domingo, maio 25, 2008

Profissionalismo.

Há uns dias o jornal Pravda noticiou «mais um escândalo online». Um investigador Russo, Boris Borisov, descobriu que entre 1932 e 1933 morreram nos EUA sete milhões de pessoas à fome por causa da Grande Depressão. Segundo este investigador foi uma tragédia semelhante à que assolou a URSS na mesma altura. A primeira pela política capitalista e a última pela colectivização, mas ambas com este efeito desastroso. Agora o seu artigo na Wikipedia, «The American Famine», foi apagado por causa de inúmeras críticas. Um escândalo.(1)

Eu não costumo ler o Pravda mas gosto de visitar o Dragão de vez em quando. Descobri este caso por intermédio desta análise do Dragão:

«São os paralelismos entre o capitalismo de estado soviético e o capitalismo de donos do estado americano[...]. A diferença não está nos morticínios [...]; está apenas na leitura e interpretação dos fenómenos: no primeiro caso, é claramente um genocídio; no segundo, é, sem sombra de dúvida (e ai de quem alvitre o contrário!) a consequência natural da evolução económica e das leis do mercado.»(2)

Não. No segundo caso é apenas treta. Boris Borisov baseou a sua investigação nos dados de recenseamento dos EUA, o que é razoável. Menos razoável foi a escolha dos dados e a conclusão. Borisov extrapolou a tendência de crescimento demográfico dos EUA antes da Grande Depressão para estimar que em 1940 os EUA deviam ter 141.856 milhões de pessoas. Como a população em 1940 era de apenas 131.409 milhões e só três dos dez milhões em falta se explicavam pela queda na imigração Borisov concluiu que sete milhões tinham morrido oito anos antes.

Se Borisov tivesse calculado o número de mortos pela taxa de mortalidade nos anos em questão em vez de a inferir de uma hipotética natalidade oito anos mais tarde teria obtido resultados diferentes e poupado algum embaraço. A ele e a outros. A figura abaixo mostra a taxa de mortalidade nos EUA entre 1900 e 1950 (referência 3, mortes por mil habitantes). Com uma população de 130 milhões, sete milhões de mortes adicionais em dois anos teria triplicado a taxa de mortalidade. Os dados para 1932 e 1933 estão indicados a encarnado. Mais uma vez, a realidade ficou aquém da treta.

Mortalidade USA

Mas isto demonstra que os bloggers amadores estão ao nível dos jornalistas profissionais. São capazes de demonstrar o mesmo profissionalismo e o mesmo cuidado na averiguação dos factos.

O que, em muitos casos, é pena.

1- Pravda, 19-5-08, Famine killed 7 million people in USA
2- Dragão, 23-5-08, Holohunger
3- U.S. Annual Death Rates per 1,000 Population, 1900–2005

24 comentários:

  1. E o nível dos cientistas, não merece uma mençãozinha neste contexto?
    Cristy

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  2. Cristy,
    creio que ser um cientista amador hoje em dia é muito mais difícil do que ser um jornalista amador, dado à necessidade de laboratórios e/ou equipamentos dispendiosos.
    Eu posso fazer uma pesquisa jornalística sózinha, mas não dispenso de uma equipa e de apoio logístico de qualidade e precisão para fazer uma pesquisa científica. (Além dos estudos adequados).
    Bjs Karin

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  3. Cristy,

    Não consegui encontrar nada acerca desse "investigador" que indicasse ser um cientista. Mas em ciência assume-se à partida que qualquer cientista está enganado. É sempre preciso verificar as inferências e replicar os resultados.

    «Truth is something we can attempt to doubt, and then perhaps, after much exertion, discover that part of the doubt is unjustified.» Niels Bohr

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  4. É claro, também se pode argumentar que o Pravda não contrata jornalistas, mas também "investigadores" ;)

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  5. Karin,
    penso que não é bem assim. Nenhum jornalista faz uma investigação sozinho, mesmo que o afirme. Para já, precisa de fontes. E essas para serem de confiança precisam de ser "cultivadas" durante muitos anos a fio e terem prestado provas de que sabem do que estão a falar. Depois, tem que ter acesso a documentação (bibliotecas, arquivos, etc. etc.) que é gerida e financiada por outrém. Depois, tem que ter acesso a agências noticiosas, idem. Depois tem que contar com equipas de editores e colegas que o apoiem. O jornalista que faz tudo «sózinho» é mais egomaníaco ou bloguista.
    Cristy

