir rigorosamente o aumento de informação. Uma alteração a uma sequência aumenta a sua informação, numa dada linguagem, se aumentar o comprimento da menor descrição dessa sequência nessa linguagem. E isto pode acontecer com qualquer mutação.

A duplicação de um trecho pode aumentar o tamanho da descrição se tivermos que acrescentar “e depois repetir”. A inserção de símbolos pode aumentar o tamanho da descrição. Se no meio dos mil “A”s inserirmos um B a descrição vai aumentar, pois a “escreve A mil vezes” temos que acrescentar “e depois um B na posição 528”. A remoção de símbolos também pode aumentar o tamanho da descrição. Se temos uma sequência “ATATATATA...” e apagarmos um T no meio vamos precisar de uma descrição mais longa para lidar com essa quebra no padrão.

Em suma, este formalismo rigoroso que os programadores usam para definir quantidade de informação mostra que é um disparate afirmar que nenhuma mutação pode aumentar a quantidade de informação no ADN. Pelo contrário, qualquer uma pode aumentar a quantidade de informação. Basta que torne necessária uma descrição maior dessa sequência.

E isto não é meramente teórico ou abstracto. Sempre que comprimem um ficheiro no vosso computador estão a criar uma descrição dessa sequência de bytes que se tenta ser a menor possível e cujo comprimento indica a quantidade de informação no ficheiro que comprimiram. Alterando o ficheiro original podem fazer com que o ficheiro comprimido seja mais curto ou mais longo conforme a alteração aumentar ou diminuir a quantidade de informação. E não precisam ser alterações inteligentes. Se substituírem letras ao acaso num texto provavelmente vão quebrar padrões regulares obrigando a uma descrição mais longa. Ou seja, aumentando a informação.

Este post foi inspirado no Test Your Knowledge of Information Theory, do Jeffrey Shallit no Recursivity. Recomendo ao Jónatas e demais criacionistas que façam o teste. Para quem quiser saber mais sobre isto ficam aqui as ligações à Wikipedia: Kolmogorov complexity e Algoritmic information theory.

1- Comentário em Lembra alguma coisa?

domingo, janeiro 04, 2009

Treta da Semana: Era um antibiótico, duas bicas e a conta, s’achavor.

A propósito da resposta do Serviço Nacional de Saúde ao recente surto de gripe, o João Miranda fez uma analogia curiosa. Criticando a recomendação que os doentes com gripe ficassem em casa a menos que os sintomas se prolongassem ou agravassem (1), o João Miranda propôs:

«Os restaurantes perceberam uma ideia básica que os responsáveis pelo SNS ainda não perceberam: as pessoas têm necessidades subjectivas. É por isso que os donos dos restaurantes não questionam os desejos dos seus clientes. Limitam-se a adaptar-se a eles. Os clientes de um restaurante podem lá ir mesmo que não tenham muita fome. Serão bem tratados à mesma. Os responsáveis pelo SNS não reconhecem às pessoas necessidades subjectivas. As pessoas apenas podem ter as necessidades definidas pelos serviços com base em critérios objectivos. Por isso os serviços não se dispõem a adaptar-se às preferências de quem na verdade lhes paga o salário.»(2)

Há dois problemas nesta analogia. Primeiro, a função dos restaurantes não é lutar contra a fome. É dar lucro. Isso consegue-se vendendo o que o cliente quer comprar e, desde que pague, não importa se tem fome ou fastio. Em contraste, o SNS serve para tratar doenças. E para isso é preciso dar o tratamento adequado independentemente do paciente gostar mais dos comprimidos encarnados. Por isso é insensato o dono do restaurante recomendar aos clientes que fiquem em casa a menos que tenham muita fome, que comam pouco e evitem as sobremesas. Mas para o SNS é melhor que fique em casa quem só precisa controlar os sintomas e esperar que virose se cure sozinha. Espalhar o vírus pelo hospital e apanhar outras infecções dá mais clientes ao SNS mas, felizmente, não é o número de clientes que o SNS quer maximizar.

