terça-feira, março 30, 2010

O pensamento ateu.

Apesar do outro post sobre o assunto (1), continuam a insistir que o pensamento ateu é pouco profundo, que o ateísmo só vive da crítica à religião, que é insensato definirmo-nos por sermos apenas contra uma ideia e assim por diante. Não sendo inteiramente erradas, estas alegações sugerem, no entanto, uma visão demasiado estreita do ateu e do ateísmo porque focam apenas um detalhe de uma atitude muito mais abrangente.

Os crentes chamam-me ateu porque não acredito no que me dizem acerca dos seus deuses. Mas, para mim, isto é como não acreditar quando me dizem que o Pai Natal traz as prendas, que há um monstro em Loch Ness ou que extraterrestres raptam pessoas. Não aceito como verdade aquilo que não for devidamente justificado. E com hipóteses tão extraordinárias o mais razoável é mesmo assumir que são falsas enquanto não haver indícios igualmente extraordinários.

Isto não é um ismo. É bom senso. Quando recebo um email de um general africano a pedir para lhe enviar 50€ para ele transferir cinquenta milhões para a minha conta não confio na promessa e nem sequer fico indeciso acerca da honestidade da proposta. A indecisão levaria a estimar 50% de probabilidade de ser verdade, um risco aceitável nesse caso. Mas o que eu concluo, como a maioria das pessoas, é que é treta. Nem com um ganho possível de um milhão para um arrisco, e quem for consistentemente crente ou agnóstico nestas coisas vai à falência num instante. Felizmente, a maioria rege-se pela regra de rejeitar alegações extraordinárias que não sejam suportadas por evidências extraordinárias.

Para perceber o tal “pensamento ateu” basta perceber que esta atitude não é excepcional. Não se discrimina um deus ou os deuses só para implicar. Por não haver termos equivalente a “ateu” para quem duvida de outras alegações duvidosas, como raptores extraterrestres ou monstros em lagos, parece que ser ateu é um caso à parte. Mas rejeitar como incorrectas as alegações de quem diz saber que deuses existem e como são deriva simplesmente da aplicação homogénea dos critérios para aceitar alegações extraordinárias.

Lamento desiludir quem procura um “pensamento ateu” único e original, mas isto é o mesmo que os crentes fazem. A diferença está só em não abrir excepções arbitrárias. Pensem no nível de evidência que exigiriam para aceitar afirmações como: Maomé é o maior e derradeiro profeta de Deus e o Corão é a palavra divina; “eu” é uma mera ilusão que devemos descartar, desprendendo-nos de tudo para quebrar o ciclo de reencarnações que nos prende a uma falsa identidade e existência; há 75 milhões de anos um maléfico imperador da galáxia trouxe milhares de milhões de extraterrestres para a Terra e chacinou-os aqui com bombas de hidrogénio; Deus encarnou como o filho de um carpinteiro para morrer por nós e agora transubstancia hóstias em pedaços do seu corpo. Qualquer crente razoável duvidará de pelo menos três destas, mesmo que seja muçulmano, budista, cientólogo ou católico. O ateísmo, enquanto rejeição de dogmas religiosos, consiste simplesmente em aplicar à que sobra os mesmos critérios que se aplica a todas as outras hipóteses religiosas, de OVNIs, de astrologia, monstros e emails suspeitos. Se exigirem da vossa religião o mesmo que exigem do resto facilmente perceberão que o “pensamento ateu” é apenas pensamento. É o mesmo de sempre e de todos.

No entanto, isto restringe a discussão ao juízo de afirmações sobre factos. Se bem que “ateu” normalmente refira aquele que rejeita explicitamente os dogmas religiosos, a distinção entre quem tem e quem não tem deuses vai além da mera avaliação de hipóteses. Um factor importante, e independente até dos deuses existirem ou não, é a disposição para a veneração, a participação numa comunidade religiosa, a oração e aquela coisa vaga a que chamam espiritualidade. Isto, talvez mais que o resto, determina se alguém se sente um crente.

Nisto já se pode apontar uma diferença radical entre crentes e ateus. Não é uma diferença de pensamento, no sentido de uma decisão racional e justificável a terceiros, mas sim uma diferença de personalidade. Há quem se sinta bem pensando que obedece a deus, que o ama e que é livre na servidão e obediência, ou coisas do género. E há quem não veja interesse nenhum nisso. Infelizmente, separar assim ateus e crentes cria o problema de classificar os que seguem os rituais da sua religião por hábito e tradição, e que professam os dogmas oficiais, mas que não sentem qualquer ligação a um deus. E suspeito que não sejam poucos.

Por isso proponho que se contorne estes problemas simplificando a discussão. Primeiro, dando menos importância ao termo e à definição de “ateu”. É mais confuso que relevante e não se define ninguém por não acreditar num deus, tal como ninguém se define por não acreditar noutra coisa qualquer. Em segundo lugar, aceitando que a religião não agrada a todos. Uns gostam e outros não. É um género de sauerkraut espiritual. E, finalmente, reconhecendo que qualquer hipótese que se proponha acerca dos deuses é como qualquer outra hipótese acerca da realidade, e deve ser encarada com tanto cepticismo quanto for excepcional.

