quarta-feira, março 17, 2010

O niilismo e caixas de cartão.

Há uns anos, tinham os meus filhos uns três ou quatro de idade, comprámos uma árvore de Natal grande que vinha desmontada numa caixa de cartão. Foi uma alegria. Por causa da caixa.

Tinha cerca de meio metro de largura e de altura e um metro e pouco de comprimento. Era uma caixa de cartão sem nada de especial. Não valia nada por si. Mas nos meses seguintes, até se desfazer toda, foi barco, casa, castelo, avião, esconderijo, hospital para os peluches e mais uma data de coisas. Teve muito mais rodagem que todos os brinquedos que receberam nesse Natal. Porque enquanto cada brinquedo era só o que o fabricante tinha decidido, a caixa era tudo o que eles quisessem.

Qualquer pai gosta de pensar que os seus filhos são excepcionais, e é a custo que admito que isto deve ter sido apenas por serem crianças e ainda terem a lata de dar às coisas o valor que eles querem. Daqui a uns anos, adolescentes, provavelmente vão julgar que o valor é um atributo objectivo que vem na marca ou no preço e que uma caixa de cartão não vale nada. Mas quando chegar essa altura cá estará o velho para lhes lembrar daquela caixa. E da placa de esferovite que comprámos no AKI. E das torneiras de plástico para mangueiras, os tubos de espuma isolante e uma data de tralha que era basicamente lixo mas da qual fizemos – fizeram – os brinquedos mais divertidos. E espero que lhes fique esta ideia. As coisas valem pelo valor que lhes dermos.

Mas nem todos concordam. Para muitos o valor ou está nas coisas ou não existe. Não pode estar em nós. A moral tem de ter valores nos seus objectos em vez de os ter nos seus sujeitos. O propósito da vida tem de já vir no pacote, fornecido pelo fabricante. E a vida tem de ser eterna senão não vale nada. E estes concluem, como o Miguel Panão, que o ateísmo «confronta-se com o niilismo para o qual não tem resposta.»(1)

“Niilismo” é um termo usado para acusar pessoas de muitas coisas, mas no sentido mais comum designa duas ideias diferentes. Uma é que não há um sentido para isto tudo. Para nós, para o universo, para a vida e a morte. As coisas são assim sem que ninguém as tenha criado desta forma para um propósito maior. A outra é que é suposto ficarmos terrivelmente deprimidos por isso e morrermos loucos e miseráveis. Felizmente, uma não implica a outra.

Calhou-nos uma caixa de cartão. Não se vê que esta existência traga consigo um grande e nobre propósito nem que sejamos apadrinhados pelo omnipotente criador do universo e arredores. E sabemos que esta caixa, que é só cartão, se vai desfazer. Estas coisas duram pouco, à escala cósmica, e depois acaba-se a brincadeira. Isto é o que vemos claramente. Nos que cá estão, nos que já não estão e em nós próprios.

Há duas maneiras de lidar com isto.

Uma é dizer que não pode ser, só uma miserável caixa de cartão. Tem de haver um Propósito para isto. Depois perguntamos aos padres como devemos brincar com a caixa para podermos merecer o maravilhoso brinquedo que nos prometem quando a caixa se estragar. Porque só assim vale a pena. Só pelo que vem depois. Vamos fazer o que nos dizem agora para quando este corpo morrer passarmos a eternidade a louvar o responsável pela anedota. E se não houver essa eternidade estamos perdidos. Não há nada. Nada vale a pena.

A alternativa é dizer porreiro, uma caixa de cartão. Vamos ver o que se faz com isto. E fazer o melhor que se pode com o pouco que se tem. Não é para sempre. Vai acabar por se estragar. Mas paciência. Até lá ainda dá para muitas coisas boas.

O que mais me espanta nisto é acharem que o niilista sou eu...

1- Comentários em O elefante

45 comentários:

  1. Ateologia da caixa de cartão. Como testemunho pessoal não está nada mal e é uma opção muito respeitável. Agora, como filosofia ou análise da realidade é muito fraquinho. Um enorme apelo à ignorância com laivos de auto-ajuda niilista.

    Concretamente, esta conclusão:

    "A alternativa é dizer porreiro, uma caixa de cartão. Vamos ver o que se faz com isto. E fazer o melhor que se pode com o pouco que se tem. Não é para sempre. Vai acabar por se estragar. Mas paciência. Até lá ainda dá para muitas coisas boas."