Outra diferença importante é quem paga e, principalmente, porquê. Ao restaurante paga quem quer lá comer e paga para ir lá comer. O restaurante não se importa com quem tem fome, só com quem paga. Por isso o restaurante não precisa fazer triagem nem guardar comida para quem precisa mais dela. O SNS não pode funcionar assim. Quem paga o SNS é quem tem dinheiro e não necessariamente quem tem doenças. E pagamos o SNS para garantir que todos doentes os têm aquele acesso a serviços de saúde.

Concordo que o SNS deve ter em conta os aspectos subjectivos da doença sempre que estes se alinhem com os resultados concretos que se quer obter. Por exemplo, o serviço telefónico de atendimento permanente não só serve para assegurar as pessoas cuja doença não inspira cuidados como identifica e encaminha aqueles que precisam de assistência médica. Mas não é razoável que os aspectos subjectivos se sobreponham aos objectivos. Nisto o João Miranda confunde dois sistemas muito diferentes.

O mercado é ideal para trocar bens e serviços, e é de esperar que satisfaça as “necessidades subjectivas” daqueles que têm algo para trocar. Da prostituição às clínicas privadas e do contrabando aos supermercados, a subjectividade de quem paga é o critério principal. Mas isto só serve para quem têm algo que a dar em troca do que quer. E é inevitável, em qualquer mercado, que alguns não tenham sequer o suficiente para trocar pelas necessidades mais básicas.

Para essas necessidades é preciso um sistema diferente, o estado, e é um equivoco infeliz esta ideia que pagamos impostos para que o estado sirva quem paga. Infra-estruturas, segurança, educação, justiça, liberdade de expressão e acesso à cultura e saúde são alguns dos bens essenciais que não queremos vendidos só a quem pode pagar mas que queremos acessíveis a todos. É para isso que pagamos impostos. Por isso, neste sistema, os recursos devem ser aplicados em função da sua utilidade para todos e não em função dos caprichos dos fregueses.

1- CM, 29-12-08, Doentes com gripe devem ficar em casa
2- João Miranda, 30-12-08, Não é uma questão técnica

sábado, janeiro 03, 2009

No céu há mal ou é tudo robôs?

O Pedro Amaral Couto pôs esta pergunta interessante:

«Sobre o livre-arbítrio: no Céu existe livre-arbítrio para praticar o mal? E existe morte, doença e desastres no Céu?»(1)

É interessante porque se no Céu há livre-arbítrio mas não há maldade então era possível Deus ter criado tudo de forma a haver livre-arbítrio sem haver maldade. Até pode ser porque as pessoas no Céu são todas boazinhas, mas nesse caso era só criar as pessoas todas boazinhas. Por exemplo, se tivesse criado Adão e Eva bonzinhos e obedientes não havia problema nenhum.

Se isto não era possível, se o livre-arbítrio implica sempre a possibilidade de se praticar o mal, então quem está no paraíso pode ainda pecar e ser mandado para o inferno. Afinal, os demónios já foram anjos.

É claro que o interesse desta pergunta é limitado por ser tudo uma obra de ficção. Mas tem aquele fascínio de perguntar como é que o Superhomem, voando de baixo para cima, apanha nos braços a Lois, que caiu vinte andares, e ela não se desfaz em três bocados.

1- Comentário em Saber que não existe.

sexta-feira, janeiro 02, 2009

Segurança.

Uma das muitas regras para a bagagem de mão nos aviões especifica que produtos como champô e desodorizante devem ir em frascos dentro de sacos de plástico transparente. A ideia deve ser impedir os terroristas de levar explosivos dentro de frascos de champô em sacos de plástico transparente. Há umas semanas, a Rhona Mahony do Wild Bee embarcou com 3 frascos num saco de plástico transparente. Um continha carvão em pó, outro salitre e o terceiro enxofre. Os frascos estavam rotulados de forma visível mas não atraíram a atenção dos seguranças. O que os levou a analisar a mala para detectar vestígios de explosivos foi uma flauta de bambu com ar suspeito. Mesmo assim a máquina não acusou nada.

O teatro que a Transport Security Agency encena, uma produção de três mil milhões de dólares por ano com quarenta e oito mil figurantes, tem pouco a ver com segurança. O propósito é mostrar que se faz coisas. É o equivalente anti-terrorista do xarope de cenoura com açúcar mascavado no combate à pneumonia, só que muito mais caro e incomodativo. Não é por isso de esperar que os agentes que inspeccionam a bagagem à procura de explosivos saibam que carvão, salitre e enxofre são os ingredientes da pólvora.

