sexta-feira, novembro 30, 2007

Inferências

Há uns posts escrevi que inferimos a existência do electrão pelo que essa hipótese explica (1). A propósito disto, o Tiago Luchini escreveu «Deus existe pelo próprio fato que consigo inferir sua existência observando os efeitos de suas acões em minha vida - sem contar na de outros ao meu redor! Não preciso acrescentar nem mudar nada ao ponto-de-vista 100% ateu!» (2). Isto é um erro.

Uma inferência é um passo lógico num raciocínio. A inferência mais segura é a dedução: Sócrates é um homem, todos os homens são mortais, por isso Sócrates é mortal. Não tem nada que enganar mas adianta pouco. No fundo, conclui-se o que já se sabia. A indução é menos segura mas mais útil pois infere uma generalização. Se vi cem corvos pretos posso induzir que são todos pretos e pronto. Agora sei algo sobre milhões de corvos. Posso-me enganar, mas dá jeito.

A mais útil de todas é a abdução, a inferência de uma explicação. Chego a casa e tenho a porta arrombada, falta o televisor e o computador. Infiro que fui assaltado. Não é uma dedução, pois não há uma implicação lógica entre as premissas e a conclusão. Também não é uma indução. Não estou a generalizar a partir de um conjunto de observações semelhantes. Estou a procurar a melhor explicação para o que observo.

Esta explicação tem que ter duas propriedades. Tem que ser compatível com o que sei e observo. Seria um erro inferir que o porquinho da índia tinha partido a porta e comido os electrodomésticos. E tem que explicar o que observo. Ou seja, tem que ser uma hipótese tal que, se for verdade, implica logicamente esta observação. A hipótese do assalto cumpre este requisito. Se, antes de eu ver a casa, um polícia me diz que foi assaltada eu posso deduzir muito do que vou observar quando lá chegar.

Hipóteses mágicas cumprem automaticamente o primeiro requisito. Qualquer coisa que aconteça é compatível com deuses, milagres e outras bruxarias. Mas é precisamente por isso que nunca cumprem o segundo. Se o polícia me disser que houve um milagre em minha casa eu fico na mesma. Não faço ideia que vou ver quando lá chegar.

A abdução é a inferência mais arriscada e por isso as explicações estão muitas vezes erradas. Têm que ser testadas, corrigidas, testadas novamente e substituídas num processo interminável. A história da ciência está cheia de exemplos. Mas abduzir explicações vale a pena porque é a inferência que dá mais informação. Newton estava enganado, mas a explicação dele ainda hoje é extremamente útil e informativa.

O Tiago faz uma inferência arriscada para nada. Observa pássaros, árvores, e a vida das pessoas e infere que há um deus por trás disto tudo. É arriscado porque há infinitas alternativas (zero deuses, dois, três, quatro...). E não explica nada porque assumir um ser omnipotente não diz nada acerca de nada. Uma explicação tem que delimitar as possibilidades, tem que distinguir o que é do que não pode ser. Finalmente, fica entalado numa hipótese incorrigível. Se está enganado nunca poderá sabê-lo. Isto não é uma inferência justificável.

Para que um deus seja uma explicação tem que ser uma hipótese concreta da qual possamos deduzir o que podemos observar e o que nunca observaremos. E para ser melhor que as explicações que temos (sem deuses) tem que separar com mais rigor e detalhe o que a realidade pode ser daquilo que não pode. A abdução é a inferência à melhor explicação, e se algum deus se revelar a melhor explicação devemos inferir a sua existência. Tal como inferimos a existência do electrão.

Mas o Tiago quer inferir algo que não é consequência lógica, nem generalização, nem explicação. Isso não é inferência. É o tal preconceito a que chamam fé.

1- Quantas Realidades?
2- Tiago Luchini, 29-11-07, Inferindo a existência de Deus

quinta-feira, novembro 29, 2007

Como Tudo Começou. 3- A Origem do Universo.

O terceiro capítulo do livro de Adauto Lourenço (AL) é sobre «A Origem do Universo». Neste AL recorre às duas primeiras leis da termodinâmica, cálculos complicados, e às técnicas de argumentação favoritas do criacionismo: a omissão e a mentira descarada.

AL calcula que há mil e duzentos milhões de anos a Lua teria que estar a tocar na Terra, a julgar pelo ritmo com que se afasta. Em apêndice mostra os cálculos detalhados (podem ver um exemplo semelhante na referência 1), com contas complicadas, mas tudo assenta na premissa que a dissipação da rotação da Terra pelas marés (pelo atrito da crosta com os oceanos) foi sempre igual aquela que é hoje. E as evidências desmentem esta hipótese.

Quando a Lua estava mais próxima a Terra rodava mais rapidamente e as marés eram maiores. AL afirma que «Marés com valores oito vezes maiores que os actuais teriam deixado marcas visíveis nas regiões costeiras. Tais marcas não foram detectadas». Até foram. E são essas que refutam o modelo simplificado dos criacionistas.

As marés junto ao estuário de grandes rios levam à formação de rochas pela acumulação alternada de sedimentos do rio e areia do mar, e nestas rochas é possível medir o período e intensidade das marés. A Lua está a afastar-se da Terra a 3.8 cm por ano, mas a evidência é que no passado o fez mais lentamente, em média a cerca de 1.3 cm por ano nos últimos dois mil e quinhentos milhões de anos (2). O atrito dos oceanos na crosta terrestre foi menor no passado e é por isso que as contas do modelo criacionista não dão certo. Isto demonstra mais uma vez que é preferível considerar a evidência toda do que fazer uma data de contas só com o bocadinho que pensamos dar mais jeito.

AL invoca a segunda lei da termodinâmica, que diz que a entropia de um sistema isolado aumenta até ao equilíbrio, para defender que Alguém tem que ter «dado corda» ao universo, organizando as coisas no princípio para se poder depois ir desorganizando gradualmente. Mas omitiu a expansão do universo. O universo começou desorganizado, mas a expansão aumentou rapidamente o máximo de entropia. É como duplicar o tamanho de um quarto todo desarrumado. Estava o mais desarrumado possível mas agora pode-se desarrumar ainda mais. Apesar do universo ter começado desordenado a desordem aumentou. E graças à expansão do universo, ainda há muito para a aumentar.

Finalmente, AL aponta que a primeira lei da termodinâmica, a lei da conservação de energia, está a ser violada porque a expansão do universo aumenta o comprimento de onda da luz. «Uma vez que a energia da luz é proporcional à sua frequência, isto pode implicar numa perda de energia. Até o momento, a teoria do big bang não oferece explicações para esta possível perda de energia». Refere como fonte o Principles of Physical Cosmology do P.J.E. Peebles. Edição de 1993, e página 138. Eu tenho este livro, e é o de 1993. Na página 138 não está nada relevante, mas está na 139:

«The resolution of this apparent paradox is that while energy conservation is a good local concept […] and can be defined more generally in the special case of an isolated system in an asymptotically flat space, there is not a general global energy conservation law in general relativity theory.»

O que AL considera ser uma lei que manda o universo conservar a energia dê lá por onde der é apenas uma generalização válida em certas condições. Hoje sabemos que não se aplica dessa forma ao universo como um todo. Mas o pior é dar a entender que o livro suporta a posição dele quando diz exactamente o contrário do que ele defende. Talvez tenha papagueado uma alegação de outro criacionista, mas se leu o livro sabia que estava a mentir.

O método criacionista é claro. Ignora-se factos, baralha-se as coisas e, de vez em quando, mete-se uma mentira a ver se ninguém nota.

1- Center for Scientific Creation, How Long Would It Take the Moon to Recede from Earth to Its Present Position?
2- Tim Tompson, TalkOrigins, The Recession of the Moon and the Age of the Earth-Moon System

quarta-feira, novembro 28, 2007

Censurar a Internet?

Acerca do último post (1) várias pessoas discutiram a possibilidade de censura da Internet. Era chato. Felizmente, não deve ser possível. Um exemplo do Krippmeister foi o Google na china, que censura resultados da pesquisa de acordo com restrições do governo. As imagens abaixo mostram a diferença entre pesquisar imagens por tiananmen no Google.com e no Google.cn, o portal Chinês deste motor de pesquisa:

Free Image Hosting by FreeImageHosting.net
Google.com

Free Image Hosting by FreeImageHosting.net
Google.cn

Mas podemos ver uma das dificuldades da censura quando procuramos no Google.cn por tianamen, omitindo apenas o n depois do m.

Free Image Hosting by FreeImageHosting.net
Google.cn

Um governo como o da China pode filtrar os pacotes de dados que entram e saem do país. Mas cada forma de filtrar, seja por palavras ou endereços, pode ser ultrapassada por encriptação do conteúdo ou por reenvio (2). O problema é semelhante aos das empresas discográficas. Numa rede onde se pode enviar números de um lado ao outro do globo os governantes têm que identificar as sequências de números que dizem mal do governo...

A única forma de fazer isto é como na Coreia do Norte, onde já executaram pessoas por «distribuir filmes ilegais» (3). Lá não há Internet e pronto. Mas na «Democratic People’s Republic of Korea» (DPRK) não precisam de liberdade de informação para ter gente culta. Lá os intelectuais são treinados, no sistema de Educação Socialista:

«Number of Intellectuals Increases in DPRK
Pyongyang, September 4 (KCNA) -- Thirty years have passed after "Theses on Socialist Education", the Juche-based great programme for training talents, was published in the DPRK. In this period the theses fully displayed its validity and great vitality.
More than 2.1 million intellectuals have been trained»
(4)


1- Dois Césares.
2- Para quem quiser mais detalhes, ver na Wikipedia Internet censorship in the People's Republic of China
3- ZeroPaid, North Korea Executes Young People for 'Illegal Movie Distribution'
4- Ver aqui, aproximadamente a um quarto da página.

terça-feira, novembro 27, 2007

Dois Césares.

No Diário de Notícias de ontem, João César das Neves (JCN) escreveu que «A Internet é a maior colecção de insultos, mexericos, boatos e disparates alguma vez reunida na história da humanidade»(1). Explica que «a Net tende a trazer ao de cima os instintos mais baixos dos que a frequentam. Uma prova desse facto é que muita gente põe em blogs e e-mails coisas que teria vergonha de dizer ao telefone, escrever numa carta ou publicar em jornais ou livros.»