    é uma postura aparentemente inteligente como modo de vida no dia-a-dia. Arrisco-me a dizer que, acreditanto ou não em Deus, a maioria das pessoas acaba por adoptar esta postura.

    Agora, aprofundando a questão, para as áreas da filosofia,ciência, economia, política, direito, organização social, valores morais,etc, ela não nos diz nada.
    Se a levarmos mesmo a sério,como sociedade, caimos na animalidade e recusamos a nossa Razão que, vamos lá a ter noção das coisas, não se contenta em explicar o mundo e produzir cultura(nas áreas que referi acima) com esta noção de "faz-se o que se pode e aproveita-se as coisas boas". Nós sabemos, como humanos, o que é Errado, Certo, Bem e Mal. Temos um sentido de Justiça,mas às vezes até nos parece que o mundo não tem sentido ( o que indicia muita coisa, pois se esse sentido não existe, nunca daríamos pela sua falta).

    Este aparente epicurismo do Ludwig, aproveitar as coisas boas e tal,é de uma leveza incrível, sobretudo vinda de quem defende o ateísmo como opção filosófica verdadeira para problemas existenciais, que, sendo-se crente ou ateu, continuando-se humano, são inegáveis e não podem ser atiradas para debaixo do tapete.

    ResponderEliminar
  2. Jairo,

    «sobretudo vinda de quem defende o ateísmo como opção filosófica verdadeira para problemas existenciais»

    O ateísmo não é uma receita para resolver problemas existenciais. É, em parte, consequência de perceber que os problemas existenciais não se resolvem com pais nossos e avé marias.

    ResponderEliminar
  3. Mas resolvem-se, ou não se resolvem?

    É que optar por apreciar a vida, ter paciência e tal, parece-me muito fraco como sistema filosófico para desenvolver tudo aquilo que referi.

    ResponderEliminar
  4. o ateísmo «confronta-se com o niilismo para o qual não tem resposta... em resposta a algo semelhante lembrei-me de um artigo do PZ Myers no Pharyngula:

    "The central concept of modern atheism is the importance of evidence. We have seen the remarkable success of evidence-based reasoning, and have noticed that religion doesn't seem to use it… that the only negative concept here is the fundamental premise of religion, faith. Evidence and reason are not negative concepts, except perhaps in the minds of faith-heads who have replaced them with a vacuum and gullibility."
    ...

    ResponderEliminar
  5. Jairo,

    «Mas resolvem-se, ou não se resolvem?»

    Isso é com cada um. Não me parece razoável esperar uma solução igual para todos.

    E não sei se é coisa que se resolva de uma vez. Talvez existir seja ir resolvendo o problema da existência, que só se resolve quando se deixa de existir.

    ResponderEliminar
  6. Cara Rosario,

    a visão de PZ Myers é reducionista. Mesmo tendo como premissa a fé, não descarto qualquer evidência ou racionalidade. Questiono, sim, a interpretação ateísta dessas mesmas evidência e racionalidade relativamente à religião. Para mim Cristão e investigador, a evidência é importante, por isso não se trata de algo exclusivo ao ateísmo, nem que o caracteriza.

    Porém, o ateísmo levado a sério e ao extremo conduz ao niilismo, para o qual não tem resposta porque implica ausência de futuro, e nada é mais difícil ao ser humano de suportar do que isso. O que é o suicídio senão expressão (por vezes patológica) dessa ausência?

    ResponderEliminar
  7. Ludwig,

    O que mais me espanta nisto é acharem que o niilista sou eu...

    Talvez tenhas razão porque um niilista como Nietzsche preocupava-se com esses assuntos, mas tu não ...

    Vamos ver o que se faz com isto. E fazer o melhor que se pode com o pouco que se tem. Não é para sempre. Vai acabar por se estragar.

    O que é isto senão uma noção de vida que conduz ao nada? E de onde vem essa vida? Dizias num comentário

    preocupo-me tanto com a minha vida depois da morte como me preocupo com a vida que tive antes de nascer.

    Ou seja, não te preocupas nada. Tudo bem. Tranquilo. Do nada vieste e ao nada te diriges, por isso focas toda a tua atenção sobre o momento presente. Acho bem. Acho estranho, sim, é que vir de um nada e ir para um nada não te incomode. Incomodaram Sartre, Camus, mas a ti não te incomoda. ok ...

    só assim vale a pena. Só pelo que vem depois. Vamos fazer o que nos dizem agora para quando este corpo morrer passarmos a eternidade a louvar o responsável pela anedota.