O artigo está disponível aqui. Via Schneier on Security.

quinta-feira, janeiro 01, 2009

Acreditas?

A pergunta “acreditas no Pai Natal?” é normalmente interpretada como referindo a hipótese do Pai Natal existir. O inquirido responderá de acordo com a sua opinião acerca da existência do Pai Natal. Mas a pergunta “acreditas no teu pai?” é diferente. O mais provável é o inquirido assumir a existência do seu pai como um dado aceite e responder de acordo com a relação que tem com o pai. Se confia nele ou não.

Este é um problema no diálogo com os crentes. Acreditar num deus, para muitos crentes, não é considerar verdadeira a hipótese que esse deus existe. Essa hipótese parece nem merecer consideração. Acreditar, para estes crentes, é confiar no deus cuja existência assumem implicitamente. Daí a confusão quando questionamos o fundamento desse acreditar.

Acusam-nos de argumentar acerca desse deus. Não é nada disso. O deus é apenas parte da hipótese e o argumento acerca da justificação para crer que ele existe. Mas a interpretação do crente é que se questiona a sua confiança nesse deus, vendo na conversa uma discussão sobre os atributos do deus. Se é infalível, se é benevolente, se ditou todos aqueles capítulos e versículos e assim por diante. E, por isso, o que tenta justificar é essa confiança. Invoca o fundamento para a moral, o sentido da vida, a relação pessoal com o salvador e uma data de coisas que só seriam relevantes se assumíssemos que existe e estivéssemos a decidir se merece confiança. Mas nada disto serve para concluir que esse deus existe, e essa é a questão que queremos focar.

Em parte compreende-se esta confusão porque a educação religiosa foca o dever de confiar no deus e esconde a questão fundamental da sua existência. Na catequese não explicam às crianças porque é que o deus que calhou aos seus pais há de ser o único e verdadeiro. Dizem-lhes que é e seguem em frente. O objectivo é incutir-lhes crenças e não ensiná-las a questionar. Mas isto só explica a confusão inicial. Uma vez esclarecido que o que questionamos é a hipótese do tal deus existir o problema devia ficar resolvido.

Com os fundamentalistas resulta. Mais ou menos. Apresentam argumentos incoerentes em como a informação codificada no ADN supostamente demonstra que Jesus é filho de um deus e nos salvou a todos, ou disparates do género. Isto não justifica acreditar que o deus deles existe, mas pelo menos não fogem da pergunta e quase reconhecem a necessidade de encontrar indícios objectivos para fundamentar a sua posição. Quase porque, no final, invocam sempre a fé e os milagres.

Talvez pelo ridículo em que caiem os fundamentalistas, outros crentes preferem evitar a pergunta aproveitando a ambiguidade do termo “acreditar”. Por muito que se insista no problema de justificar a crença que aquele deus existe arrastam sempre a conversa para a confiança que têm nele. Nas teologias mais elevadas, o ar rarefeito inspira razões para além da razão e outras inefabilidades como desculpa para se confiar em algo que nada indica existir. E não tentam sequer demonstrar que existe.

A investigação sistemática e objectiva permite-nos compreender muitas coisas. Não só acerca de objectos materiais ou relações de causa e efeito mas também que se formam partículas subatómicas sem que nada o cause, que a matéria distorce o espaço-tempo, que num sistema formal complexo não se pode derivar tudo o que é verdadeiro sem derivar contradições e que há números infinitos infinitamente maiores que outros números infinitos. Esta abordagem serve para resolver problemas dos mais concretos aos mais abstractos. É por isso revelador que, quando se chega à existência de deuses, os fundamentalistas se estampem contra os factos e os outros crentes fujam da pergunta invocando «outras formas de saber» que ninguém explica o que sejam.

Se existisse, o omnipotente e caridoso criador do universo seria como um elefante na casa de banho. As evidências seriam tão esmagadoras que nem o mais céptico dos ateus teria coragem de duvidar. Que ao fim de tantos séculos só haja desculpas vagas e disparates sem qualquer vestígio claro desse ser é evidência suficiente para concluir que ele não existe.