A primeira é trivialmente verdadeira. A Internet é a maior colecção de informação, seja do que for. É a maior colecção de receitas de bacalhau, de artigos sobre os Teletubbies e também de insultos. Mas JCN tem razão na segunda parte. A escrita imediata combina a velocidade de uma conversa com o distanciamento de uma carta, e por vezes leva-nos a dizer as coisas de uma forma menos feliz. Como acontece a quem tem que escrever artigos de opinião todas as semanas, por exemplo.

E o efeito acentua-se com o anonimato. Há quem use as caixas de comentários e os blogs como usa a porta da casa de banho, desabafando com um insulto qualquer que nunca subscreveria. Mas isso não é novidade. Só não encontramos nas litografias mais antigas aquelas do chefe a ter relações com um macaco porque o chefe mandou apagá-las.

Mas discordo que isto seja um problema a corrigir, ou que «a liberdade descontrolada e irresponsável torna-se embriagante e destruidora.» A troca livre de ideias não é destruidora, mesmo que algumas sejam impulsivas e pouco relevantes. Quando leio um comentário anónimo a chamar-me imbecil sei pelo anonimato que o comentador reconhece o disparate. E não há mal nenhum em errar quando se está disposto a aceitar correcções. O que me leva à razão deste post.

Se fosse só o JCN não tinha escrito isto. Mas queria contrastar a posição dele com um post recente do Luís Azevedo Rodrigues no Ciência ao Natural (2). O Luís é paleontólogo e relata neste post como ajudou a corrigir vários erros em material público, dando os exemplos de uma exposição no Oceanário e um artigo no jornal O Público. Em ambos os casos o material foi corrigido de acordo com as recomendações do Luís sem qualquer reconhecimento público. Na liberdade destruidora da Internet isto seria inadmissível, mas nas instituições reguladas como a imprensa faz parte das regras não creditar quem contribui com correcções. Leiam o post do Luís para mais detalhes.

A Internet tem regras melhores que as que havia antes. Pode-se dizer o que se quiser, mas os outros também podem. E certamente dirão. Pode-se comentar anonimamente mas só os novatos ligam aos trolls (3). Não se faz blogs sem caixa de comentários. E deve-se assumir a natureza cooperativa do diálogo, atribuindo correctamente as críticas, os elogios e os agradecimentos. Sob pena de levar uma ensaboadela do resto do pessoal. Na Internet ninguém liga aos insultos ou aos disparates, mas não se faz o que fizeram ao Luís.

O problema do JCN, e daqueles a quem o Luís ajudou, é ver a comunicação como sendo de um para muitos. A quem se julga no púlpito incomoda o burburinho da plateia, opiniões diferentes ou correcções. Mas a Internet é uma ferramenta de diálogo e não de sermão. Na Internet as regras não controlam conteúdos. Servem apenas para facilitar o diálogo.

1- João César das Neves, 26-11-07, A internet e o far west.
2- Luís Azevedo Rodrigues, 19-11-07, A César o que é de César... menos em Portugal!
3- Wikipedia, Internet Troll

segunda-feira, novembro 26, 2007

Quantas realidades?

O leitor A. J. Faria exortou recentemente: «Aceitemos as realidades como são»(1). E no seu blog, afirmou que

«Há mais mundo para além do palpável, o transcendente existe, e não existe ciência humana que possa medir a sua profundeza.
Há realidades que a ciência nunca poderá contestar, pelo simples facto de que a sua função não é essa.»


A ideia de haver várias realidades é incoerente. A realidade é simplesmente o conjunto de tudo o que é real, por isso não pode haver mais que uma. Mas vou interpretar a afirmação como referindo aspectos da realidade que estão para além da possibilidade de observação. É este o conjunto (hipotético) de entidades ou acontecimentos que a ciência humana nunca poderá medir ou contestar.

A ciência cria modelos da realidade e testa estes modelos confrontando-os com observações. Por isso aquilo que está além da observação está além da ciência. Mas é preciso ser inclusivo nisto da «observação», porque mesmo uma observação muito indirecta já traz qualquer fenómeno para o âmbito da ciência.

Não conseguimos observar electrões directamente. Apenas os podemos inferir como explicação para o comportamento dos detectores, circuitos electrónicos, átomos e moléculas, etc. Mesmo que Deus fosse tão fugidio como um electrão devía ser possível inferir a sua existência observando os efeitos das suas acções. Era isso que se pensava antes, mas a crença religiosa mais esclarecida já não defende essa posição. Defende que Deus é «transcendente», totalmente para além do que podemos observar.

O problema então é como saber que existe tal coisa. Se há «outras realidades», ou aspectos absolutamente insondáveis desta realidade, então nunca o saberemos. Qualquer coisa que se diga acerca disso será pura especulação, se acertar será por mero acaso, e não faz qualquer diferença porque nunca vamos descobrir se acertámos ou não.

Não sei se há coisas que a ciência nunca descobrirá. Pode haver. Mas é treta que saibam que coisas são essas. Não há maneira de o saber. Podem especular, podem inventar e podem acreditar com a força que quiserem. Mas não podem saber, porque se pudessem também a ciência podia.

1- Eles falam, falam, falam...
2- A.J.Faria, 18-11-07, Realidades diversas...

domingo, novembro 25, 2007

Eles falam, falam, falam...

No Diário de Notícias de ontem, Anselmo Borges escreveu sobre «O Diálogo Ciência-Religião» (1). Mas diálogo só tinha no título. Num diálogo os interlocutores tentam chegar a consenso conciliando, corrigindo ou eliminando ideias. O que Anselmo Borges propõe é «a autonomia de cada uma das esferas e dos respectivos campos de intervenção», e que a «religião tem de colocar-se no seu domínio próprio e saber claramente que não pode contradizer a ciência.» Concordo que não contradiga, mas de se um dos intervenientes não pode contradizer o outro não há diálogo. Só conversa de barbearia.

É discutível se alguma vez houve diálogo entre religião e ciência. Dantes parecia haver, mas em retrospectiva nota-se que sempre se fez ou ciência ou religião. Mesmo quando a hipótese de um criador inteligente explicava alguma coisa ou era vista como uma hipótese a testar ou era aceite por fé. Não se concilia o desejo arrebatador que uma crença seja verdade com a procura imparcial por aquelas crenças que são verdade.

A ciência podia contribuir para a religião se houvesse mesmo deuses e a ciência descobrisse evidências de uma criação inteligente. E se isto acontecesse nenhum crente ia propor separar os domínios. Como aconteceu durante os séculos em que se pensava haver evidências de Deus. Mas a ciência acabou por revelar a religião como mais uma forma de superstição. A ideia que o universo é uma criação inteligente é como a ideia que a ferradura dá sorte. Sem justificação ou utilidade.

E a religião também não contribui nada para a ciência. Os fundamentos da religião são infundados e o método da fé não serve para descobrir seja o que for. Anselmo Borges defende o contrário, alegando que «a ciência, apesar da acumulação dos seus sucessos gigantescos, não pode reivindicar o monopólio da racionalidade, como se fosse a única via de conhecimento verdadeiro. A razão é multidimensional.» Mas isto é um equívoco.

Racionalidade e conhecimento não são a mesma coisa. Se a proposição p é verdadeira, a razão diz-me que a negação de p é falsa. Isto é racional. Mas não é conhecimento no sentido de me informar acerca da realidade. A religião até podia ser racional. Normalmente não é, e o Cristianismo está cheio de contradições, mas podia ser tão racional como o xadrez que não fazia diferença. Por si só a racionalidade não torna algo relevante para a compreensão do que nos rodeia. O diálogo entre xadrez e ciência seria um disparate. Não importa ao xadrez que os cavalos não consigam saltar por cima das torres e o modelo dos bispos a mover-se apenas na diagonal não corresponde à realidade.

O equívoco aqui é confundir aplicações diversas da racionalidade com realidades diversas e separadas. A racionalidade pode ser usada para criar jogos, racionalizar a fé ou encontrar explicações para o que observamos. A ciência não tem o monopólio de tudo mas domina esta última aplicação. A racionalidade dá-nos modelos fiáveis da realidade apenas se aliada à observação e à dúvida metódica. Anselmo Borges conclui com:

«Ao crente monoteísta parece mais razoável uma interpretação da realidade que co-implica a presença do Deus transcendente, amor pessoal e criador. Afirma-se desse modo a infinita transcendência de Deus e a sua mais íntima presença à criatura, tornando-se então claro o que parece paradoxal: precisamente porque Deus está sempre presente como criador, faz o mundo fazer-se autonomamente, seguindo as leis próprias da natureza e a liberdade.»

Este parágrafo ilustra bem o problema. Há diálogo na ciência porque há um esforço para conciliar ideias e um consenso que a forma de o conseguir é confrontando-as com as observações. Assim o diálogo é possível e proveitoso. Mas a fé não visa corrigir ou conciliar ideias. Visa defender a sua dê lá por onde der. Assim não há diálogo, nem com a ciência nem entre religiões. Em parte porque falta às religiões uma forma fiável de corrigir os erros. Mas principalmente porque lhes falta o mais fundamental em qualquer diálogo: admitir a possibilidade de estar enganado.

1- DN, 24-11-07, Anselmo Borges, O Diálogo Ciência-Religião. Obrigado ao comentador anónimo que me enviou o link.

sexta-feira, novembro 23, 2007

Como Tudo Começou. 2- «r=0, pois r=1/2».

Para ir de um lado a outro tenho que percorrer metade do caminho, depois metade do que falta, depois metade disso e assim por diante. Como a sequência é infinita, Zenão decidiu que era impossível chegar a algum lado. O problema era só não saber fazer as contas, porque a série geométrica r + r2 + r3 + r4 +... converge para um valor finito se r estiver entre -1 e 1. Mas a semelhança com o criacionismo não se fica por declarar impossível o que é óbvio e trivial. Quando Adauto Lourenço demonstra esta resolução escreve «r<0» sempre que devia escrever «|r|<1», acabando na curiosa afirmação que r é menor que zero pois r é igual a um meio. Gralha ou não, é criacionismo chapado.

O segundo capítulo foca a complexidade especificada e a complexidade irredutível. Adauto começa bem quando afirma que «Informação pode ser definida como a actualização de uma possibilidade com a exclusão das demais». Ou seja, quanto mais possibilidades há, mais informação é necessária para seleccionar uma delas. É mais difícil adivinhar uma palavra chave com trinta caracteres do que uma com dois.