    Para mim como Cristão esta é uma estranha atitude que me é atribuída. A vida não vale a pena apenas pelo que vem depois, mas por tudo o que acontece antes, agora e depois. O que vem depois implica, sim, a presença de um futuro promissor e inesperado, repleto de novidade. Uma percepção para a qual a própria ciência deu um valioso contributo.

    ResponderEliminar
  8. "Porém, o ateísmo levado a sério e ao extremo conduz ao niilismo, para o qual não tem resposta porque implica ausência de futuro, e nada é mais difícil ao ser humano de suportar do que isso. O que é o suicídio senão expressão (por vezes patológica) dessa ausência?"

    Hahahahahaha!...fartei-me de rir! (Esta a brincar, nao esta?...)

    ResponderEliminar
  9. "Para mim Cristão e investigador, a evidência é importante"... nao tao importante que o impeca de acreditar em ilusoes para as quais nao há qualquer tipo de evidencia... (a propria frase é um oximoro!...)

    ResponderEliminar
  10. Rosario Andrade,

    Quanto ao suicídio, não estou a brincar, nem sou capaz de me rir, embora me tenha interpretado mal se pensa que estou a insinuar que o ateu se leva o seu ateísmo a sério é levado ao suicídio.

    nao tao importante que o impeca de acreditar em ilusoes para as quais nao há qualquer tipo de evidencia... (a propria frase é um oximoro!...)

    Como se a ausência de evidência fosse evidência de ausência ... ou será também isto um oxímoro?

    ResponderEliminar
  11. Miguel Panão,

    Tanto quanto sei, a vida toda que vou ter é esta. Quando morrer, acabou. A questão importante não é se isso me incomoda ou não. Incomodar-me por não ser imortal é como incomodar-me por não ter visão raios-X ou não conseguir voar como o Super-Homem. Era bom, mas parece-me que andar a chorar por falta disso é pura perda de tempo.

    E isso do suicídio não faz sentido. Ora se só tenho esta vida, que raio tenho a ganhar em matar-me? Se estás a comer um bom jantar, deitas tudo fora só por o jantar não ser eterno?

    Agora se me convencesse que esta vida não é nada, um mero instante numa existência eterna. E se estivesse convencido que a próxima, depois de morrer, é que seria a sério, a melhor de todas, perfeita. Nesse caso sim, se levasse isso a sério suicidava-me logo.

    Se julgasse também que me iam castigar por me suicidar, então viveria a vida apenas à espera de morrer. Que grande seca. É como passar 80 anos na sala de espera do consultório...

    Sinceramente, nem vejo justificação para essas fantasias nem apelo nenhum nisso. Fantasia por fantasia, prefiro sonhar que sou capaz de voar e ver através das roupas das mulheres.

    ResponderEliminar
  12. Já agora, Miguel, o suicídio não é a ausência de um futuro distante. É rejeitar o valor do presente.

    Exactamente o que fazem os crentes que julgam que esta vida não é nada comparada com a próxima... A religião é um suicídio de valores.

    ResponderEliminar
  13. Caro Miguel Panão,

    «Porém, o ateísmo levado a sério e ao extremo conduz ao niilismo, para o qual não tem resposta porque implica ausência de futuro, e nada é mais difícil ao ser humano de suportar do que isso. O que é o suicídio senão expressão (por vezes patológica) dessa ausência?»

    Quando se diz que determinada ideia é a coisa mais difícil de suportar ao ser humano, isso não podia ser mais pessoal! Talvez seja para o Miguel, acredito que sim. Pessoalmente, a ideia de que a minha vida vai terminar permanente e irreversivelmente no instante da minha morte - curiosa redundância - não coloca nenhum obstáculo à minha felicidade.

    O mesmo argumento se poderia usar a favor da reencarnação. Negar a possibilidade de reencarnar noutra forma consoante o seu comportamento nesta vida assusta o Miguel de alguma forma? Creio que não... Mas não pensa que negar esta crença será algo aterrorizante para quem crê nela?

    A ideia ou anseio pela eternidade só nos atrai enquanto nos sentirmos repelidos pela sua negação. Depois de aceitar essa negação, ela deixa de nos parecer vazia ou nihilista...

    Dizer que o ateísmo é tão desamparador com o desespero que leva ao suicídio é um exagero tremendo!