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  6. Ludi,
    o Pravda não conta, na realidade, entre o número de publicações à qual eu daria o carimbo «sério» :-). O que não quer dizer que não tenha bons jornalistas. Acho que o erro que se comete com frequência - talvez fruto de demasiados filmes hollywoodianos - é pensar que um jornalista é alguém que decide sozinho o que se publica ou não, ou que tudo o que se publica em jornais é escrito por jornalistas. Penso que no jornalismo, como em qualquer outra profissão, há os bons, os maus e os muitos medianos de que falavas, com razão, recentemente. E cometem-se tantos erros com em qualquer outro lado onde trabalhem seres humanos, mas também não mais do que isso. Claro que a perspectiva em Portugal pode estar negativamente influenciada pela crise evidente do jornalismo neste país, mas Portugal não é o mundo (e a crise no jornalismo até tem pouco a ver com os jornalistas).
    Cristy

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  7. Caro Ludwig Krippahl,

    Coitado do lagartola, deve ter ficado sem fogo ao ler o seu post.

    Parece que é coisa ligeira o que aqui postou, mas não é. Deveria haver mais gente como você para contrapor a mentira que germina por aí, mas o caso piora quando a mentira e feita de forma mais ou menos consciente. O Dragão abocanha tudo o que se encaixa no que ele quer transmitir, ao invés de tentar ver o que a informação encerra. Se pode servir os intentos, então não se mexe em mais nada, a investigação honesta só pode atrapalhar.

    Esse senhor é um simples dispositivo de debitar sinónimos, colecciona maquinalmente vocabulário, produz testos que se desviam do corrente. Quem lê, cola a aparente singularidade dos testos (vocabulário pouco usual - e muita figura de estilo) a alguém com raciocínio credível, e por colagem o "raciocínio" do texto torna-se confiável para quem lê. Não vejo que quem o goste de ler, o ponha em causa:

    - Ah... Que lido texto, tanta "beleza" não pode estar errado.

    É como nos políticos com a sua demagogia desonesta:

    - Fala tão bem que só pode ser vedade o que diz.

    No entanto, numa leitura atenta, só se encontra aldrabice, e linha de raciocínio não há. A lagartixa não deve muito à inteligência, tanto é que se refugia na ofensa directa (por incapacidade argumentativa) e na bricolage pimba dos textos, pois quem não tem cão caça com pulga, porque nem gato tem.

    Outra coisa que acho interessante na sua forma de interagir com quem lê o Ludwig, e a forma - que presumo que seja consciente - directa, e simples. Produzindo textos bastante objectivos e com grande síntese, não se refugiando no vocabulário (tipo pavão) como muita gente faz para disfarçar a pobreza do conteúdo. Continue com essa clareza, clarividência, e simplicidade na forma de escrever, pois assim é mais universal. Presumo que o faz com intenção.

    Comparar os seus miolos com o do Dragão é uma desonestidade, para com o Dragão.

    A reter...

    «...em vez de a inferir de uma hipotética natalidade oito anos mais tarde teria obtido resultados diferentes e poupado algum embaraço. A ele e a outros.»

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  8. Caro Siegfried,

    Obrigado pelo comentário.

    «Outra coisa que acho interessante na sua forma de interagir com quem lê o Ludwig, e a forma - que presumo que seja consciente - directa, e simples.»

    É sempre o objectivo, sim, se bem que por vezes não tenho tempo para pôr as coisas a gosto. Quando escrevo um post com calma consigo apagar cerca de um terço antes de o publicar.

    Em parte porque penso que é o dever de quem escreve para outros lerem não fazer o leitor perder tempo com palha. Em parte porque me satisfaz quando consigo escrever as coisas de forma sucinta porque me obriga pensar claramente no que interessa mais, e isso dá gozo. Em parte por deformação profissional. Muito do meu trabalho é tentar explicar de forma clara coisas que podem baralhar se forem mal explicadas.

    Mas nem toda a gente gosta. A Zazie, por exemplo, não engraçou muito comigo :)

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  9. Cristy,

    Eu penso que há uma diferença importante entre o jornalismo e a ciência neste aspecto.

    O jornalismo serve para vender notícias frescas. Daí a uma semana já ninguém lhes liga. Por isso quando se descobre que a primeira págida da semana passada era treta, se alguém o mencionar é no canto da página 14, em dois parágrafos.

    As publicações científicas servem para que outros possam usar esses dados para avançar mais um pouco. Se descobrem que alguma coisa estava engatada dá logo o equivalente à primeira página, e até alguns comentários sarcásticos na próxima conferência (os cientistas são extremamente violentos nestas coisas ;)

    Pode-se fazer carreira de jornalista sendo um jornalista sério ou sendo um aldrabão de primeira. Em ciência só se for naquelas arraçadas de filosofia barata, porque nem na fisolofia como deve ser isso dá para fazer.

