Treta da Semana: A Sistemática do Milagre.
Como esta semana não pude pensar nesta rubrica estou especialmente grato ao comentador anónimo que sugeriu o tema mesmo a tempo. No Blasfémias, o Gabriel enumerou os quatro passos da determinação do milagre:
«Em primeiro lugar a averiguação da veracidade do facto, em seguida a investigação cientifica, só depois o enquadramento teológico e finalmente do seu significado.» (1)
O Gabriel também sugeriu a «explanação mais aprofundada» do teólogo Manoel Santos (2). Pretendo tecer aqui um comentário humilde, na boa tradição da humildade cristã, à «doutrina sistemática sobre o milagre», considerando alguns casos particulares. Começo pelo primeiro, a concepção imaculada de Maria. Um bebé diferente dos outros, Maria nasceu sem pecado. Não por algo que os pais tenham feito, mas simplesmente porque sim.
Segundo Manoel Santos, um milagre tem que ser «histórico, autêntico, real. Sabe-se quanto a imaginação é fértil em criar casos maravilhosos ou, ao menos, em aumentar as dimensões estranhas de determinado [facto].» Mas não há meio de averiguar que aquele bebé estava menos maculado que os outros. E o milagre seguinte é pouco melhor. Jesus nasceu da virgem Maria, o que poderia ter sido averiguado mas, felizmente, os interesses do dogma coincidiram com o respeito pela senhora e não há indícios que a importunassem para este efeito.
O segundo requisito é que o facto milagroso seja «inexplicável pela ciência contemporânea ao mesmo». Mas sempre foi fácil explicar a gravidez de uma jovem que alega não ter tido relações sexuais. Tanto que a desculpa do Espirito Santo só pegou daquela vez. E a explicação científica para a gravidez é recente. Nessa altura não havia mais que superstição e especulação infundada acerca da origem dos bebés.
Estes critérios de averiguação e ausência de explicação científica são uma treta. Na prática são ignorados, quer para os milagres antigos quer para os modernos. Maria Emília Santos foi milagrosamente curada da paralisia por intercessão dos pastorinhos. Mas o seu internamento enquanto doente foi por problemas psiquiátricos, o que faz duvidar do «facto» e sugere uma explicação científica. A fábrica de santos da Igreja não quer saber disso (3).
E são um disparate. Da balança indicar 98Kg infiro que peso 98Kg, mas se a balança indicar 20Kg vou concluir que se avariou. Infiro o facto baseando-me na melhor explicação para o que observo. Se observo que o doente se curou devo inferir que a doença não era incurável. Se observo que a senhora está grávida devo inferir que teve relações sexuais. Só posso inferir algo diferente se for consequência de uma explicação melhor, nunca pela ausência de explicação. É por isso contraditório exigir a averiguação do facto inexplicável. É só fogo de vista.
Nos últimos dois passos assegura-se que o milagre é «realizado em autêntico contexto religioso: o milagre vem confirmar, da parte de Deus, uma atitude religiosa do homem». E, finalmente,
«Na quarta etapa, do significado, quer-se descobrir o motivo da realização ou permissão, por parte de Deus, do específico fenômeno. Além da Revelação e da Teologia, há que estar atento às circunstâncias e às repercussões pessoais, comunitárias ou até mundiais do fenômeno.»
Ou seja, o milagre confirma a doutrina religiosa e tem consequências benéficas para a Igreja. Nunca poderá indicar que Deus está descontente com os sacerdotes, que é a favor da distribuição de preservativos ou que não se importa que as mulheres sejam padres.
O milagre é politiquice porque só é milagre se interessa a quem o declara milagre. E é desonestidade intelectual porque nunca podemos dizer que algo é inexplicável. Só podemos admitir ignorância e dizer que não conseguimos explicar, mas a ignorância não fundamenta conclusões.
1- Gabriel, 17-11-07, Mirare
2- Manoel Santos, 2003, Para uma teologia do milagre
3- Expresso, 31-7-99, Milagre de pés de barro. Versão online disponível apenas no cache do Google.
Eh!Eh!Eh!
ResponderEliminarQue maldade. E logo depois do Gabriel Silva ter escrito um texto tão bonito ;)
ResponderEliminarpedro romano
«O segundo requisito é que o facto milagroso seja «inexplicável pela ciência contemporânea ao mesmo». Mas sempre foi fácil explicar a gravidez de uma jovem que alega não ter tido relações sexuais. Tanto que a desculpa do Espirito Santo só pegou daquela vez.»
ResponderEliminarNão foi só daquela vez, e acho que até existem outras lendas de virgens mães.
Na idade média, para os lados da actual Alemanha, alguns populares acreditavam na existência de uns seres demoníacos, que eram penis alados. Eventualmente algumas raparigas que já não eram virgens depois do casamento alegavam que esses seres demoníacos teriam utilizado os seus poderes, e que as pobres não tiveram alternativa. Eventualmente havia quem engolia com isso.
É tão fácil que muitas pessoas acreditem numa treta qualquer, que o mito da virgem Maria não é nada surpreendente.
Ainda assim, o Daniel Dennet defende que actualmente quase ninguem acredita na mitologia judaico-cristã. A maior parte daqueles que se dizem "crentes" acreditam que deviam acreditar. Para mim a posição dele é bastante razoável. Que te parece?
Sim, concordo. A diferença entre a fé e a certeza é que só a primeira é vista como um dever.
ResponderEliminarToda teologia é tentar justificar a crença no inacreditável, porque não se pode mudar de crença.
Belo post. Arrasou.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarJoão Vasco,
ResponderEliminarEsta tua frase "Eventualmente havia quem engolia com isso." soa muito mal no contexto em causa. Desculpem lá a minha mente depravada.
E os alemães iam na história, certo? Devem ser eles os tais unicórnios!
E nota-se logo que os ingleses sempre tiveram uma mente muito mais científica. Como aquela senhora no início do século XIX que encontrou uma explicação muito óbvia quando lhe nasceu uma criança negra: tinha bebido demasiado daquele produto muito em voga recém-chegado do Novo Mundo: o chocolate. A treta da imaculada concepção é mais para as mentes frágeis sulinas.
ResponderEliminarCristy
Eh!Eh!Eh!
ResponderEliminarCristy,
ResponderEliminarE o caso do marido dessa senhora também é famoso. Como a mãe dele não tinha leite para lhe dar, ele bebeu muito leite de vaca, por isso é que desenvolveu aqueles cornos quando cresceu.
É imbecil, denota falta de cultura e inteligencia, misturar a imaculada conceição com o tema dos milagres.
ResponderEliminarCam
Cam,
ResponderEliminarTalvez se explicasse porquê a sua afirmação faria mais sentido. Ou talvez não...
António
ResponderEliminarLol - já o José não precisava dessas explicações, dava-se por feliz com "milagres"
Cristy
Ó Cam, se eu misturar o Pai Natal com o Pato Donald também sou imbecil? Ou sou só criativo?
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