    Poderia eu dizer, com ainda mais razão do meu lado, que a crença numa vida eterna sem sofrimento junto daqueles que amamos nos atrairía ao suicídio. Não digo porque não acho que uma especulação vaga pese, no raciocínio heurístico da maioria das pessoas, como convincente ao ponto de nos levar ao suicídio. Como também não creio que seja a prescrição de excomungação ou a ameaça de uma punição eterna um grande desmotivador para quem contemple a ideia do suicídio. É, certamente, o amor à nossa própria vida, o medo da dor, e o medo do fim absoluto (mesmo para os crentes) que nos impede nos suicidarmos.

    O ateísmo é tão desesperante como é o maior drama da Humanidade. Não é.

    ResponderEliminar
  14. Ludwig,

    Incomodar-me por não ser imortal é como incomodar-me por não ter visão raios-X ou não conseguir voar como o Super-Homem.

    visão raio-X e voar como Super-Homem são ideias para o agora, e não são comparáveis ao que vem depois, onde colocas "nada".

    Se estás a comer um bom jantar, deitas tudo fora só por o jantar não ser eterno?

    A imortalidade é tão importante como a mortalidade, pelo que a Vida eterna é tão importante com a vida agora. Separá-las é um erro e daí o "suicidava-me logo".

    o suicídio não é a ausência de um futuro distante. É rejeitar o valor do presente.

    Eu acho que ambos contribuem.

    Exactamente o que fazem os crentes que julgam que esta vida não é nada comparada com a próxima

    Sou crente, não me identifico com a tua frase. Logo, estás iludido.

    ResponderEliminar
  15. Caro Francisco Burnay,

    Dizer que o ateísmo é tão desamparador com o desespero que leva ao suicídio é um exagero tremendo!

    ... e seria uma tremenda má interpretação do que dsse.

    a crença numa vida eterna sem sofrimento junto daqueles que amamos nos atrairía ao suicídio.

    Se assim fosse, Deus não teria incarnado, pelo que tal raciocínio não tem sentido para um Cristão.

    O ateísmo é tão desesperante como é o maior drama da Humanidade. Não é.

    Não sei, mas é uma forma de crer, neste caso, na ausência do divino. Só quem tem fé nisso, acredita.

    Obrigado pelas palavras sóbrias e interessantes.

    ResponderEliminar
  16. Francisco,

    «A ideia ou anseio pela eternidade só nos atrai enquanto nos sentirmos repelidos pela sua negação. Depois de aceitar essa negação, ela deixa de nos parecer vazia ou nihilista...»

    É precisamente essa a origem do budismo, como resposta ao terrível fado do hinduismo que força a uma eternidade de reencarnações. O budismo pretende ensinar como se pode ir gradualmente (e ao fim de muitas vidas) desprendendo-se de toda esta ilusão até atingir o nirvana, o desaparecimento definitivo do eu.

    ResponderEliminar
  17. Miguel Panão,

    «Sou crente, não me identifico com a tua frase. Logo, estás iludido.»

    Relembro, mais uma vez, que não és o único crente. Por exemplo há pessoas que, por uma fé como a tua e fundamentada em argumentos como os teus, deixam morrer um filho de uma doença trivial de tratar porque insistem que é como deus quiser e a criança assim terá uma vida eterna melhor. Esse suicídio de valores pode não ser comum a todos os crentes religiosos, mas está fortemente correlacionado com quão a sério levam a sua religião.

    ResponderEliminar
  18. "Como se a ausência de evidência fosse evidência de ausência"
    CAro Panao, esse argumento é, do seu ponto de vista, muito perigoso. É que usando-o podemos entao da mesma maneira aceitar a existencia de Ala, ou Budha, ou Zeus, Atenas, Venus, etc, Thor e ca, Xenu ou o monstro do sparguetti voador, etc... o que significa que a sua crença é puramente circunstancial... noutro lugar e noutro tempo acreditaria numa outra ilusao qualquer.
    Alias o argumento é perigoso de qualquer angula que lhe pegue... eu posso entao afirmar que o meu vizinho é um terrorista e que a ausencia de prova nao o iliba... alias, nao era assim que a Inquisição funcionava?...
    Cptos

    ResponderEliminar
  19. Rosário,

    exactamente: aos olhos da icar são todos culpados (pecadores) até prova em contrário. Apenas uma das muitas inversões dos direitos básicos humanitários reconhecidos como valores universais e dos quais a icar nunca gostou particularmente.

    P.S. - O Miguel Panão nunca brinca

    ResponderEliminar
  20. Miguel Panão

    Porém, o ateísmo levado a sério e ao extremo conduz ao niilismo, para o qual não tem resposta porque implica ausência de futuro, e nada é mais difícil ao ser humano de suportar do que isso. O que é o suicídio senão expressão (por vezes patológica) dessa ausência?