    Mas penso que em parte isso tem a ver com a possibilidade de crítica, e é possível que com os blogs e afins o jornalismo de treta se torne mais difícil.

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  10. Ludwig

    Digo eu que jornalismo não é só debitar notícias e pô-las na máquina. Há notícias frescas, rapidinhas e depois há análises mais aprofundadas, contextualizar a acção, pelo que o teu último comentário não faz sentido por não ser completo.

    Senão repara na diferença entre um jornal diário e um semanário: o último tem um intervalo de tempo maior para noticiar e reflectir acerca da notícia e regra geral pega em coisas menos na berra na hora também. Mas não só: também há por vezes destaques que saem fora da notícia fresca em jornais diários (estou a lembrar-me do Público).

    Em relação à Ciência, estás a ser romântico demais. Pode-se por exemplo fazer Ciência produzindo tretas que não interessam ao menino Jesus nem à vaquinha do presépio com a desculpa de ser investigação fundamental. E é: fundamentalmente serve para encher chouriços.

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  11. Caro Ludwig Krippahl,

    Não tem que agradecer, e não pense que o que eu escrevi - desculpe lá os litros de tinta em excesso - são provenientes de um leitor incondicional, quando o oiço falar de Copyright até se me eriçam os pelos das constas, mas mesmo nesse tema vejo que é honesto (mas errado), nem sempre se pode estar certo e você não se escusa ao confronto, o formato do seu blogue, sem retroacção perdia a sua coluna vertebral. Desculpe lá alguns erros ortográficos no texto anterior.

    Fica ainda por referir algo que já ouvi mais do que uma vez. Não será que esse pessoal, que espuma pela boca quando ouve falar em ciência, não terá inveja de não dominar a área? É que progressivamente a ciência vem ocupando o lugar das "Humanidades". Hoje quando se fala num génio, INVARIAVELMENTE salta à mente um cientista cabeludo, ou mesmo o Einstein, e não num homem das letras. Eu acho que a tese de dor-de-cotovelo pode ter pernas para andar.

    A Zazie, a meu ver (que me perdoe a sua esposa), tem o fraquinho por si:)

    P.S.: sabe como se aterroriza (de morte) um Dragão? Com a ameaça de um confronto de ideias em formato de debate directo, livre e sem censura. Só com a ideia, sairá a guinchar dali para fora. Ou então, tortura-lo obrigando-o a ser honesto.

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  12. Abobrinha,

    Mesmo um semanário desactualiza-se rapidamente. É claro que há aquelas reportagens de investigação aprofundadas que são interessantes mesmo anos depois e que têm valor histórico até, mas isso já se desvia do jornalismo dos mass media.

    Quanto à ciência, 99.9% é encher chouriços mas alguém tem que os encher. Não é desnecessário; é trabalho que tem que ser feito, porque sem dados não vamos a lado nenhum.

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  13. Caro Siegfried,

    «quando o oiço falar de Copyright até se me eriçam os pelos»

    Então venham de lá essas críticas :)

    Mas note que eu uso o termo Inglês porque me refiro especificamente ao "direito" de proibir os outros de reproduzir a informação. Não inclui qualquer forma de regulação de actividades comerciais e não exclui os direitos morais do autor de ser reconhecido, não ser plagiado, etc. Muita da oposição que encontro à minha opinião vem deste mal-entendido.

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  14. "Mas penso que em parte isso tem a ver com a possibilidade de crítica, e é possível que com os blogs e afins o jornalismo de treta se torne mais difícil".

    Mano, estava tentada a dizer "Deus te ouça meu filho" :-)

    Mas o jornalismo é muito mais do que vender a notícia fresca, acho que não te preciso de explicar isso. De resto, as possibilidades que existem hoje de encontrar os produtos jornalísticos arquivados na net, o prazo de validade do que se escreve ganhou «nova vida».

    Olha, uma coisa que o jornalismo e a ciência (deviam ter) têm em comum:
    "Muito do meu trabalho é tentar explicar de forma clara coisas que podem baralhar se forem mal explicadas".
    Beijos
    Cristy

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  15. Cristy,

    Mas o jornalismo é muito mais do que vender a notícia fresca»

    Muito mais no sentido de ser mais importante essa parte ou muito mais no sentido de perfazer a maior parte do volume de negócio? Estou de acordo se for no primeiro sentido, mas não me parece se for no segundo...

    «De resto, as possibilidades que existem hoje de encontrar os produtos jornalísticos arquivados na net, o prazo de validade do que se escreve ganhou «nova vida».»