Editado a 31-3 para corrigir umas gralhas apontadas pelo ricardodabo (no D.A.). Obrigado pela atenção.

1- O elefante

19 comentários:

  1. "simplesmente em aplicar à que sobra os mesmos critérios"

    Corrige o à para ao que sobra :-)

    beijos

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  2. Ludwig:

    O que estas a dizer é que és um céptico antes de ser ateu. E que és ateu porque tens a atitude de duvida sistemática do céptico.

    Ou estou a ver algo mal?

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  3. Joaninha,

    «Corrige o à para ao que sobra :-)»

    O que queria dizer era mesmo à hipótese que sobra, no singular, para salientar que a escolha de uma religião é escolher um ponto num plano muito vasto.

    Mas achas que não se percebe isso e parece gralha?

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  4. João,

    Essa pergunta é um problema que ainda andamos a discutir. Se o ateísmo é apenas uma posição acerca dos factos ou se é também uma atitude perante as divindades em potencial.

    Mas se formos pela primeira apenas, então sim, sou ateista como mero efeito secundário de uma abordagem genérica que me torna também a-pai-natalista, a-monstro-de-loch-nessista, a-yeti-ista e mais uma data de coisas. Hipóteses são hipóteses.

    Se formos pela segunda então é diferente. O mais correcto será dizer que eu não tenho deuses, independentemente do tipo de seres que haja por aí, porque sou incapaz de venerar seja o que for. Não tenho jeito para isso.

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  5. Parece gralha quando se lê...mas fiquei a entender a intenção...beijos

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  6. Ludwig:

    "O mais correcto será dizer que eu não tenho deuses, independentemente do tipo de seres que haja por aí, porque sou incapaz de venerar seja o que for."

    Estou convencido que isso seria negociável caso deus existisse. Repara que estarias na presença da maior potencia de inteligência imaginável.

    Eu não vou por aì. Se existisse isso era uma preocupação secundaria para mim. E tambem não sou de venerar. Mas não me passa pela cabeça que se deus existisse fosse o deus com nessecidades de rituais e salamaleques como o da Igreja catolica ou similares.Isso é o homem que precisa, não deus. E alguns homens apenas.

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  7. João,

    « Mas não me passa pela cabeça que se deus existisse fosse o deus com nessecidades de rituais e salamaleques como o da Igreja catolica ou similares.Isso é o homem que precisa, não deus. E alguns homens apenas.»

    E apenas para controlar os outros. Esse é um ponto importante. Toda a estrutura psicológica e social da religião visa apropriar alguns mecanismos que temos em criança para nos controlar enquanto adultos. As religiões não duram porque servem aos crentes mas porque serve aos que as controlam e às instituições em si.

    É como o espirro. Tu não espirras para te ajudar a curar a gripe. O vírus é que te faz espirrar porque foi seleccionado para maximizar o contágio, e o espirro é uma boa maneira de te aproveitar para ir para outro hospedeiro.

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  8. Sim, criar a ideia do pai do céu e acentuar a vulnerabilidade natural do ser humano.

    So que depois não há pai-do-céu nenhum e o placebo não convence todos.

    E explora mais bugs do cerebro, não é só esse.
    Depois sempre fáz umas acções de caridade. Seja dito em nome da verdade. Mas são insuficientes. Vão dando migalhas enquanto falam em milagres.

    E para dar migalhas não é preciso meter deus ao barulho.

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  9. Se existissem deuses eu tentaria depo-los. Filhos da mãe, fossem lá brincar antes com a pilinha divina em vez de se meteram a inventar coisas.

    Não vejo necessidade de arranjar explicações mirabolantes e fantásticas para os acontecimentos reais. Não sinto que haja sequer um nicho para um deus por mais rocambolescas sejam as suas potencialidades. Se partilharem por mais de um, a coisa não melhora.

    Quanto a esquemas envolvendo a espiritualidade, onde deuses não existem mas falam em reencarnações, carma, nirvanas e o catano, prefiro fazer sexo - também não leva a nada, mas é bem mais agradável.

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  10. "Os crentes chamam-me ateu porque não acredito no que me dizem acerca dos seus deuses."

    Tinha a ideia de que tu é que te chamavas a ti próprio ateu, com muito orgulho, ao ponto de criares/pertenceres a associações de...ateus!

    Os crentes, esses malvados que lançam rótulos sobre as associações e militâncias alheias. Sacanas...

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  11. Jairo,

    Não tenho vergonha do rótulo que me puseram. Nem vejo mal em usá-lo. Mas já defendi várias vezes que me parece supérfluo um rótulo para quem não acredita em deuses. Porque trata-se do mesmo cepticismo que se usa em praticamente tudo.

    Porque é que duvidar que uma grávida seja virgem é bom senso em 99.99999999% dos casos mas ateísmo no restante 0.00000001%?

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  12. "Mas, para mim, isto é como não acreditar quando me dizem que o Pai Natal traz as prendas, que há um monstro em Loch Ness ou que extraterrestres raptam pessoas"

    Outra vez o velho mito à la bule de chá de Bertrand Russel. Se para ti, não acreditar em Deus é como não acreditar no Pai Natal, sofres de ignorância crónica.