    E? qual o problema ? Não entendo, se no exercício da minha liberdade eu achar que o futuro é uma trampa e que tenho uma alternativa como por exemplo um recurso a drogas de forma a acabar os meus dias melhor e sem aturar as agruras da vida, quem tem moralidade para me julgar ? Isso é que era bom.

    ResponderEliminar
  21. Ludwig,

    Lamento, mas se essa pessoa tem uma fé como a minha e a fundamenta em argumentos como os meus (como se tu conhecesses por inteiro que argumentos são esses...) não faria o que sugeres relativamente à doença de um filho.

    Esse suicídio de valores pode não ser comum a todos os crentes religiosos, mas está fortemente correlacionado com quão a sério levam a sua religião.

    Não percebi. Se os valores são "querer o que Deus quer" e a "vida eterna", o que impede uma pessoa que leva a religião a sério de ir ao médico com um filho doente? Achas que Deus quer uma doença? Tens uma ideia muito deturpada da vivência Cristã.

    ---------------------------------------------

    Cara Rosario,

    a sua crença é puramente circunstancial

    A evidência que me referia era a científica, não a toda e qualquer evidência. Por outro lado, se o seu vizinho é terrorista, segundo a frase que escrevi implica que a ausência de prova que o é, não implica que o não seja. Não há qualquer perigo desta frase relativamente ao meu argumento, mas apenas para aqueles que reduzem diferentes níveis da realidade a um só e vêm-se abalados com a sua consequência no seu campo de visão monista.

    --------------------------------------------

    Nuvens,

    Se apenas existisses tu no mundo, percebia-te, mas existem outros à tua volta e o desafio do que disse é, se quiseres, sair da esfera do "eu" e descobrir-te no outro que te trás à existência.

    ResponderEliminar
  22. Miguel

    Se apenas existisses tu no mundo, percebia-te, mas existem outros à tua volta e o desafio do que disse é, se quiseres, sair da esfera do "eu" e descobrir-te no outro que te trás à existência.

    Acho que não percebeste. Eu considero que tenho um mínimo de dignidade para viver, não considero que exista grande dignidade ao morrer. Morremos cheios de tubos, a ser cuidados por enfermeiras e a sermos esquecidos em camas de hospital. Morremos sós como só pode ser, e sobretudo morremos mal.
    Por isso acho completamente racional que sabendo que o fim se aproxima o possa acelerar de forma mais agradável para mim.
    Obviamente que a vida antes desta fase é para mim muito preciosa porque é a única que tenho e não acredito que vou voltar a ver a natureza, a arte, a beleza que enche o mundo.
    Claro que podemos fazer a pergunta : para que cá estar se vamos morrer ?
    Ora parece-me simples, primeiro porque é divertido ( no meu caso) é bom conhecer pessoas ( mesmo tendo um certo ódio às mesmas) é divertido amar, ( mesmo não sendo muito crente na bondade dos sentimentos) , é divertido conhecer coisas novas ( mesmo achando que é tudo um pouco igual ) e poderia continuar com uma lista infindável de motivos que me agradam e tb que não me convencem a 100%.

    É no fundo desafiante viver, e como temos centros de recompensa no cérebro e outros de punição, viver é encarado como sendo melhor que morrer.

    Por isso não se encontram grandes adeptos de suicídios em massa.
    Morrer será uma seca sem consciência , mas a minha consciência agora não consegue imaginar algo que implicaria ela desligar-se. Não faz sequer sentido, é como pedir a um computador que registe os estado aleatórios das memórias (pequenos "saltos" eléctricos ) quando está desligado, oi ???? se está desligado não o pode fazer e se o pode fazer é porque não está desligado.

    Mas posso fazer um projecção errada e consigo saber que a eternidade é uma seca tão grande que é um alívio não haver consciência que sobreviva À morte.
    Vaguear num universo a caminho da morte térmica :S , no thanks :D

    E que seria de mim, um epicurista, sem os meus prazeres ?
    que seria a minha existência sem o bom vinho ? os prazeres da comida ? os prazeres do corpo ? a arte ?