Mas depois afunda-se com «A complexidade especificada aparece sempre na forma de informação especificada». É a definição de William Dembski, que não faz sentido. Quanto mais especificado menos possibilidades de onde escolher. Se especificar que a palavra chave só tem vogais, ou que é o nome de um político famoso, ou que é o nome de solteira da minha tia paterna, estou a reduzir a informação necessária para a obter porque reduzo as possibilidades. É por isso que o conceito de Dembski nunca foi devidamente formalizado nem tem qualquer aplicação na teoria da informação. É zero igual a um meio.

Michael Behe definiu a complexidade irredutível como a dependência de todas as partes do sistema no desempenho de uma função. Behe diz que tal sistema não pode ser fruto da evolução porque não pode desempenhar aquela função se estiver incompleto. O que é irrelevante. Uma asa só serve para voar se estiver completa, mas meia asa serve para correr mais depressa, como nas galinholas. E um olho pitosga não serve para ler o destino do autocarro mas dá para não ser atropelado. Os exemplos favoritos de Behe, como o flagelo bacteriano ou a coagulação do sangue, são perfeitamente compatíveis com a evolução. Partes do flagelo bacteriano formam um sistema excretor e a cascata enzimática na coagulação sanguínea é formada por cópias de um gene ancestral, evidência de um sistema original mais simples. Essencialmente, Behe argumenta que tem que haver um Criador porque ele não percebe como as coisas evoluíram. Nem que zero seja igual a um meio.

No segundo capítulo Adauto recorre a uma variante do bolo de chocolate do primeiro capítulo. A escultura dos presidentes dos E.U.A. no monte Rushmore foi claramente fruto de um desígnio inteligente, mas a conclusão justifica-se porque temos evidências da existência dos seus criadores. Até sabemos que custou $989.992,32 (1). Não é evidência da intervenção milagrosa do Deus Criador de bustos presidenciais. Também sabemos que cada lesma é fruto do acto sexual de duas lesmas, bichos que pouco devem à inteligência. Os criacionistas não deviam ignorar esta pista importante, que bichos tão estúpidos criem algo que os criacionistas dizem exigir uma inteligência infinita.

1- Wikipedia, Mount Rushmore

Mais sobre as tretas do William Dembski no TalkOrigins:
Richard Wein, 2002, Not a Free Lunch But a Box of Chocolates

e sobre as do Michael Behe:
Irreducible Complexity and Michael Behe

A primeira parte desta série está aqui:
Como Tudo Começou. 1- Ciência e Criacionismo.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Evidências.

Porque é que o número no termómetro me indica a temperatura e o da balança o peso? Porquê não o contrário? Porque a evidência resulta de uma interpretação de uma experiência num contexto. Pode parecer que se vejo uma maçã é porque está lá a maçã e não preciso interpretar nada. Mas tenho que assumir que não estou a sonhar nem a alucinar, que aquela imagem corresponde a um objecto tridimensional, que esse objecto é uma maçã e muitas outras coisas. Nunca temos acesso directo à realidade, apenas um acesso indirecto mediado pelo muito que assumimos além da experiência imediata.

Mas isto não implica que haja uma verdade para cada um ou que se possa interpretar as coisas à vontade. Pelo contrário. Se cada um tivesse uma ligação directa à realidade os pós-modernistas teriam mais razão, bem como todos os que propõem milagres, criacionismos, astrologias e outras tretas. Nesse caso cada experiência teria o mesmo valor, cada percepção corresponderia a uma realidade e cada interpretação seria equivalente a qualquer outra. Mas é a relação entre os dados que dá evidências. Cada experiência e interpretação só serve o conhecimento se encaixar noutras. Por isso é absurdo concluir do termómetro que peso 37 kg, da balança que tenho 98 ºC de febre e que a maçã é um extraterrestre disfarçado. Isto não encaixa.

Ao longo dos séculos construímos um enorme edifício de conhecimento onde as interpretações se interligam. Da física nuclear à psicologia, da astronomia à biologia, temos modelos, dados e interpretações sem contradições ou separações. É essa rede que dá evidências que os nossos modelos estão bem encaminhados. Há muitas partes em construção ou remodelação, mas o mais importante é como tudo encaixa numa construção coerente.

Há volta deste edifício há caixas de sapatos e barracas de papelão. Milagres, crendices, superstições, ideologias disfarçadas. São coisas pequenas, frágeis, isoladas e sem utilidade mas que são fáceis de construir. Basta dizer meia dúzia de tretas com ar sério. Por isso, quando o acupunctor disser que desbloqueia a energia, o criacionista afirmar que o seu deus criou tudo ou o OVNIólogo contar como os extraterrestres andam a coleccionar tetas de vaca, perguntem onde estas coisas moram.

Se encaixam no que sabemos e expandem ou substituem parte do edifício merecem ser aceites. É assim que o conhecimento progride. Mas se querem ficar na casota do cão, se insistem na separação e não oferecem nada de melhor, então deixem estar que deve ser treta.

Editado a 23-11: Corrigido Kg para kg.

quarta-feira, novembro 21, 2007

É tudo criminoso...

Um professor de direito da Universidade de Utah, John Tehranian, calculou que arrisca diariamente mais de doze milhões de dólares em multas e indemnizações por violação de copyright. E não faz nada de especial. Nem sequer partilha ficheiros. O problema é que muito do que fazemos viola este alegado direito dos autores. Fotografar os amigos na rua reproduz sem autorização elementos protegidos da arquitectura de edifícios. Por cada email que respondemos ou enviamos difundimos uma cópia de material protegido. Cantar os parabéns num restaurante ou a música que estamos a ouvir no carro é uma actuação pública não autorizada. Desenhar o rato Mickey é criar uma obra derivada sem licença. E assim por diante.

Tehranian propõe que o problema da nova tecnologia não é facilitar a violação do copyright mas permitir a fiscalização e persecução dos infractores. A letra da lei sempre esteve muito longe do seu espírito e do uso comum, mas sem possibilidade de fiscalização o problema não era evidente. Jammie Thomas foi condenada a pagar duzentos mil dólares por partilhar vinte e quatro canções (1). No julgamento nem foi determinado se alguém as descarregou do seu computador. Foi condenada simplesmente porque disponibilizou o acesso às músicas, o que podia ter feito com um gravador de cassetes. Só que nesse caso não a apanhavam.

A crise não é por se poder ignorar o copyright, mas por se poder levá-lo a sério. O artigo de Tehranian está disponível aqui:

John Tehranian, Infringement Nation.

Fontes: Ars Technica, via Sivacracy

1- $9.250 por canção

terça-feira, novembro 20, 2007

E a diferença?

Em fevereiro deste ano reuniu-se a Select Committee on Science and Technology do Reino Unido. A esta comissão Kate Chatfield, representando a associação de homeopatas, respondeu que a única forma de distinguir preparações homeopáticas é pelo rótulo. À diluição a que são preparadas não há outra diferença:

«Q538 Lord Broers: I have a simple, technical question about homeopathy and drugs. Is it possible to distinguish between homeopathic drugs after they have been diluted? Is there any means of distinguishing one from the other?
Ms Chatfield: Only by the label.»
(1)

Imaginem agora o drama na França quando os laboratórios Boiron anunciaram uma troca acidental dos rótulos nas preparações homeopáticas de Gingko bioba e Equisetum arvense. A Agence Française de Sécurité Sanitaire des Produits de Santé mandou recolher os lotes afectados, mas assegurou o público que este erro não trazia riscos para a saúde (2). O incidente mostra a dificuldade de fiscalizar tretas. Por muito controlo que se tenha continuam a ser tretas. E se a única diferença é no rótulo todo o cuidado é pouco quando se cola as etiquetas, não vá alguém tomar gotinhas de água a pensar que são gotinhas de água.

Teria mais piada se não houvesse tanta gente a gastar dinheiro nisto. Mais detalhes no DC’s Improbable Science e na James Randi Foundation. E para quem quiser comentar em defesa da homeopatia, peço a paciência de ler primeiro «The End of Homeopathy?», do Ben Goldacre.

1-Select Committee on Science and Technology, 21-2-07, Examination of Witnesses (Questions 520-539)
2- AFSSAPS, 10-10-07 Retrait de lots de Gingko biloba et Equisetum arvense

100,028

É uma tendência natural de muitos bloggers celebrar a centésima milésima visita ao seu blog. Huuu, cem mil, ena, e assim por diante. Aqui não há nada disso. Neste blog celebra-se hoje a centésima milésima vigésima oitava visita! Huuu! Cem mil e vinte e oito! Ena! e assim por diante.

Muito obrigado a todos pelo apoio, e um agradecimento especial aos vinte e oito visitantes que tornaram esta celebração 0.028% melhor que as de outros blogs.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Treta da Semana: Deus, o livre arbítrio, e o fiado cósmico.

Não se sabe ao certo se pode haver uma decisão que é simultaneamente livre e racional. Mas parece consensual que só um agente informado, racional e consciente das consequências pode ter livre arbítrio. Um bebé, um ignorante ou um epiléptico não exercem um arbítrio livre. É bom senso impedir a criança de enfiar os dedos na tomada, mas na defesa da fé o bom senso é dispensável. O Pedro Silva comentou recentemente:

«Se Deus impedisse uma criança de pisar uma mina, também teria de impedir alguém de fumar, porque sabia que essa pessoa iria morrer de cancro.[...] A questão é: o Homem tem a liberdade para fazer estas coisas todas, e até construir minas, que poderão ou não ser pisadas por crianças. Evitar que a criança pise a mina é também evitar o mal de quem pôs a mina. É o Homem que faz isso, por sua própria vontade, não Deus.»(1)

A criança pisa a mina porque não sabe que a mina está lá. É um erro, como meter os dedos na tomada. Não é um exercício livre de vontade. E evitar o mal é uma coisa boa. Estou certo que o Pedro Silva avisava a criança se soubesse que ela ia pisar uma mina. Esse estranho respeito pelo livre arbítrio de quem fez a mina não justifica rebentar as pernas ao miúdo. E o mesmo Deus que deixa a criança ficar sem pernas desviou a bala que ia matar o Papa.

Conseguimos identificar substâncias nocivas pelo cheiro e sabor mas só notamos o cancro ou a radiação quando é tarde demais. Instintos fazem-nos evitar insectos que possam ser perigosos mas não sentimos o perigo da electricidade ou do amianto. Se torcemos um pé a dor impede-nos de fazer força até recuperar, mas quando sentimos o terremoto já está tudo a cair-nos em cima. E só recentemente descobrimos a importância de lavar as mãos. «Lavem as mãos» tinha sido um mandamento muito mais útil que todos os outros, que só servem o proselitismo ou para afirmar o óbvio.

