Ilegais? Porquê? – actualização.
Recebi hoje resposta da IGAC. Não foi um dos destinatários da minha mensagem inicial (1), mas presumo que alguém no Ministério da Cultura tenha reencaminhado a mensagem. Aproveito para agradecer publicamente a resposta. Infelizmente, não fiquei muito esclarecido.
A mensagem que recebi indicava que a Lei n.º 50/2004 teria alterado o nº 2 do artigo 75º do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), citando de seguida que «são lícitas, sem o consentimento do autor, a reprodução de obra, cuja cópia tenha sido adquirida licitamente, em qualquer meio, para uso exclusivamente privado e sem fins comerciais directos ou indirectos». Isto parecia arrumar o assunto porque restringia o direito de cópia apenas às cópias licitamente adquiridas, dando razão a alguns comentadores do post anterior. Noto, de passagem, que a mensagem não mencionou o artigo 189º, que exclui os direitos conexos do uso privado.
Mas quando fui ver a Lei n.º 50/2004, a redacção do nº 2 do artigo 75º não inclui a restrição que me citaram:
«2 — São lícitas, sem o consentimento do autor, as seguintes utilizações da obra:
a) A reprodução de obra, para fins exclusivamente privados, em papel ou suporte similar, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, com excepção das partituras, bem como a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos;»(2)
Só no ponto 3, respeitante à distribuição e não à cópia privada, é que vem mencionada uma restrição às cópias (exemplares) obtidas licitamente:
«3 — É também lícita a distribuição dos exemplares licitamente reproduzidos, na medida justificada pelo objectivo do acto de reprodução.»
E enquanto o ponto 2 refere a «reprodução de obra», o ponto 3 refere a «distribuição dos exemplares licitamente reproduzidos». Isto é significativo porque a obra e as cópias materiais são coisas diferentes, como está patente nos artigos 1º e 10º do CDADC. A obra é a criação intelectual e os exemplares são a sua materialização em objectos físicos. A interpretação literal do ponto 2 do artigo 75º sugere claramente que é lícito reproduzir a obra para uso privado, independentemente de onde vem a cópia, visto esta nem ser mencionada neste ponto e ser algo diferente da obra em si. Um exemplo seria fotografar uma estátua para uso privado, que pela lei parece ser legítimo mesmo que o fotógrafo não tenha adquirido a estátua, mas diferente de distribuir réplicas da estátua sem que sejam exemplares licitamente reproduzidos para esse fim.
Apesar de apreciar a resposta relativamente rápida, fiquei desiludido e preocupado. Desiludido porque continuam a não me apontar a parte relevante da lei, dando-me em vez disso citações de fonte desconhecida. E preocupado que a IGAC me envie esta citação referindo explicitamente o número 2 do Artigo 75º da Lei n.º 50/2004 quando não é isso que lá está. Já pedi que me esclarecessem de onde vem o trecho adicional, «cuja cópia tenha sido adquirida licitamente», que me citaram mas que não se encontra na Lei. Tenho esperança que isto não tenha vindo do Tózé Brito e que a IGAC interprete a legislação pelo que lá está escrito e não pelo que o lobby da rodela de plástico queria que lá estivesse. Mas é uma esperança assolada pelas evidências.
Preocupa-me também o que isto sugere acerca da lei. Se fosse legislação para regular o comércio ou a actuação de empresas não me ralava que a lei fosse obscura e sujeita a interpretações. As empresas têm dinheiro para pagar a advogados que argumentem essas coisas em tribunal. Mas esta lei regula uma coisa que podemos fazer todos os dias. É como o limite de velocidade na autoestrada ou o direito de voto. É inadmissível que não se consiga saber, pela simples consulta da lei, que se comete um ilícito ao descarregar um mp3 e que só interpretações rebuscadas vindas sabe-se lá de onde digam que é mesmo assim.
1- Ilegais? Porquê? e O 75º e o 189º
2- Pdf disponível no site do DR, Lei 50/2004 de 24 de Agosto
Já dizia o John Locke, "quando acaba a lei, começa a tirania" :(
ResponderEliminarUm caso mais caricato causado pela complexidade destas leis foi o que aconteceu quando Obama ofereceu um iPod á rainha de Inglaterra:
Of course, no one thinks that copyright owners are going to send lawyers after either President Obama or the Queen over this. But none of us should want a world where even our leaders--much less the rest of us--can't figure out how copyright law operates in their daily lives.Enfim...
Oscar,
ResponderEliminarSim, já tinha lido essa. E é um problema grande também. Sempre que fazes forward de um email cometes um crime de usurpação, tanto porque distribuis sem autorização como porque, provavelmente, estás a divulgar uma obra não destinada a divulgação. A três anos de cadeia por cada forward (ou reply, se tiveres por defeito a opção de copiar o original), faz as contas...
Mas mais assustador ainda é a IGAC citar-me o artigo incorrectamente, acrescentando essa parte da cópia obtida licitamente que não vem na lei.