    Uma alma é uma coisa que a existir é outra seca, sem dúvida uma invenção diabólica para me meter numa cave de infindáveis vinhos e acepipes mas sem ser material , um horror sem nome,
    : )))

    ResponderEliminar
  23. Ludwig,

    É também interessante a resposta do budismo à felicidade baseada nas posses materiais. Porque não só faz bastante sentido, como também é a resposta que se comprova ser mais saudável, por exemplo, no mercado de trabalho, onde as pessoas que avaliam a sua felicidade relativamente às outras se sentem sempre um pouco miseráveis pelo facto de haver alguém numa situação melhor do que a delas.

    E toda a filosofia por detrás da estética wabi sabi passa também pela aceitação dos defeitos, transitoriedade e despertença de todas as coisas.

    Só é pena toda a lengalenga do karma... Parece que o budismo tem medo do vazio deixado pela inexistência de uma justiça universal.

    ResponderEliminar
  24. Caro Miguel Panão,

    A minha interpretação daquilo que havia sido dito baseou-se também neste outro comentário:

    «O que é o suicídio senão expressão (por vezes patológica) dessa ausência?»

    E esta ausência provinha do facto de o ateísmo ser «levado a sério». Ora, bem sei que o Miguel já tinha dito que não queria insinuar que o ateísmo levava ao suicídio, mas há aqui uma incoerência.

    Se o ateísmo levado a sério leva a uma ausência e se o suicídio é a expressão dessa ausência, sou levado à conclusão de que o Miguel pensa que todo o ateu que não aceite esta conclusão está em contradição consigo próprio ou com as suas ideias. Ou seja, que quando um ateu não vê com facilidade as consequências dessa ausência, então não está a ser completamente honesto com as suas ideias ou que pelo menos não reflectiu sobre elas o suficiente.

    E é disso que eu discordo. A ausência de vida eterna não altera em nada a forma como uma pessoa pode interagir com o mundo que a rodeia (senão somente nas situações em que acreditar numa vida eterna condicionaria o seu comportamento com vista a atingir alguma forma de Paraíso). Condicionar toda uma vida, potencialmente finita, em função de um desconhecido que pode ter tantas formas quantas as que se possam imaginar é uma aposta perdida. É castrar a nossa liberdade por causa da imaginação, medo e anseios dos outros.

    E por acaso até acho que a crença na vida eterna tem uma origem mais no vazio que nos traz a morte dos que nos são próximos do que na nossa própria morte. Porque muitas pessoas só conseguem encontrar conforto se acreditarem que os que morreram vão encontrar maior felicidade ou justiça.

    ResponderEliminar
  25. «E por acaso até acho que a crença na vida eterna tem uma origem mais no vazio que nos traz a morte dos que nos são próximos do que na nossa própria morte. Porque muitas pessoas só conseguem encontrar conforto se acreditarem que os que morreram vão encontrar maior felicidade ou justiça.»

    Que observação interessante. Será que é mesmo assim? Parece-me bem capaz.

    ResponderEliminar
  26. João Vasco,

    Os primeiros funerais humanos apresentam indícios de que havia uma projecção da vida terrena na condição final do defunto - enterrava-se a pessoa com os seus pertences pessoais. Nos funerais egípcios havia claramente a intenção de preservar a nossa essência (preservação essa que passava pela mumificação mas não só - toda a vida da pessoa era como que "mumificada") e garantir a segunda vida.

    Por isso creio que não é demasiado imprudente assumir que isso já acontecia muito antes. Havia, pelo menos, o interesse em preservar o defunto - através de túmulos permanentes ou de mumificação. Parece que o ser humano quer mesmo que os que lhe são queridos fiquem cá mais tempo.

    Mas isto é claramente trabalho para antropólogos e não gosto muito de especular...

    ResponderEliminar
  27. Acho que o Francisco tem razão.

    Quando pensamos na vida depois da morte é mais algo que resolve o problema da mortalidade dos outros. Vemos que morrem, isso não há dúvida nem podemos iludir-nos quanto a esse facto (vejam como choram mesmo os que acreditam nessas coisas). Mas podemos imaginar que a pessoa foi para um sítio melhor e tornou-se imortal assim.

    Mas a nossa mortalidade gostaríamos de a resolver de outra forma. Como disse Woody Allen, queremos ser imortais não por grandes feitos que nos tornem inesquecíveis mas por via de não morrer :)

    ResponderEliminar
  28. Caro Miguel Panão,

    Ainda outro pequeno comentário:

    «Não sei, mas é uma forma de crer, neste caso, na ausência do divino. Só quem tem fé nisso, acredita.»

    Não concordo. A negação da fé não é a fé na negação. Não tenho dou crédito a nenhuma descrição da vida eterna e nem por isso tenho fé no vazio. Simplesmente me parece a hipótese com maior senso.