A maldade deliberada e consciente pode vir do livre arbítrio mas quase todo o mal se deve à ignorância, à estupidez e ao azar. A escolha livre é rara. A informação é incompleta e qualquer acto tem consequências imprevisíveis. Não escolhemos o que somos, como somos nem onde nascemos. Vivemos limitados pela nossa natureza e sujeitos aos erros dos outros. E muito do que acontece não podemos mudar. A realidade está longe desta crença, como admite o Pedro Silva:

«E para os injustiçados aqui na terra, [Deus] relembra que não é aqui que a justiça definitiva é feita. Que fomos feitos para viver por amor, e quando morrermos, continuaremos a viver no verdadeiro Amor, se assim escolhermos.»

Este universo é tão diferente do que a crença exige que o crente tem que inventar um universo mais de feição. E é esse que conta. Este Deus dá a todos o livre arbítrio. Dá a uns a liberdade de morrer à fome e a outros a de nadar em riquezas. Mas depois castiga ou recompensa cada um pelas escolhas desta vida que não passa de uma partida de mau gosto.

É treta. Não vivemos num universo justo que respeita o nosso livre arbítrio e que compensa numa outra vida as injustiças desta. Se queremos justiça temos que a criar. Se queremos escolhas temos que compreender como as coisas funcionam e lidar com a realidade como ela é. Os que têm fome e sede de justiça não são bem-aventurados; estão é a ser enganados se acreditam no reembolso póstumo. E quem ama o outro avisa-o que vai pisar uma mina.

1- Comentário a O que é e o que se sabe ser.

domingo, novembro 18, 2007

Evidências contra um naturalismo Darwininano.

Constâncio Ladainha licenciou-se em gestão na Sacred Bible University, no Texas, EUA e é um dos principais proponentes do Gertrudismo. Este ramo do criacionismo bíblico defende que Deus criou todos os seres vivos por intermédio de Gertrudes, a quarta pessoa divina roubada à tradição Cristã pela heresia do trinitarismo.

Deus criou os Céus e a Terra e todos os seres vivos, como nos relata a Bíblia, e fê-lo por intermédio de Gertrudes, como comprova a Fé. Mas não quero defender aqui uma tese religiosa. Aceitei o convite do Ludwig para defender uma ideia estritamente científica e independente da religião: todo o Universo e todos os seres vivos foram criados por Deus como relatado na Bíblia. E irei fazê-lo lançando dúvidas sobre a teoria naturalista de Darwin. Evidentemente, se tivermos razões para suspeitar que Darwin errou seremos forçados a aceitar o relato Bíblico como a única explicação possível para a origem dos seres vivos.

O primeiro ponto a salientar é que Darwin era apenas um biólogo, sem formação jurídica, e o melhor que podia fazer era propor uma teoria. Em contraste, o movimento criacionista conta com nomes como Phillip E. Johnson, professor de direito e pai do movimento de design inteligente, ou Bruce K. Chapman, com uma longa e distinta carreira de serviço público na política dos EUA e director do Discovery Institute. Estes sabem lidar com Leis, que são muito mais fiáveis que meras teorias.

É também importante compreender que a polémica não é acerca da evidência, mas apenas da forma como esta é interpretada. Por exemplo, os primatas têm 24 pares de cromossomas enquanto o Homem tem 23. Os evolucionistas defendem que todos descenderam de um ancestral comum, e que por isso deverá ter havido uma fusão de dois cromossomas na linhagem humana. Fazem um grande alarido porque o nosso cromossoma 2 tem sequências teloméricas no centro, quando estas só são encontradas nos extremos dos cromossomas, tem vestígios de dois centrómeros quando os restantes cromossomas têm apenas um centrómero cada, e a estrutura do cromossoma 2 corresponde à junção pelas extremidades de dois cromossomas do chimpanzé. Mas se ignorarmos o cromossoma 2 e focarmos a atenção nos restantes 23 não há qualquer indício de fusão de cromossomas na nossa espécie. A maioria dos cromossomas favorece o criacionismo!

Outro problema é a idade da Terra. Como é sabido, todas as disciplinas da Ciência estão em perfeita concordância como o relato Bíblico, excepto o Darwinismo que exige uma Terra com milhares de milhões de anos. Mas as evidências negam a hipótese. O Hélio é gerado por decaimento radioactivo dentro da Terra e liberta-se para a atmosfera. Se ignorarmos o Hélio que escapa para o espaço podemos calcular que demorou 175 mil anos a atingir a concentração presente de Hélio atmosférico. Também podemos calcular o limite para a idade da Terra considerando a concentração de elementos nos oceanos e a sua taxa de acumulação. Pelo sódio o limite será 260 milhões de anos, pelo cobre de cinquenta mil, e pelo chumbo de dois mil anos. Estes valores sugerem uma única intepretação: o Universo foi criado por Deus às 9:00h do dia 23 de Outubro do ano de 4004 AC.

Finalmente, devo salientar que o Darwinismo não explica tudo. Não nos diz como cada estrela nasceu, nem quais os neurónios que se activam quando penso na minha avó, nem a origem da palavra «prestidigitação». Há muitos mistérios que estão além do que a ciência pode explicar. Além disso, a própria abordagem de procurar uma explicação mecanicista é errónea. Se queremos compreender como o pão coze de nada adianta perceber as reacções de caramelização que dão a cor à côdea, que as leveduras produzem as bolhas de dióxido de carbono, ou que a gordura interfere na interacção das proteínas do glutem tornando a massa mais fofa. Basta saber que foi o padeiro que o fez e está tudo explicado. Para quê saber mais?

É por estas razões que devemos pôr de parte o naturalismo Darwinista e aceitar o que nos diz a Bíblia, o nosso coração de crentes, e toda a Ciência humana. O Universo em que vivemos foi criado há dez mil anos por um milagre mágico e misterioso do Deus que é Pai, Filho, Espirito Santo e Gertrudes.

sábado, novembro 17, 2007

Treta da Semana: A Sistemática do Milagre.

Como esta semana não pude pensar nesta rubrica estou especialmente grato ao comentador anónimo que sugeriu o tema mesmo a tempo. No Blasfémias, o Gabriel enumerou os quatro passos da determinação do milagre:

«Em primeiro lugar a averiguação da veracidade do facto, em seguida a investigação cientifica, só depois o enquadramento teológico e finalmente do seu significado.» (1)

O Gabriel também sugeriu a «explanação mais aprofundada» do teólogo Manoel Santos (2). Pretendo tecer aqui um comentário humilde, na boa tradição da humildade cristã, à «doutrina sistemática sobre o milagre», considerando alguns casos particulares. Começo pelo primeiro, a concepção imaculada de Maria. Um bebé diferente dos outros, Maria nasceu sem pecado. Não por algo que os pais tenham feito, mas simplesmente porque sim.

Segundo Manoel Santos, um milagre tem que ser «histórico, autêntico, real. Sabe-se quanto a imaginação é fértil em criar casos maravilhosos ou, ao menos, em aumentar as dimensões estranhas de determinado [facto].» Mas não há meio de averiguar que aquele bebé estava menos maculado que os outros. E o milagre seguinte é pouco melhor. Jesus nasceu da virgem Maria, o que poderia ter sido averiguado mas, felizmente, os interesses do dogma coincidiram com o respeito pela senhora e não há indícios que a importunassem para este efeito.

O segundo requisito é que o facto milagroso seja «inexplicável pela ciência contemporânea ao mesmo». Mas sempre foi fácil explicar a gravidez de uma jovem que alega não ter tido relações sexuais. Tanto que a desculpa do Espirito Santo só pegou daquela vez. E a explicação científica para a gravidez é recente. Nessa altura não havia mais que superstição e especulação infundada acerca da origem dos bebés.

Estes critérios de averiguação e ausência de explicação científica são uma treta. Na prática são ignorados, quer para os milagres antigos quer para os modernos. Maria Emília Santos foi milagrosamente curada da paralisia por intercessão dos pastorinhos. Mas o seu internamento enquanto doente foi por problemas psiquiátricos, o que faz duvidar do «facto» e sugere uma explicação científica. A fábrica de santos da Igreja não quer saber disso (3).

E são um disparate. Da balança indicar 98Kg infiro que peso 98Kg, mas se a balança indicar 20Kg vou concluir que se avariou. Infiro o facto baseando-me na melhor explicação para o que observo. Se observo que o doente se curou devo inferir que a doença não era incurável. Se observo que a senhora está grávida devo inferir que teve relações sexuais. Só posso inferir algo diferente se for consequência de uma explicação melhor, nunca pela ausência de explicação. É por isso contraditório exigir a averiguação do facto inexplicável. É só fogo de vista.

Nos últimos dois passos assegura-se que o milagre é «realizado em autêntico contexto religioso: o milagre vem confirmar, da parte de Deus, uma atitude religiosa do homem». E, finalmente,

«Na quarta etapa, do significado, quer-se descobrir o motivo da realização ou permissão, por parte de Deus, do específico fenômeno. Além da Revelação e da Teologia, há que estar atento às circunstâncias e às repercussões pessoais, comunitárias ou até mundiais do fenômeno.»

Ou seja, o milagre confirma a doutrina religiosa e tem consequências benéficas para a Igreja. Nunca poderá indicar que Deus está descontente com os sacerdotes, que é a favor da distribuição de preservativos ou que não se importa que as mulheres sejam padres.

O milagre é politiquice porque só é milagre se interessa a quem o declara milagre. E é desonestidade intelectual porque nunca podemos dizer que algo é inexplicável. Só podemos admitir ignorância e dizer que não conseguimos explicar, mas a ignorância não fundamenta conclusões.

1- Gabriel, 17-11-07, Mirare
2- Manoel Santos, 2003, Para uma teologia do milagre
3- Expresso, 31-7-99, Milagre de pés de barro. Versão online disponível apenas no cache do Google.

sexta-feira, novembro 16, 2007

Sobre a greve

dos autores dos guiões, séries, filmes e quase tudo o resto em Hollywood. Nem em greve eles resistem. Os do Daily Show:



E do Colbert Report:



(via Sivacracy)

quinta-feira, novembro 15, 2007

O que é e o que se sabe ser.

O Bernardo Motta criticou-me por rejeitar um deus que «pode fazer qualquer coisa que julguemos impossível, refutando toda a ciência moderna» (1). Escreveu o Bernardo que

«O Deus no qual acredito, o verdadeiro Deus, o Deus Criador de tudo o que existe, não viola o possível, não tem apetências pelo impossível, não é contraditório, nem ilógico (a violação das leis da lógica é um erro, e o erro é um puro nada, em termos ontológicos).» (2)

Um problema da teologia é afirmar o que é sem se preocupar como o sabe. Eu escrevi que o deus do Bernardo pode fazer algo que julgamos ser impossível. O Bernardo diz que o seu deus não faz nada que seja impossível. Mas a primeira questão é saber se é possível ou não. Vou aproveitar o exemplo do Bernardo.