    Iso pode ser um factor importante, uma forma de "selecção natural", para melhorar a qualidade.

    Quanto a explicar de forma clara, devia ser em tudo. Até quando se fala dde cerveja

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  16. Mano,
    Concordo com a Abobrinha no que diz sobre o jornalismo. O enquadramento (correcto) da notícia é tão importante como a notícia em si. A escolha da notícia mediante a relevância social, política ou económica, também. O aprofundamento da notícia, idem.
    Há outro aspecto que é bom não negligenciar: informação criteriosa e de qualidade é um contributo para a democracia e para a qualidade de vida. Essa não pode (ainda?)ser dada pelos blogues.
    Quanto ao "plim-plim" - há alguma profissão que não tenha essa vertente, excepto para os que ganharam o euromilhões - e mesmo assim ...?
    E agora tenho mesmo que ir trabalhar, porque me esqueci de jogar no euromilhões :-).
    Cristy

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  17. Cristy e Abobrinha,

    Eu acho que estamos a falar de coisas diferentes. Penso que estamos de acordo quanto à distinção entre bom jornalismo e mau jornalismo, mas não é esse o problema.

    A diferença mais evidente entre publicações científicas e jornais é que as últimas são seleccionadas por editores, rapidamente, sem terem sempre conhecimento adequado da matéria e com olho no número de vendas do qual depende o seu emprego.

    Cada publicação científica é aprovada por vários reviewers voluntários que não ganham nada em aprovar a publicação e que são escolhidos entre os peritos na àrea. Não é um método infalível, e há bons exemplos das falhas. Mas é uma filosofia de publicação muito diferente e que tende a filtrar os piores.

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  18. Mano,
    só concordo parcialmente. Os jornais de referência sérios fazem tanta atenção ao que publicam como os científicos. Embora, evidentemente, também aqui os erros sejam inevitáveis. Assim como não é verdade que as publicações científicas não estejam de olho no dinheiro. Muitas são subsidiadas ou financiadas externamente, o que já à partida implica uma influência nas decisões editoriais, até pela simples necessidade de manter satisfeito o financiador. Quanto aos voluntários de que falas, também existem nos mass media portugueses, chamam-se estagiários ;-)
    Cristy

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  19. Ludwig

    Não é bem assim: o bom jornalismo tanto pode ser notícia fresquinha ou análise aprofundada. O critério para ser bom jornalismo: ser rigoroso, imparcial e ver todos os lados. Se ser rigoroso é relativamente fácil, imparcial ninguém é e ver todos os lados é logisticamente impossível.

    Não ser imparcial não é o mesmo que um jornalista na guerra da Jugoslávia dizer "eu não sei todos os lados da guerra. O que eu sei é que Sérvios mataram Croatas (ou outra mortandade qualquer) e é isso que eu noticio e é isso que me interessa ". Fora a falta de rigor no que eu disse, o que quero dizer é que ele só via o lado em que estava e esquecia-se que uma guerra tem NO MÍNIMO dois lados. Era narcisismo puro e burrice absoluta tomar a parte pelo todo. Resumidamente, mau jornalismo.

    As publicações científicas também não são o antro de amadorismo e amor à camisola que contas. Nem a revisão de artigos é assim tão garantia de qualidade e relevância de conteúdos. A revisão pode considerar-se paga pela Faculdade que emprega o funcionário. Faz parte do salário. E é um acordo de cavalheiros: uma pessoa pode recusar-se a rever um artigo, mas isso pode ter mais tarde consequências no que diz respeito à aceitação de manuscritos desse autor futuramente.

    Ou seja, tudo tem a sua lógica e vai funcionando. No caso das declarações do José Mattoso e do Mariano Gago que referi, a qualidade e quantidade de publicações e citações, assim como o número de teses são medidas OBJECTIVAS de quanto e o que se produz num departamento. O que pode ser também manipulado. Nas Ciências Sociais (algumas) possivelmente esse tipo de indicadores nem serão adequados, pelo que poderá ser necessário escolher outros. Mas não me lixem: se um tipo está a aquecer a cadeira e a coçar os ditos ano após ano, quer como catedrático quer como assistente, então algo de errado se passa.

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  20. Cristy

    Em Ciência não há voluntários. Há escravos. A esses chama-se bolseiros.

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  21. E o pior é que estes escravos muitas vezes não são amados pelos patrões, ao contrário do que diz a Bíblia.

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  22. Sgt.

    Mas os servos são submissos ao seu amo, como manda a Bíblia (diz o João Vasco)! Mesmo porque quando não são, por norma deixam de ser servos... 50% de taxa de cumprimento não é assim mau! Já dá metade da eternidade ;-)

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