    A questão é muito simples, estás à vontade para não acreditar em nenhum deles. Mas devias saber que:

    a) Deus é definido como um necessidade lógica,
    b) Pai Natal, Monstro de Loch Ness ou Et´s em Marte, não são necessidades lógicas.

    Se não acreditas em Deus, tudo bem. Nada contra, porque há muito gente que não acredita. Estou-me a marimbar para isso, literalmente.
    Agora, não teres vergonha de afirmar publicamente que negas Deus como necessidade lógica ( assim é definido pela filosofia ou teologia) da mesma maneira que negas mitos que não são necessidades; é admitires perante todos que te queres livrar da tarefa díficil ( nunca conseguida) de refutar a necessidade lógica que é a existência de Deus.

    Ou seja, podes não acreditar em Deus, mas não tens fundamento algum para te dizeres ateu e fundamento algum existe para acreditar na banha da cobra que é a militância que fazes do "ateísmo". Afinal, nem sequer sabes o que estás a negar, nem demonstras que o ateísmo ( a não existência de Deus) seja ele próprio uma necessidade lógica.

    Se existirem ou não existirem verdinhos em Marte, é logicamente irrelevante. Podem haver ou não, que a lógica continua a mesma.
    Já a existência de Deus, é logicamente determinante. É a diferença entre haver Verdade ou não haver, haver Moral ou não haver, haver inteligibilidade ou não haver.

    Se afirmas que isso tudo existe sem Deus, tens uma tarefa à tua frente, cuja dificuldade nem imaginas: demonstrar que o ateísmo é uma necessidade lógica para tudo isso existir!

    Agora, se queres fugir, dizendo que "Deus" é como o Pai Natal, e que não tens de explicar nada; é lá contigo. Mas passas uma vergonha em público, claro...

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  13. Jairo,

    «a) Deus é definido como um necessidade lógica,
    b) Pai Natal, Monstro de Loch Ness ou Et´s em Marte, não são necessidades lógicas.»


    Só podes definir palavras e símbolos. Não podes definir coisas. Eu não posso definir um canguru como uma necessidade lógica, e também não posso definir deuses, Pai Natal ou o que raio seja como uma necessidade lógica.

    O máximo que posso fazer é dizer, por exemplo, que P é uma proposição necessariamente verdadeira, e ver onde esse axioma me leva. Mas isso não diz absolutamente nada acerca da realidade. É uma mera aplicação de princípios formais.

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  14. "Deus é definido como um necessidade lógica,"

    Só que isto não é verdade. Pois não há nenhuma condição que possa ser explicada por deus. A não ser que consideres que deus é o universo. Mas nada disso implica que ele tenha intecionalidade ou vontade propria.

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  15. Como por exemplo:

    Porque é que existe uma entidade omnipotente, omnipresente, omnisciente em vez de nada?

    Porque é que é mais facil explicar o aparecimento do universo se postularmos intencionalidade algures? Parece-me uma lógica muito barroca. Isto sem falar no que dizem os dados empiricos. Mas se falam em realidade não podem absolutamente ignorar a informação empirica. Porque a própria lógica e a matemática têm origem empirica. São abstrações de processos que nós identificamos e encontramos formulas gerais.

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  16. http://www.youtube.com/watch?v=yUxTz11K1Vc

    http://www.youtube.com/watch?v=qHkXeT5U-vs

    Tenho de admitir que me perdi um bocado ao tentar compreender isto tudo...

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  17. João,

    "Mas não me passa pela cabeça que se deus existisse fosse o deus com nessecidades de rituais e salamaleques como o da Igreja catolica ou similares."

    Podia ser um "deus" como os Ori da série Stargate, que ganhavam poder com as orações dos crentes. :)

    Nas religiões reais parecem ser mais as próprias instituições a ganhar poder e dinheiro com os crentes... mas nunca se sabe. Se calhar andam por aí os Ori a enganar toda a gente. :)

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  18. Eu também sofro de ignorância crónica, logo não acredito em deus. Ou provavelmente é o contrário:
    Não acredito em deus, logo sofro de ignorância crónica.

    Isto parece uma realidade a preto e branco: se é ateu é parvo e ignorante e se é crente é inteligente e sensato.
    Acontece que num caso e noutro há milhares de contra exemplos. Há crentes parvos e ignorantes como há ateus parvos e ignorantes. Há teísmo parvo e ignorante como há ateísmo parvo e ignorante. Há crença claramente pimba como há ateísmo pimba. Ou será que por se acreditar em deus de repente ficamos ungidos pela inteligência divina???
    De resto também há quem veja muita profundidade nos textos de Heidegger e eu só vejo lá cagança intelectual sem interesse algum. E há quem veja superficialidade em Russell e eu vejo lá uma das filosofias mais avançadas da história da filosofia.

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  19. "Não acredito em deus, logo sofro de ignorância crónica"

    Não, tu deves é ser muito distraído. Vai lá ler melhor o que escrevi, e não me atribuas conclusões que nunca tirei.

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