«O exemplo que demos, no qual Cristo anda sobre a superfície das águas sem se afundar, [...] não viola quaisquer regras físicas. O efeito seria o mesmo se utilizássemos estruturas compressoras que aumentassem drasticamente a pressão num dado metro cúbico de água: com a necessária pressão, e eventualmente com alterações químicas que produzissem maiores tensões superficiais no líquido, um homem poderia andar sobre a superfície dessa água. A diferença é que Cristo, ao fazê-lo, valeu-se de causas sobrenaturais que provocaram localmente um efeito contra-natural (mas sem violar as leis da física), ou seja, contrário ao comportamento esperado deste líquido na natureza, quando não estão presentes causas sobrenaturais.»

Eu metia as causas sobrenaturais logo nos pés para não afundar, e pronto. Por muito que o Bernardo complique, não há sitio na ciência moderna onde ele possa enfiar causas sobrenaturais. Nem nos pés, nem na pressão da água, nem onde quer que seja. Newton incluiu uma ressalva sobrenatural. Os planetas seguiam aquelas equações mas, de vez em quando, Deus tinha que dar um jeitinho para não cair tudo no Sol. Mas desde Laplace que já não precisamos dessa hipótese.

Agora temos que escolher entre a ciência ou o sobrenatural. Eu rejeito o relato do homem a andar sobre a água porque as evidências favorecem claramente a física. O Bernardo prefere inventar as suas evidências especulando sobre a pressão da água e afins, mas a contemplação umbilical deve ser acompanhada de observação e testes às hipóteses que o umbigo revela. Como actividade isolada é fútil e enganadora.

Sem os bois da epistemologia a carroça da ontologia não anda. Não se pode afirmar que é assim sem saber primeiro alguma coisa, mas a teologia manda os bois pastar e senta-se à espera que a carroça ande sozinha. É por isso que Agostinho está há dezasseis séculos na vanguarda da investigação teológica cristã.

Não é por princípio que rejeito a existência do deus do Bernardo. É porque não há razão para aceitar que uma força sobrenatural aumentou a pressão ou lá o que foi, e tantas outras coisas que se explica pela imaginação humana sem ter deitar fora a ciência moderna para lá meter o sobrenatural. A ciência moderna tem um fundamento muito mais sólido precisamente porque rejeitou o sobrenatural. Parece que é assim que este universo funciona.

Se o peso das evidências pender para o outro lado admitirei a existência do deus do Bernardo. Não tento mandar na realidade com princípios ou definições, como faz o Bernardo ao afirmar que «Deus é um ente metafísico: por definição, ele é O ENTE SUPREMO metafísico;». Até pode defini-lo como um rabanete cantor que não faz diferença. Só definimos palavras. As coisas são o que são.

O que os meus princípios determinam é a minha relação com a realidade. E nesse sentido sou ateu por princípio. Mesmo que o deus do Bernardo exista e eu o descubra, deixarei de ser ateu no sentido de dizer que esse deus não existe, mas continuarei ateu no sentido de não me dar para ajoelhar, rezar, ou hossanas nas alturas. Posso não ser um ente supremo metafísico, mas tenho os meus princípios.

1- Eu, 3-10-07, Ateísmos
2- Bernardo Motta, 12-11-07, Milagres da ciência empírica

quarta-feira, novembro 14, 2007

Detalhes à parte.

A polícia Canadiana vai deixar de investigar casos de violação de copyright para uso pessoal. Segundo o director das investigações relacionadas com direitos de autor, irão focar casos de contrafacção com riscos para o consumidor (medicamentos, aparelhos eléctricos) ou relacionados com o crime organizado. A troca de MP3 não é uma prioridade (1).

Nos Estados Unidos tentam aprovar legislação incumbindo o governo federal de processar a partilha de ficheiros. Passará a ser crime, a investigação e o processo judicial serão pagos pelo contribuinte e os montantes cobrados reverterão para as associações de distribuidores. O Intellectual Property Enforcement Act (2) prevê também a formação de um grupo especial de investigadores em colaboração com o FBI.

Temos discutido aqui o papel do copyright no incentivo à criatividade e a sua importância para os direitos do artista. Alguns comentadores são pessimistas quanto à abolição deste sistema. Eu sou optimista. A julgar pelo resultado deste século de copyright penso que ficamos melhor servidos sem ele.

Desde 1886 que se protege a música, quase nada do humor e nada da ciência. A ciência progrediu imenso. A nossa compreensão do universo é radicalmente diferente da que tínhamos no final do século XIX. O humor também progrediu. Gil Vicente, Bocage, Gilbert e Sullivan tinham a sua piada, mas o humor de há uns séculos parece-nos infantil e superficial. Eu diria que os melhores cómicos de sempre estão vivos agora (excepto o Graham Chapman, que morreu com 48 anos).

A música, em média, regrediu. Hoje chamamos «música erudita» ao que no século XIX se chamava simplesmente música, e até se distingue entre a música comercial e a que tenta ter qualidade. O copyright comprou a distribuição em massa à custa da inovação.

Mas vamos supor que me engano e que sem o copyright regressamos àquele período negro entre as pinturas de Lascaux e o impressionismo em que nada se criou de valor artístico. Vamos supor que ficamos sem os Backstreet Boys e o Toy e temos que gramar compositores como Bach e Mozart. Mesmo este cenário pessimista é irrelevante, porque a decisão fundamental não é acerca da arte.

O que está em jogo aqui é a legislação da nossa vida privada. É se deixamos que partilhem o que gostam ou se sacrificamos os recursos e os direitos que for preciso para que milhões de pessoas tenham tanto medo do castigo que deixem de trocar ficheiros. Até agora tenho tentado explicar a alguns comentadores que o problema de incentivar a criatividade tem outras soluções. Agora pergunto eu como propõem obrigar que se respeite o copyright que defendem.

1- Le Devoir, 8-11-07, Les pirates peuvent dormir tranquilles
2- ZeroPaid, 13-11-07, The 'Pirate Act' Resurfaces, Would Allow Govt to Sue File-Sharers for Damages

terça-feira, novembro 13, 2007

A treta do copyright: biblioteca digital.

Até agora tenho criticado as justificações mais comuns do copyright, como o direito de restringir o acesso à cultura ou a necessidade de dificultar a cópia. Neste post tento consolidar estas críticas com um exemplo positivo e familiar. A biblioteca. Presumo que ninguém considera as bibliotecas imorais ou que o autor tem o direito de proibir que as bibliotecas disponibilizem a sua obra. Também vou assumir que ninguém condena o estado por financiar bibliotecas públicas.

As bibliotecas têm custos de infra-estrutura e pessoal, para armazenar os livros, discos e filmes, organizá-los e gerir os empréstimos ao público. Têm também custos de licenciamento pois têm que pagar aos gestores de direitos. Um exemplar na biblioteca é caro porque tira negócio ao distribuidor, e a sociedade precisa de quem faça milhões de cópias e as venda ao público.

Destas, o autor recebe uma percentagem muito pequena. A maior parte do custo de um livro, CD, ou bilhete de cinema está na distribuição e venda, não na criação artística. E a pequena percentagem que o autor recebe é um incentivo ineficaz. Os poucos que são famosos ganham fortunas muito além do incentivo e muitos ficam de fora por má publicidade ou simples azar, não por terem menos a contribuir. É o enorme custo de distribuição, muito superior ao de incentivar a criatividade, que justificou o mecanismo de «copyright» no século passado. Este sistema sustenta o distribuidor, a quem dá quase todo o lucro e controlo. Tem funcionado menos mal porque normalmente sobra algo para o autor.

Isto limitou o papel do estado na criação e distribuição de obras populares, ao contrário do que acontece com a ciência e outras actividades académicas. Não porque a criação em si seja diferente. É preciso profissionais qualificados em ambos os casos. Mas por não ser preciso milhões de cópias de um artigo científico as publicações científicas podem ser suportadas pelo estado, que é quem compra as assinaturas para as universidades e bibliotecas. Foi o custo de distribuição que obrigou a proteger o comércio privado concedendo direitos exclusivos de cópia. Até agora.

Uma biblioteca não precisa de um edifício nem de bibliotecários. A Wikipedia, o Pirate Bay e o defunto BTuga são exemplos da capacidade de organização espontânea dos utilizadores. Também não precisa de carimbar livros, arrumar ou sequer ter espaço de armazém. A rede garante que o material não se perde. E com o conteúdo digital é mais barato deixar distribuir que impedir a distribuição.

É absurdo gastar recursos a impedir a distribuição gratuita. Podemos incentivar a criatividade sem proibições, como já se faz noutras áreas. O estado não faz milionários de matemáticos, filósofos ou cientistas, mas também não é preciso ser milionário para ser criativo. E nada impede que o mercado torne milionários quem cria ciência ou arte. Nem é preciso alterar a venda de livros, CDs e bilhetes de cinema, onde o sistema de direitos exclusivos funciona. Funciona mal, mas é melhor que pôr o estado a gerir o enorme investimento na distribuição. Mas o conteúdo digital é diferente.

Economicamente, faz sentido considerar a rede digital uma biblioteca de acesso livre. A proibição é dispendiosa, tanto pelo custo directo de fiscalizar e punir como pelo enorme custo de oportunidade, e a informação na rede é partilhada e organizada espontaneamente, a custo zero. Mesmo não considerando que é imoral restringir o acesso à cultura em função do poder de compra e que os zeros e uns já eram de todos antes de inventarem os computadores, só pela economia da distribuição digital devemos substituir o copyright por direitos comerciais. E, se for necessário, pode-se financiar directamente os artistas. É muito mais barato convencer artistas a criar arte do que impedir todos os outros de a partilhar.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Como Tudo Começou. 1- Ciência e Criacionismo.

O Jónatas Machado ofereceu-me o livro «Como Tudo Começou», de Adauto Lourenço. Como comenta Jónatas Machado na contracapa, este livro «dá um contributo decisivo [...] para uma melhor compreensão» do criacionismo. Irei analisar esse contributo numa série de posts, e começo por agradecer ao Jónatas Machado esta gentil oferta.