    Eu preciso de fé para acreditar que depois de saltar de um grande precipício vou sobreviver. Mas para me convencer de que vou morrer não preciso de fé nenhuma. É uma conclusão bastante razoável.

    ResponderEliminar
  29. «Quando pensamos na vida depois da morte é mais algo que resolve o problema da mortalidade dos outros.»

    A mortalidade dos outros my ass! Se até o Miguel Panão está farto de dizer que tem medo de ser "esquecido" e traz debaixo de olho o seu próprio direito à eternidade... O que vocês estão a fazer é procurar dos motivos o menos mau para justificar o absurdo de recusar liminarmente o nosso próprio fim, de que tomamos consciência pela morte dos outros (e não o contrário :)

    É bonito da vossa parte, reconheço. Mas se há coisa que está mais que provada sobre os humanos é que o instinto egocêntrico é mais forte do que a falta que os outros nos fazem, por muita falta que nos façam. Fraqueza, aliás, que nenhum cristão se atreverá a desmentir pois terá sido precisamente por isso que o irrepetível JotaCê ofereceu o coiro em grande estilo pedagógico.

    (eu também penso que a visão da terra a engolir pessoas ajuda bastante à vocação religiosa e afins. Mas penso que mesmo assim a parcela que pesa mais no mecanismo mental da recusa dos factos é a parcela da auto-preservação)

    ResponderEliminar
  30. Mais um pensamento para este post sobre o niilismo, escrito por Georges Cottier referindo-se à altura em que se desenvolvia o niilismo entre Feuerbach, Nietzsche, Stirner, entre outros:

    «Tornou-se corrente dizer que à morte de Deus se segue a morte do homem. Stirner e, depois dele, Nietzsche descreveram a trajectória que conduz de uma à outra. É provável que o humanismo ateu já esteja em decadência. Tem de calcular-se que a sua forma niilista venha a suceder-lhe.»

    Há muitos tipos de suicídio. Neste caso, o niilismo resulta na morte do humanismo.

    ResponderEliminar
  31. Caro Miguel Panão,
    não estará acometido de uma valente crise de «wishful thinking»? Lamento desiludi-lo: sou ateia convicta, adoro a vida, tenho mil e uma razões para a viver em plenitude e tenciono fazê-lo até ao último momento, sempre supondo que a saúde não me prega uma daquelas partidas pelas quais é famoso o seu deus, claro. E olhe que acreditar que existe um deus responsável pelo que vai no mundo é que me daria razão de sobra para ser niilista.

    ResponderEliminar
  32. Cristy

    Se deus existisse era uma criatura no mínimo sádica. Mais ao estilo de algumas séries de fantasia do que o deus bonzinho e cheio de amor que o Miguel Panão quer vender.

    ResponderEliminar
  33. Cristy,

    Deus não prega partidas. Deus dá o "ser" ao mundo, mas com isso a responsabilidade para que "seja" e se "torne". Respeito que seja uma ateia convicta, mas pelos comentários que deixa duvido. Ou anda zangada com Deus porque acredita n'Ele, ou gostaria de acreditar, ou então o seu pensamento ateísta é muito superficial.

    ResponderEliminar
  34. Miguel Panão,

    tem razão, o meu pensamento ateísta é do mais superficial possível. Por isso sou a oportunidade ideal para alguém que tenha bons argumentos me convencer que estou totalmente errada.
    Sugiro que comece por me explicar como é que sabe que «deus não prega partidas»?
    Agradecida

    ResponderEliminar
  35. Cristy,

    depreendi que as partidas a que se referia eram más, essas ele não prega, apenas as boas ;)

    Contudo, permita-me sugerir questionar a superficialidade de um pensamento ateísta, caso contrário, poderá passar por uma ex-crente zangada.

    ResponderEliminar
  36. "A evidência que me referia era a científica, não a toda e qualquer evidência"
    CAro Panao, se alguem nao tivesse dito que vice nuca brinca, pensaria que estava a brincar outra vez... vamos la a ver... evidencia é evidencia. Evidencia nao se divide em cientifica e outros tipos.

    ResponderEliminar
  37. Rosário,

    Quem acha que a realidade tem vários níveis também pode dividir a evidência em vários tipos.

