Inferências
Há uns posts escrevi que inferimos a existência do electrão pelo que essa hipótese explica (1). A propósito disto, o Tiago Luchini escreveu «Deus existe pelo próprio fato que consigo inferir sua existência observando os efeitos de suas acões em minha vida - sem contar na de outros ao meu redor! Não preciso acrescentar nem mudar nada ao ponto-de-vista 100% ateu!» (2). Isto é um erro.
Uma inferência é um passo lógico num raciocínio. A inferência mais segura é a dedução: Sócrates é um homem, todos os homens são mortais, por isso Sócrates é mortal. Não tem nada que enganar mas adianta pouco. No fundo, conclui-se o que já se sabia. A indução é menos segura mas mais útil pois infere uma generalização. Se vi cem corvos pretos posso induzir que são todos pretos e pronto. Agora sei algo sobre milhões de corvos. Posso-me enganar, mas dá jeito.
A mais útil de todas é a abdução, a inferência de uma explicação. Chego a casa e tenho a porta arrombada, falta o televisor e o computador. Infiro que fui assaltado. Não é uma dedução, pois não há uma implicação lógica entre as premissas e a conclusão. Também não é uma indução. Não estou a generalizar a partir de um conjunto de observações semelhantes. Estou a procurar a melhor explicação para o que observo.
Esta explicação tem que ter duas propriedades. Tem que ser compatível com o que sei e observo. Seria um erro inferir que o porquinho da índia tinha partido a porta e comido os electrodomésticos. E tem que explicar o que observo. Ou seja, tem que ser uma hipótese tal que, se for verdade, implica logicamente esta observação. A hipótese do assalto cumpre este requisito. Se, antes de eu ver a casa, um polícia me diz que foi assaltada eu posso deduzir muito do que vou observar quando lá chegar.
Hipóteses mágicas cumprem automaticamente o primeiro requisito. Qualquer coisa que aconteça é compatível com deuses, milagres e outras bruxarias. Mas é precisamente por isso que nunca cumprem o segundo. Se o polícia me disser que houve um milagre em minha casa eu fico na mesma. Não faço ideia que vou ver quando lá chegar.
A abdução é a inferência mais arriscada e por isso as explicações estão muitas vezes erradas. Têm que ser testadas, corrigidas, testadas novamente e substituídas num processo interminável. A história da ciência está cheia de exemplos. Mas abduzir explicações vale a pena porque é a inferência que dá mais informação. Newton estava enganado, mas a explicação dele ainda hoje é extremamente útil e informativa.
O Tiago faz uma inferência arriscada para nada. Observa pássaros, árvores, e a vida das pessoas e infere que há um deus por trás disto tudo. É arriscado porque há infinitas alternativas (zero deuses, dois, três, quatro...). E não explica nada porque assumir um ser omnipotente não diz nada acerca de nada. Uma explicação tem que delimitar as possibilidades, tem que distinguir o que é do que não pode ser. Finalmente, fica entalado numa hipótese incorrigível. Se está enganado nunca poderá sabê-lo. Isto não é uma inferência justificável.
Para que um deus seja uma explicação tem que ser uma hipótese concreta da qual possamos deduzir o que podemos observar e o que nunca observaremos. E para ser melhor que as explicações que temos (sem deuses) tem que separar com mais rigor e detalhe o que a realidade pode ser daquilo que não pode. A abdução é a inferência à melhor explicação, e se algum deus se revelar a melhor explicação devemos inferir a sua existência. Tal como inferimos a existência do electrão.
Mas o Tiago quer inferir algo que não é consequência lógica, nem generalização, nem explicação. Isso não é inferência. É o tal preconceito a que chamam fé.
1- Quantas Realidades?
2- Tiago Luchini, 29-11-07, Inferindo a existência de Deus