O primeiro capítulo, «A Origem das Teorias», mostra como os criacionistas representam mal a ciência. Na secção «Testando Teorias com Leis», o autor afirma:

«Um conceito científico não é uma lei. Uma teoria também não é uma lei, nem pode ser considerada lei ou mesmo fato científico, até que seja testada e comprovada.»

O máximo que a ciência produz são teorias, por duas boas razões. Primeiro porque nenhuma explicação pode ser comprovado de forma definitiva, nem na ciência nem fora dela. E em segundo lugar porque uma teoria científica não é uma «teoria» no sentido comum de especulação. É um explicação para um grande corpo de observações, coerente com outras explicações fundamentadas e que resistiu a muitas tentativas de a refutar.

Antigamente predominava a ideia que Deus mandava, a natureza obedecia e a ciência descobria as Leis. Por isso muitas teorias antigas ficaram com o título pomposo de Lei. «A órbita dos planetas é elíptica e tem o Sol num dos focos» é uma das leis de Kepler. Hoje em dia seria uma mera hipótese, muito aquém do poder explicativo e da abrangência de uma teoria científica. Os criacionistas aproveitam esta idiossincrasia histórica para dizer que a teoria da evolução é «só uma teoria», que nem sequer é lei. Mas não há leis, nesse sentido. Só há descrições da realidade, e as teorias científicas são as melhores descrições que temos.

Continuando a confusão, o autor afirma que «[u]ma teoria nada mais é que uma hipótese ou conjectura», e dá dois exemplos de «teorias» para explicar a origem de um bolo de chocolate num quartel de bombeiros. Numa conversa de café poderiam chamar-se «teorias», mas neste contexto é ridículo. Uma teoria científica é a teoria da relatividade, que explica o movimento de todos os planetas, estrelas e galáxias que observamos. Ou a teoria da evolução, que explica a origem de todos os organismos que conhecemos. Explicar como apareceu ali um bolo de chocolate não está ao mesmo nível.

As duas «teorias» que o autor propõe são que a mãe de um dos bombeiros cozinhou o bolo ou que uma camioneta teve um acidente, os ingredientes se misturaram todos pela ordem certa e um incêndio cozinhou o bolo. No final do capítulo o autor diz que a primeira é análoga ao criacionismo e a segunda análoga à teoria da evolução. Só se os criacionistas propusessem um universo cozinhado pela mãe de um bombeiro e se os biólogos defendessem que a evolução era mero acaso.

A hipótese da mãe do bombeiro é uma explicação razoável porque temos confirmação independente do processo culinário e de mães que cozinham bolos. Sem isto já não seria. Um duende, uma zebra ou magia não seriam uma boa explicação porque não há evidências de duendes nem de zebras cozinheiras e a magia nem explica o processo nem explica porque surgiu um bolo em vez de um coelho, uma cartola ou outra coisa qualquer. O criacionismo sofre de todos estes problemas ao propor que um Duende invisível cozinhou o universo por magia.

E a teoria da evolução diz que as espécies surgiram por processos naturais que descreve em detalhe. Mutações, hereditariedade, pressão selectiva, deriva genética e outros. Tal como o bolo. São processos naturais que transformam o líquido cru numa massa fofa de estrutura complexa e textura e sabor deliciosos. Não é magia nem acaso.

É por processos naturais, e não por acaso, que a pizza do jantar se torna em tecidos vivos, que uma célula se divide e transforma num homem adulto e que a vida surgiu e evoluiu na Terra. O mais irónico nesta falsa dicotomia entre acaso e milagre é os criacionistas não perceberem que vai dar ao mesmo. Dizer que a vida surgiu por milagre explica tanto como que dizer que surgiu por acaso. A teoria científica que descreve em detalhe os processos naturais é uma alternativa muito superior a estas duas.

Palestra do Larry Lessig.

Excelente recomendação do leitor NCD, para quem se interesse pelo problema do copyright, esta palestra de Larry Lessig disponível na TED Talks: «How creativity is being strangled by the law.»

Página para ver online.
Link para descarregar o video (~70Mb).

domingo, novembro 11, 2007

A treta do copyright: a tragédia dos comuns e os free riders.

Um pasto comum alimenta animais que são propriedade de cada aldeão. O custo de ter mais um animal é dividido por todos, pois cada animal consome parte do pasto comunitário. Em contraste, todo o benefício de cada animal vai para o proprietário. Por isso cada aldeão vai querer mais animais mesmo sobrecarregando o pasto em prejuízo de todos. É um exemplo clássico do problema de partilhar um recurso finito. Seja a pescar, consumir água ou poluir, há situações em que não compensa refrear voluntariamente o consumo porque outros vão esgotar o recurso seja como for. Nestes casos é melhor repartir o recurso, seja por quotas, licenciamento ou direitos de propriedade.

Um argumento a favor do copyright é que a partilha cria uma situação análoga em que o consumo descontrolado destrói o sistema. Mas a informação é um recurso infinito que pode ser partilhado sem prejuízo para ninguém. O recurso finito é a criatividade do autor, mas esta é controlada pelo autor e este pode negociar a criação da obra. Pode gravar o álbum só quando tiver se tiver encomendas que chegue, sem depender do copyright.

Se houver encomendas suficientes o autor cria a obra, os intervenientes beneficiam e outros podem beneficiar sem prejuízo para as partes envolvidas. Copiar a música não a destrói. Se não houver compradores interessados o autor não cria a obra simplesmente por falta de interesse. Falta de interesse do autor em criar a obra sem remuneração, e falta de interesse do público em remunerar o autor. Nenhum destes resultados é injusto ou análogo à tragédia dos comuns.

A terceira possibilidade é o público estar interessado em pagar o esforço do artista mas cada um ficar à espera que sejam os outros a pagar. Este é o problema dos free riders, que tentam ir «à boleia» dos outros mesmo estando interessados. Se o serviço de bombeiros fosse pago voluntariamente muitos não pagariam, mesmo achando o preço aceitável, por contar com a protecção conferida pelo contributo dos outros. É uma razão para serviços como bombeiros, hospitais, polícia e escolas serem suportados por uma contribuição compulsória.

É um erro identificar o usufruto gratuito com a causa destes problemas só por ser um factor comum a ambos. O usufruto gratuito o que outros criaram é uma parte importante da civilização. O capitalismo é bom para algumas coisas mas usufruímos gratuitamente dos direitos humanos, da justiça e ética, da democracia, da ciência e tecnologia, da língua, da cultura e até da religião. O sucesso de uma sociedade não se mede pelo conforto dos ricos. Mede-se pelo que se pode usufruir sem pagar.

Estes dois problemas são fundamentalmente diferentes. A tragédia dos comuns é consequência inevitável da partilha de um recurso finito. Nenhum pescador vai reduzir voluntariamente a pescaria mesmo sabendo que a pesca intensiva destrói as reservas de peixe, pois se não for ele a pescá-los será outro qualquer. O problema é privar todos do recurso e só se resolve limitando o acesso ao recurso. Em contraste, o free rider age por falta de informação. Se sabe que não há bombeiros sem o seu contributo prefere pagar do que arriscar um incêndio descontrolado. O problema é que a falta de informação torna o mercado menos eficiente a fornecer um produto mesmo havendo muitos dispostos a comprá-lo.

O copyright não protege um recurso comunitário finito. A música não se gasta por se ouvir e a criatividade é privada, um bem controlado pelo autor. E não resolve a ineficiência do mercado. Compele o pagamento mas o problema da informação mantém-se. A oferta é controlada por pela publicidade, que vende uma obra a milhões de pessoas e relega outras à obscuridade. O monopólio concedido pelo copyright torna o mercado ainda menos capaz de dar ao comprador a informação necessária para que este invista no produto que prefere.

E o bem público da arte não é este filme ou aquele álbum. É a arte em geral, o que justifica incentivar a produção artística pelo financiamento público das instituições que promovam estas actividade em vez da conceder monopólios sobre obras específicas. Mas a proposta em concreto fica para o próximo post sobre o assunto.

sexta-feira, novembro 09, 2007

E então os que não sabem tocar?

O António já apontou várias vezes que o copyright é essencial para aqueles músicos que não sabem tocar instrumentos. Felizmente, agora já não á preciso. Basta terem software de edição de vídeo e até ficam com um teledisco à maneira.



Obrigado à Jo do My Bla Bla Bla

Treta da Semana: Espaçonumerática.

Esta semana quero homenagear o trabalho de investigação de Lucília Barata, fundadora do Centro Holístico Internacional, criadora da «Espaçonumerática – uma linguagem científica e simbólica», e que, «guiada pela intuição e impelida por uma fé inquebrantável, depois de um percurso extraordinariamente labiríntico, alcançou por fim a simplicidade que procurava.» Obrigado ao comentador anónimo que me indicou esta maravilha.

Lucília Barata explica que chama «espaçonumerática» à Geometria Sagrada porque se aplica a todo o Cosmos e porque «do muito que li sobre a Geometria Sagrada, jamais encontrei um trabalho sistematizado que a elevasse à categoria de ciência propriamente dita, com as suas próprias leis e axiomas.»(2) Fica aqui a dica para outros visionários cuja tretomática esteja aquém de uma ciência (propriamente dita). Inventem as vossas próprias leis e axiomas, que é do mais científico que pode haver.

A obra de Lucilia é vasta e... bem... é vasta. Não posso, nem quero, cobrir todo o seu contributo para a simbologia sagrada do matemático-científico cosmológico. Mas chamo a atenção para o capítulo intitulado «O Despertar da Humanidade» (3), que relata com ilustrações um hilariante bailado geométrico de Adão e Eva. Terão sido criados os dois esticados, de pés juntos e braços afastados como no desenho de Da Vinci. Ergueram-se nesta posição, o que não é fácil, e começaram a desenhar círculos, quadrados, flores e peixes, tudo com profundo simbolismo. Provavelmente foi por este estranho comportamento que Deus correu com eles do Paraíso. Sempre me pareceu que aquilo da maçã era desculpa.

Outra contribuição importante é a demonstração do último teorema de Fermat, que diz que a equação zn=xn + yn não tem soluções inteiras não nulas para n superior a 2. Lucília Barata apresenta uma demonstração espaçonumerática para n=3, e deixa aos matemáticos «a tarefa de desenvolver e sistematizar os princípios aqui expostos» para os valores que sobram.