Ludwig, a IGAC já deve ter um template com essa resposta - fiz uma pesquisa no Google por "cuja cópia tenha sido adquirida licitamente", com aspas, para ver se descobria de onde teria vindo esse texto - dei de caras com este post, de 2007, acerca de uns mails que andaram a circular que garantiam que se a polícia mandasse um automobilista parar e lhe detectasse cópias de CDs no carro, podia imediatamente apreender a viatura...
ResponderEliminarLeia a resposta da IGAC e veja se não soa familiar...
Acho importante salientar um detalhe importante:
ResponderEliminar«Se fosse legislação para regular o comércio ou a actuação de empresas não me ralava que a lei fosse obscura e sujeita a interpretações. As empresas têm dinheiro para pagar a advogados que argumentem essas coisas em tribunal.»Como sabemos da economia, quando um custo (neste caso o overhead jurídico) é imposto ao mercado, quem o paga são também os consumidores, mesmo que seja pago directamente pelos fornecedores. Assim, quem paga os advogados que interpretam as leis para as empresas (naturalmente, sempre que possível a favor delas mesmo que contra os consumidores) é quem compra o leite e o arroz e o passe.
Ter um sistema jurídico desnecessariamente complicado para as pessoas terem de pagar a quem lhes interprete as leias é quase tão roubalheira como obrigar quem quer ouvir música a pagar à mafia do copyright.
Bruno Espadana,
ResponderEliminarObrigado pelo link. Também tinha feito uma pesquisa por essa citação, mas não reparei que isto:
«- A Lei n.º 50/2004, de 24 de Agosto, veio alterar, entre outros, o art.75.º do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), considerando no n.º 2 que são lícitas, sem o consentimento do autor, a reprodução de obra, cuja cópia tenha sido adquirida licitamente, em qualquer meio, para uso exclusivamente privado e sem fins comerciais directos ou indirectos. (Apenas nos casos em que esses cd's possam ser contrafeitos ou "piratas" adquiridos a terceiros que os "falsificaram", não tendo o processo de aquisição sido lícito, a sua utilização será também considerada ílicita).»
é exactamente o que me mandaram... Ou seja, recebi uma resposta copy-paste sem sequere verem se era o que estava no artigo...
Eu diria mais: não só te deram essa resposta como ela não condiz com o que eles têm no próprio site (http://wwwigac.ml.pt/):
ResponderEliminar"«2 — São lícitas, sem o consentimento do autor, as seguintes utilizações da obra:"
O site não vale nada, na primeira página clicar em legislação na barra de cima (letras pequeninas)
w',
ResponderEliminarTens razão, mas se uma empresa vende um milhão de pacotes de leite por ano e tiver de contratar dois ou três advogados para litigar uma coisa qualquer, o custo que te calha por pacote é bem menor que se tiveres tu de contratar esses advogados para fazeres valer a lei que protege os teus direitos. Concordo que é mau ter leis vagas ou ambíguas, mas é muito pior quando são leis regulam a conduta pessoal de cada um de nós.
Paula,
ResponderEliminarInfelizmente, não consigo lá chegar. A porcaria do site é só javascript por todo o lado e não aparecem os ficheiros...
Mas se for a lei que referem não diz o mesmo que eles. E nas perguntas frequentes -> propriedade intelectual -> reprodução -> quando se pode copiar um cd têm que
«Qualquer reprodução ou cópia, de um fonograma e videograma, que não seja para uso exclusivamente privado, que atinja a exploração normal da obra, cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor, ou seja utilizada para fins de comunicação pública ou comercialização é uma obra "pirateada", obtida sem autorização do autor e dos intérpretes constituindo, em princípio, um crime de usurpação (art.º 195º do CDADC).»
Isto sugere que uma reprodução para uso privado não é ilícita independentemente de quem distribui a cópia ter ou não autorização para o fazer.
Exacto. Basicamente eles têm dois ficheiros em pdf, um que é um texto e outro que é um diário da república de 2008
ResponderEliminarhttp://wwwigac.ml.pt/?cr=7932
Experimenta esse link, não consegui arranjar um link directo para o pdf (raio de site)
Obrigado Paula. Não consegui aceder ao pdf na IGAC mas com o nome da lei deu para encontrar no MJ, que sempre tem um site menos intestinal:
ResponderEliminarLei 16/2008.
Exacto é esse mesmo. Confirmo que é o mesmo pdf que a IGAC tem no seu própio site.
ResponderEliminarE esse deve ser o mais recente.
Da IGAC já não me espanta nada, ando há muito tempo a tentar que eles façam o que a lei manda, sem muito sucesso.
quando um custo (neste caso o overhead jurídico) é imposto ao mercado, quem o paga são também os consumidores, mesmo que seja pago directamente pelos fornecedores.
ResponderEliminarE a acrescentar a isto ainda existe a treta do DRM et al., cujo custo também é pago pelo consumidor final, e às vezes não só.
Mas não dizer mais nada sobre DRM, senão só amanhã é que acabava :P
Ludi,
ResponderEliminar"Infelizmente, não fiquei muito esclarecido."
Se querias respostas esclarecedoras, perguntaste à ciencia errada, o direito nunca é esclarecedor :)
\beijos
...
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