    Tal como uns dizem "oiro" e outros "ouro", uns dizem "fantasia" e outros dizem "outros níveis de realidade com evidências de outro tipo" ;)

    ResponderEliminar
  38. "depreendi que as partidas a que se referia eram más, essas ele não prega, apenas as boas ;)"

    Miguel,
    certo, aceito isso como base para o argumento. Mas responda-me, como sabe?

    "Contudo, permita-me sugerir questionar a superficialidade de um pensamento ateísta, caso contrário, poderá passar por uma ex-crente zangada."

    Perdi-me. Porque é que a superficialidade do meu pensamento ateu faz de mim uma ex-crente zangada? Quanto muito faz de mim alguém que se preocupa muito pouco com o tema, porque não tem relevância para a minha vida, fora algum tempo divertido que passo aqui neste blogue, - mas é mais pela argumentação do pelo conteúdo - quando discutem a existência ou não de deus(es). E eu nunca me zanguei com deuses, com o pai natal ou com o monstro do esparguete. Já com a(s) igreja(s) é outra conversa, claro :-)

    ResponderEliminar
  39. Cristy,

    Mas responda-me, como sabe?

    Pelos frutos do Espírito Santo (Gálatas 5, 22-23).

    Porque é que a superficialidade do meu pensamento ateu faz de mim uma ex-crente zangada?

    Comenta sem qualquer reflexão ateísta.

    Quanto muito faz de mim alguém que se preocupa muito pouco com o tema, porque não tem relevância para a minha vida,

    Terá? Não parece ...

    E eu nunca me zanguei com deuses, com o pai natal ou com o monstro do esparguete. Já com a(s) igreja(s) é outra conversa, claro :-)

    Porquê contra a Igreja?

    ResponderEliminar
  40. Rosario e Ludwig,

    evidencia é evidencia. Evidencia nao se divide em cientifica e outros tipos.

    Então o que é para vocês evidência? Apenas a científica? Se me disserem "sou positivista" admitam-no, mas caso contrário, expliquem-no, se conseguirem ...

    uns dizem "fantasia" e outros dizem "outros níveis de realidade com evidências de outro tipo" ;)

    Exacto, antagonicamente falando ...

    ResponderEliminar
  41. Pelos últimos comentários ... o ateísmo que aqui encontro é muito superficial e pobre no conteúdo, demasiado marcado por tipologias de materialismo e positivismo sem que se admita. Para quem procura pensamento ateu aqui só encontrará "divertimento". Well ... that's a way of blogging ...

    ResponderEliminar
  42. Miguel Panão,

    Uma observação é evidência para uma hipótese se for consistente com as previsões dessa hipótese ao mesmo tempo que é inconsistente com as previsões das alternativas. Por exemplo, o homem ser apanhado em posse da arma do crime é consistente com ele ser criminoso mas não com a hipótese de ele ser inocente.

    Assim, para que algo seja evidência para uma hipótese, é preciso que essa hipótese seja testável e esteja a ser considerada em conjunto com alternativas. É isso que se faz em ciência.

    Se considerarmos que o conceito de evidências presume o teste de hipóteses e que o teste de hipóteses é uma característica da ciência então todas as evidências serão científicas.

    Se quiseres propor evidências fora do contexto do teste de hipóteses tens de explicar o que queres com isso. Isto não tem nada que ver com sermos coitadinhos por nos faltar profundidade. Tem que ver simplesmente com não estares a fazer sentido.

    ResponderEliminar
  43. Miguel Panão,

    considera possível alguém ser ateu de forma não superficial e ao mesmo tempo ter, por exemplo, uma moralidade que não depende de ateísmos?

    Humanismo é uma filosofia centrada na humanidade. Eu não sou humanista... Vou muito além dos humanos. No caso de Nietzche, posso compreender o que significa o suicídio do humanismo. Afinal, esperava que o Homem superasse a si mesmo (Assim Falou Zaratrusta) porque o Homem representava um ser servil que matou aquele que servia de referência como mestre de escravos que definia uma moral de escravos (O Anticristo). Sem ser um escravo, devemos deixar de seguir uma moral de escravos, e passamos a sermos donos de nós mesmos e devemos procurar os nossos imperativos categóricos e expandir e explorar os poderes que temos, tornando-nos mais que humanos.

    ResponderEliminar
  44. Miguel,
    a vantagem dos blogues é que não precisa de responder a ninguem se não lhe apetece. É mais gentil do que responder com esses disparates às minhas perguntas. Não estou a pedir sequer que me leve a sério - eu sei que a sua igreja não considera as mulheres pessoas. Mas pelo menos finja um pouco de boa educação.

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.