Mas o último teorema de Fermat é apenas difícil de demonstrar. O que demorou aos matemáticos 357 anos a provar não é sequer um desafio para Lucília Barata. Difícil foi resolver o problema da quadratura do círculo, que desde 1882 está provado ser impossível. O problema é desenhar, a partir de um círculo, um quadrado com a mesma área. Como π é um numero transcendente, não é raiz de qualquer polinómio de coeficientes racionais, é impossível resolver o problema geometricamente num número finito de passos. A solução de Lucília Barata revela bem do seu domínio do espaço e do número: «... se substituirmos o valor de π por 3,14 ...»(4). Genial.

Aguardo assim com antecipação mais resultados do Centro Holístico Internacional, no sentido de «reunir e interligar diferentes áreas do Conhecimento através da EspaçoNumerática (ciência do Espaço e do Número), também conhecida por Geometria Sagrada», e também conhecida aqui entre nós por... nah, é fácil demais.

1- Centro Holístico Internacional, retirado deste livro. Ver também www.chi.com.pt/.
2- Lucilia Barata, Espaçonumerática, pag 50. Disponível aqui.
3- Ibid., páginas 25 a 45.
5- Ibid, pg. 149.

quinta-feira, novembro 08, 2007

A treta do copyright: direitos e deveres.

Direito e dever são dois lados da mesma relação. Os meus direitos são deveres que outros têm para comigo. Os meus deveres são direitos que outros podem exigir que eu respeite. Os nossos direitos acabam onde começam os nossos deveres*.

Temos o direito de dizer o que queremos, de ensinar, de partilhar informação e experiências. Mas o dever de não enganar os outros restringe o direito de mentir. O dever de não prejudicar os outros restringe o direito de ameaçar, insultar, ou gritar que há uma bomba e lançar o pânico. O limite dos direitos são sempre deveres. É assim que quero considerar a moralidade de copiar uma música sem autorização.

Muitos dizem que partilhar ficheiros é imoral porque não temos o direito de copiar algo que outro criou. Mas só um dever justifica limitar um direito. Se o ficheiro contém informação privada, como um diário ou fotografias comprometedoras, o dever de respeitar a privacidade alheia limita o direito de partilhar essa informação. Mas se contém uma abertura de Xadrez que lemos num livro não há qualquer dever que restrinja o direito de a partilhar.

Segundo alguns a música é diferente, e que o músico tem o direito de controlar a distribuição da sua obra. Se o músico só deixa ouvir quem paga não podemos partilhar esta informação sem recompensar o músico. Mas podemos. Não é imoral comprar CDs em segunda mão, emprestar e pedir emprestados ou tocá-los com convidados em casa. Como ninguém tem o dever de respeitar esta restrição do músico, o músico não tem o direito de restringir a distribuição desta forma.

A isto dirão que é a cópia que é diferente. Emprestar um CD está bem, mas dar uma cópia do CD viola um direito do autor. Não é bem a cópia, porque podemos copiar um CD que comprámos para o caso de se riscar ou para ouvir em casa e no carro sem andar com a caixa sempre atrás. O que é diferente é que dar uma cópia priva o autor de uma venda à qual ele tem direito.

Mas há muitas formas aceitáveis de privar o autor de uma venda. Emprestar o CD, dizer a um amigo que o álbum não presta, dizer-lhe para comprar antes uma camisola que lhe emprestamos o CD sempre que ele quiser, ou vender-lhe o nosso em segunda mão, mais barato. Nada disto viola um direito do autor. O direito à venda é absurdo porque ninguém tem o dever de comprar, nem de encorajar a compra, nem sequer o dever de evitar desencorajar a compra. Moralmente, se ele vende ou não é com ele e com quem lhe quiser comprar. E não há razão para que um músico tenha mais direitos morais que um matemático.

Há sim, dizem alguns. É que o músico ganha dinheiro com o copyright e o matemático não. E com isto chegamos ao maior absurdo. O fundamento moral do copyright é o copyright. Sem copyright não há razão para haver copyright.

Qualquer direito moral que o autor tenha sobre nós começa só nos deveres que temos para com ele. Pensem nos direitos de autor como os deveres do consumidor. Temos o dever de reconhecer a autoria da obra, de não plagiar e de respeitar a privacidade do autor se este não quiser divulgar as suas criações. Mas se o autor divulga a sua obra não temos qualquer dever de respeitar os seus desejos quanto à cópia, nem quanto às vendas, nem acerca de quem usufrui da obra. Estes não são direitos morais do autor.

*Há versões diferentes da ética, baseadas na virtude ou em deveres categóricos que podem não corresponder a direitos de ninguém. Mas quem achar que Aristóteles e Kant têm algo a contribuir para o debate do copyright que se explique.

quarta-feira, novembro 07, 2007

Os porcos ganharam asas.

A quem interessar a conversa do copyright deve interessar também o artigo que Rob Sheridan escreveu a propósito do encerramento do OiNK, um site que organizava a partilha de ficheiros mp3. Resumindo em poucos parágrafos, Sheridan aponta a ineficiência desta indústria de distribuição que dá aos músicos uma parte do lucro depois de retiradas as despesas, o que aumenta o custo aparente do produto.

Além disso a industria depende do controlo apertado da distribuição. As redes de partilha de ficheiros não atraem apenas por serem gratuitas mas pela eficácia com que disponibilizam e organizam o conteúdo. Se as lojas dessem CDs e as redes de partilha fossem pagas ainda assim a partilha de ficheiros estaria em vantagem.

Finalmente, esta indústria reagiu a uma forma gratuita de distribuição como a uma ameaça em vez de encontrar uma oportunidade comercial. O oposto do que fez a imprensa escrita. Hoje em dia não há jornais de grande tiragem que não disponibilizem conteúdo online. O acesso gratuito às notícias não acabou com a imprensa porque soube adaptar-se.

O artigo está aqui:
When Pigs Fly: The Death of Oink, the Birth of Dissent, and a Brief History of Record Industry Suicide.

E o Miguel Caetano traduziu o artigo para Português no Remixtures:
OiNK, Quando os Porcos Voam: Parte 1,Parte 2.

Para o natal.

Não sabem o que oferecer aos avós? Querem iniciá-los na era digital mas eles não gostam de modernices?

Que tal isto para ao natal?

terça-feira, novembro 06, 2007

Humor e devoção.

Têm surgido comentários assinados por vários «Metralha». Julgo serem todos Parente parentes. O «Gonçalinho Metralha» comentou assim o meu post sobre o humor dos devotos (1):

«O problema com o humor religioso e anti-religioso é muito simples de explicar.
Um ateu não entende que para um crente "Alguém" deve merecer um enorme e profundo respeito. Se assim não fosse, o crente não seria crente. [...]
Mas como pode um crente fazer humor com um ateu se ele não tem quaisquer referências com que se possa gozar? Só gozando com o próprio ateu»


A questão não são as piadas acerca da religião. É a capacidade humorística de quem leva a religião a sério. Pode fazer piadas acerca da política, do futebol ou de legumes. Pode gozar com outras religiões. Há milhares. Se algum deus se ofende por um Cristão gozar com Shiva não será o deus do Cristão, e os outros para o Cristão não contam. Além disso, podemos sempre fazer piadas acerca de nós próprios. Eis um exemplo (2):



Mas talvez o maior problema seja ver o humor como uma falta de respeito. Pôr a mão à frente do nariz e dizer «nha nha nhanha nha» é falta de respeito. Mas isso não é humor. Uma piada com graça faz nos ver as coisas de uma forma diferente. Concordemos ou não com a perspectiva sempre dá que pensar, e pensar criticamente acerca de algo é mais respeitoso que ficar-se pela crença.

1- Correlação ou causalidade?
2- Via 31 da Armada

Correlação ou causalidade?

Não conheço humoristas religiosos. George Carlin, Monty Python, Ricky Gervais, Trey Parker e Matt Stone, Jon Stewart. Não sei se é por ser ateu, mas não me ocorre ninguém que tenha um sentido de humor excepcional e também seja crente.

Talvez seja por o crente levar a sério o que dá vontade de rir, ou por suprimir a capacidade de ver as coisa de outro lado, aquela mudança súbita de perspectiva de que o humor depende, ou até por medo de ofender Alguém.

Ou se calhar engano-me. Talvez seja uma correlação acidental ou uma amostra enviesada. Quem sabe há por aí bispos e imãs que fazem de cada sermão um show de gargalhadas. Talvez um destes sábados me toque à porta um par de velhotas bem dispostas a mostrar com graça como é boa a sua religião em vez da ladainha deprimente do costume. Mas no Diário de Notícias desta semana o João César das Neves contribui mais uma observação a favor da minha hipótese.

Vê-se que se esforçou. Leu atentamente as definições de «sátira», «ironia» e «humor», compôs o texto com o entusiasmo de um pintor daltónico e contou a longa anedota quase até ao fim.

Leiam. É de vir lágrimas aos olhos.

5-11-07, João César das Neves, Por um mundo mais livre e mais justo

domingo, novembro 04, 2007

A treta do copyright: porque é fácil copiar.

A facilidade com que se copia músicas preocupa as editoras. Até dizem que copiar mata a música. Há quase trinta anos que o dizem. O famoso slogan «Home taping is killing music (and it’s illegal)» data de 1980 (1). E também dizem que o copyright é necessário porque copiar é demasiado fácil. Mas o copyright surgiu quando copiar era difícil. E surgiu precisamente para que se tornasse mais fácil copiar (2).

Copiar é a especialidade do ser humano. Dos machados de pedra à mini-saia, da agricultura ao bolo rei, foi a copiar que criamos uma civilização tecnológica. Até lhe chamamos «aprender» para mostrar como copiar é importante. E sempre que alguém se opôs à cópia fácil foi para defender os seus interesses em detrimento dos interesses dos outros. Para suprimir crenças contrárias, para manter o poder, deturpar a história, manipular o povo. Agora é para ganhar dinheiro.

O copyright foi se desenvolvendo com a imprensa. Tomou várias formas em vários países, mas sempre para dar ao editor o direito exclusivo de imprimir um livro. Em 1886 a convenção de Berna deu-lhe a forma moderna de um direito legal internacional, que é inicialmente conferido ao autor mas que, na prática, é uma garantia de exclusividade para o editor. Foi necessário porque copiar livros era um processo moroso que exigia especialistas e equipamento dispendioso. Era um investimento considerável, e quem se metia nisso queria garantias que não lhe iam estragar o negócio.

Nessa altura havia muitas coisas fáceis de copiar. Sempre houve. Canções, poemas, histórias contadas, descobertas científicas, receitas, tradições, rituais, línguas. Mas ninguém se lembrou de dar direitos exclusivos de copiar essas coisas precisamente porque eram fáceis de copiar. O direito exclusivo de cópia foi inventado para incentivar a cópia do que era difícil de copiar.

