As perguntas do Henrique Raposo.
O Henrique Raposo escreve para um blog do Expresso. Não sei bem se é blog se é expresso, mas interessaram-me as perguntas «A Igreja tem o monopólio da pedofilia?» e «por que razão só se fala da pedofilia de alguns padres católicos?»(1).
A Igreja Católica não tem o monopólio dos maus tratos a crianças. Infelizmente, porque era bastante mais fácil proteger as crianças se os abusadores estivessem todos num sítio. E a Igreja Católica nem sequer terá a maioria dos violadores de menores. A concentração lá parece estar acima da média mas os maus tratos a menores são um drama muito maior que a Igreja Católica. Só que o problema mais saliente aqui não é ter havido alguns pedófilos. É ter havido muita gente a organizar-se para os encobrir. É nisso que a Igreja Católica sobressai bastante.
Os representantes católicos tentam disfarçar este problema focando apenas os pedófilos, ou hebófilos, salientando que a maioria da vítimas tem mais de 11 anos. O bispo Carlos Azevedo, por exemplo, diz que a vergonha está nos «falhanços de alguns membros do clero»(2). A expressão dá ideia que a intenção era boa mas que falharam o alvo, fraco consolo para as vítimas. Mas o mais grave não foi os “falhanços” de alguns. Foi o grande sucesso de todos os que esconderam os crimes e negaram justiça às vítimas durante décadas a fio.
Um exemplo de falhanço é a justificação do Vaticano para Ratzinger não ter agido no caso do padre Lawrence Murphy. Parece que já estava velho e doente quando o Vaticano tomou conhecimento dos abusos a crianças surdas (3). Coitadinho. Tenho pena, mas julgo que mesmo assim as vítimas mereciam um pedido público de desculpas. Não só da parte do padre mas também de todos aqueles que o deixaram lidar com crianças durante mais de duas décadas apesar das queixas das vítimas.
E esta é a minha resposta às perguntas do Henrique Raposo. Pessoas ruins há em todo o lado. As organizações religiosas dão ares dos seus sacerdotes serem exemplos de virtude, mas concordo que temos todos a responsabilidade de ver que isso é treta e de perceber que padres são homens como quaisquer outros. Por isso se as notícias fossem que um padre católico tinha ido preso por violar uma criança eu não culpava a organização. Culpava-o a ele e pronto.
Mas o que vejo são notícias de padres católicos que violaram crianças durante décadas, de outros que os foram transferindo quando havia queixas, da organização que ocultou da justiça, da sociedade e até dos familiares das vítimas estes crimes, e que se esforçou por descredibilizar os queixosos e coagir-lhes o silêncio. Isto não é um problema de pedofilia. Isto é uma organização com os valores todos trocados, que põe a manutenção das aparências à frente da consideração pelas crianças violadas e até da prevenção de mais crimes.
O que me traz à última pergunta do Henrique. «Quando um professor é acusado de pedofilia, alguém se lembra de colocar em causa a profissão de "professor"?» Depende.
Se um professor abusa das crianças e os colegas o denunciam assim que sabem e o impedem de fazer mais vítimas não será de os censurar. A culpa foi do violador e os outros fizeram o que podiam.
Mas se um professor abusa das crianças e os colegas abafam o caso, descredibilizam as vítimas, o transferem para uma escola onde não o conheçam, e onde possa fazer mais vítimas, e o deixam continuar assim durante décadas, então sim. Se isso acontecesse era de meter todos os cúmplices na cadeia com o pedófilo e contratar professores novos.
É isso que aqui em causa. Que os violadores merecem castigo ninguém disputa. O problema é o que fazer aos outros e à organização que os encobriu durante tanto tempo. Os representantes da Igreja dizem que a vergonha é dos “falhanços” e os Henriques Raposo dizem que isto é só um ataque à Igreja Católica, e só por causa de umas violações que os outros também fazem. Pois é mesmo por isso que temos de fazer barulho. Por não verem que o problema é a organização em si e coisas como a Concordata de 2004, que além de pôr essa organização a cargo de escolher alguns professores para o ensino público – onde mesmo quem não é católico paga dos seus impostos para eles ensinarem crianças – tem artigos como este:
«Artigo 5
Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério.»(4)
A Igreja Católica não tem o monopólio sobre a pedofilia. Mas tem muita coisa que não devia ter. E foi por causa dessas coisas, do seu poder, do aparato e dos privilégios legais, que em vez dos pedófilos serem presos assim que violassem alguém puderam fazer do abuso carreira até se reformarem, coitadinhos, velhos, doentes e certamente tão arrependidos que nem vale a pena mencionar as vítimas.
1- Henrique Raposo, A Igreja tem o monopólio da pedofilia?
2- Lusa/Fm, D. Carlos Azevedo fala em "vergonha" pelos "falhanços de membros do clero" nos casos de pedofilia
3- Lusa/FM, Vítima afirma que Papa estava informado de abusos
4- ARL, CONCORDATA ENTRE A SANTA SÉ E A REPÚBLICA PORTUGUESA – 2004