Hoje é fácil. Não precisamos de serviços de cópia de dados e é absurdo que os intermediários fiquem com 90% do dinheiro por fazer Ctrl+C, Ctrl+V. E a cópia fácil sempre foi uma coisa boa. A velocidade do progresso nas artes, na ciência e em toda a criatividade humana foi sempre proporcional à facilidade com que a informação era partilhada. O maior motor da criatividade é a liberdade de expressão. O copyright servia só para incentivar a cópia, quando era preciso.

A cópia fácil é uma chatice para o negócio da cópia. É o que o pronto a vestir fez aos alfaiates, e se os alfaiates tivessem um lobby forte ainda tínhamos que esperar um mês por cada par de calças, sob pena da ASAE nos tirar a roupa. Mas uma tecnologia que permite ao artista difundir a sua obra por milhões de pessoas instantaneamente e sem intermediários não vai matar a música. Basta pagar ao artista para criar a sua arte em vez de pagar ao editor por ter copiado rodelas de plástico.

1- Wikipedia, Home Taping is Killing Music

2- Wikipedia, History of Copyright Law

Cheque-ensino.

A ideia é boa, em geral. Os impostos já são cobrados em função dos rendimentos por isso pode-se repartir os subsídios equitativamente. Torna o processo mais transparente, e mais eficiente por eliminar metade da burocracia. Mas os mais ricos pagam à parte o ensino privado dos filhos. Passar a subsidiar todos por igual altera a distribuição dos encargos. Para implementar o cheque-ensino sem reduzir a ajuda aos mais pobres é preciso aumentar os impostos dos ricos.

Não encontrei ainda defensores do cheque-ensino que proponham este aumento ou que justifiquem porque se há de reduzir a contribuição dos mais ricos para o ensino dos mais pobres. Mas este nem é o problema mais importante. No Blasfémias, o João Miranda escreveu:

«O cheque ensino é em primeiro lugar uma solução para o ensino público. Serve para levar mecanismos de mercado ao ensino público. Serve para forçar as escolas públicas a funcionar de acordo com as preferências dos clientes em vez de funcionarem de acordo com as preferências dos burocratas e dos professores. Serve para tornar a gestão das escolas públicas mais eficiente.» (1)

E é esse o problema. Imaginem o cheque-saúde. Cada pessoa teria um cheque anual para as suas despesas de saúde, forçando os hospitais a funcionar de acordo com as preferências dos clientes e a tornar a sua gestão mais eficiente. Que grande treta. Os recursos médicos devem ser distribuídos em função das necessidades e não equitativamente. Os mecanismos de mercado seguem as preferências dos clientes mas dão mais peso aos clientes que pagam mais. E a eficiência não é naquilo que queremos.

O mercado favorece os tratamentos mais rentáveis e a gestão do serviço em função do retorno pelo investimento. A menos que o paciente seja rico, ganha-se eficiência deixando morrer quem tem doenças prolongadas e dispendiosas de tratar. O mais «eficiente» são tratamentos curtos a pessoas saudáveis, que têm menos riscos de complicações e de demora na recuperação. O cheque-saúde ia promover a cirurgia plástica eficiente e acabar com a saúde preventiva e os tratamentos das doenças dos pobres.

O cheque-ensino tem os mesmos problemas. Queremos escolas onde são mais necessárias e não onde dão mais lucro. Queremos um sistema de ensino para servir as necessidades dos filhos de forma equitativa. Não para servir as preferências dos pais em função do dinheiro que têm. E a eficiência do ensino está no que ajuda os que mais precisam e não no retorno médio pelo investimento.

É mais rentável educar crianças que têm um ambiente estável em casa, pais que as podem ajudar e que participam na sua educação. Mas quem precisa mais do sistema de ensino são os outros. Aqueles que, pelos mecanismos de mercado, seria ineficiente ensinar.

1- João Miranda, 2-11-07, Cheque ensino e Ensino Público II

sexta-feira, novembro 02, 2007

A treta do copyright: o dever de remunerar.

O argumento mais usado para defender o copyright é o dever de remunerar o artista pelo seu trabalho. Não serve.

Assume que a remuneração implica conceder direitos exclusivos mas quase todas as profissões são remuneradas de outras formas. Para justificar a necessidade do copyright tentam encontrar aspectos únicos da música, literatura e cinema que não sejam comuns a mais nada na criatividade humana. Sem sucesso. A música pode ser gravada uma vez e ouvida muitas, mas também as teorias científicas, fórmulas matemáticas ou jogadas de Xadrez. Inventa-se uma vez e depois copia-se para onde for preciso que estas coisas não se gastam. Gravar um disco ou realizar um filme exige esforço e investimento, mas é o mesmo para organizar uma colecção de moda, operar um casino, construir estádios de futebol ou pôr telescópios em órbita.

Gosto especialmente de duas. Uma defende que tem que ser pelo copyright porque queremos que a obra seja divulgada. Ou seja, temos que restringir o acesso porque queremos que todos tenham acesso. Se queremos um jardim público pagamos a alguém que plante e depois fica para todos. Compensar o investimento concedendo direitos exclusivos é contrário ao propósito de ter acesso livre. A outra é que são coisas de importância menor. Eu tenho o direito de proibir-vos de escrever um texto igual a este porque isto não diz nada de importante. É uma justificação fraca para o direito à censura.

E é falso que o copyright compense o artista sem custos para o contribuinte. Quando o ministério público encerra o BTuga ao fim de meses de investigação e começa um processo judicial não é a SPA ou a FEVIP que pagam. Somos nós. Pagamos para andarem a ver que ficheiros passamos uns aos outros.

Outro problema é não ser claro quem deve pagar. Devia ser. O responsável pela remuneração é quem encomenda o trabalho. Mas neste caso responsabiliza-se todos por um trabalho que ninguém encomendou. Esta lei proíbe-vos de escrever um texto igual a este sem a minha autorização. Assume que todos têm a obrigação de sacrificar algo para me remunerar. É importante salientar este ponto. O copyright proíbe várias coisas a muita gente que não tem qualquer dever para com o criador da obra protegida.

Finalmente, não temos o dever de remunerar o que alguém faz porque lhe apeteceu. Ninguém tem o dever de me pagar por escrever isto. Fi-lo porque quis, sem que me pedissem nem prometessem coisa nenhuma. É do interesse da sociedade incentivar a criação e divulgação de ideias, mas há muitas formas de o fazer. Defender a liberdade de expressão e de partilha de ideias, promover o ensino, criar instituições públicas que apoiem a criação de arte, ciência e cultura.

Regular o comércio também é do interesse de todos. Salas de cinema, editores de livros e discos, espectáculos, televisão e publicidade. Um sistema equilibrado de protecção de investimentos e partilha de lucros estimula o mercado. Mas nem interesse nem obrigação justifica fazer das ideias propriedade privada legislando restrições à liberdade de expressão. E em vez de pagar a policias e tribunais para que fiscalizem e punam estas infracções mais valia investir em escolas de arte ou dar o dinheiro aos artistas.

quinta-feira, novembro 01, 2007

A cor da inteligência (ou a inteligência da cor).

Discutir se a inteligência é genética ou social é como discutir se a música vem da guitarra ou do guitarrista. Tudo num organismo resulta da interacção dos genes com o ambiente. Nem um embrião vai longe sem o ambiente certo nem as melhores universidades darão inteligência a uma amiba.

Faz mais sentido perguntar se mudar de guitarrista tem mais efeito que mudar de guitarra. Mas mesmo isto depende da guitarra e do guitarrista. Se a guitarra não tem cordas a diferença entre guitarristas é nula. Se nenhum sabe tocar não há guitarra que os safe. Até pode ser preferível a guitarra sem cordas. Com os genes é o mesmo.

Uma em cada quinze mil pessoas nasce com uma variante inactiva da hidroxilase de fenilalanina. Com uma dieta rica em tirosina e pobre em fenilalanina o efeito é mínimo. Caso contrário, a acumulação de fenilalanina e derivados interfere com o desenvolvimento do cérebro e resulta em deficiência mental profundo e outros problemas neurológicos.

A pele clara previne a deficiência de vitamina D em climas frios com pouco sol mas aumenta a incidência de cancro nos outros. A anemia falciforme protege da malária apenas onde há malária. Noutro ambiente passa-se melhor sem ela. A hemofilia é um inconveniente para quem tem acesso a medicação mas é mortífera para os outros. O efeito dos genes depende sempre do ambiente.

Imaginem que numa população de borboletas há borboletas brancas e negras, e as brancas são mais visíveis aos pássaros. Neste ambiente o gene da variante negra é um gene para evitar os pássaros, com o efeito de tornar a borboleta mais difícil de comer.

Agora imaginem uma população de humanos em que há brancos e negros e a sociedade nega aos negros o acesso à educação e aos melhores empregos. Neste ambiente os genes para pele escura reduzem a educação, o nível de vida e a inteligência. Tal como nas borboletas. O que não quer dizer que tenha sempre este efeito. Se as árvores ficam mais e claras as borboletas brancas passam a ser menos visíveis, ou se uma revolução inverte a discriminação social, as variantes destes genes passam a ter o efeito contrário. Mas em cada caso a diferença é genética.

Qualquer teste à inteligência na África do Sul durante o apartheid revelaria uma diferença genética entre brancos e negros. Não é erro. Nesse ambiente a diferença era mesmo genética. Mas, e agora todos em coro, o efeito dos genes depende do ambiente.

O que sabemos acerca da relação entre a cor da pele e inteligência é que em alguns ambientes a diferença é grande, noutros é pequena e tem vindo a diminuir, e se restringirmos as amostras a certos grupos sociais ou económicos não há diferença detectável. Por outro lado, as variações no ambiente têm um grande impacto, tanto nos indivíduos de pele clara como nos de pele escura.

Resumindo, não podemos dizer que a inteligência é mais social que genética. Isso nem sequer faz sentido. Podemos dizer que as diferenças de inteligência entre populações se devem mais a diferenças sociais que aos genes para a cor da pele, mas só para algumas gamas de variação social. Há sociedades em que a cor da pele é um factor determinante. E podemos concluir que a reforma social é a melhor forma de eliminar estas diferenças.

Alguns julgam que é uma boa noticia. Livra-nos do terrível determinismo biológico porque é só um problema social, não está nos genes. Mas disto discordo. É mais fácil dar insulina aos diabéticos que acabar com o racismo.