Direitos e nem tanto.
Num post intitulado «Não somos escravos de ninguém»* o Ricardo Pinho escreve que eu sou contra os direitos de autor «porque não é possível dizer respeitar os direitos de autor, quando sendo os direitos de autor morais e patrimonais, se o Ludwig não reconhece as suas características. Portanto deve estar a chamar «direitos de autor» a outra coisa qualquer.»(1) Tem alguma razão.
A Constituição dá vários exemplos de direitos. À integridade moral, a não ser torturado, à identidade, ao desenvolvimento, à privacidade. Uma característica saliente destes direitos é que não se pode vendê-los ou trocá-los. São direitos, não são mercadoria. Infelizmente, também chamamos “direitos” a uma coisa diferente. Posso comprar à câmara municipal o “direito” de conduzir um táxi ou de abrir um bar na praia. E para ter o “direito” de vender discos da Amália tenho que pagar uma licença a alguém. Não me interessa a papelada necessária para vender livros ou abrir uma pastelaria nem se é preciso pagar ao Estado, à SPA ou ao Ricardo. Mas importa que o comércio de licenças não viole direitos.
Por exemplo, eu defendo que o autor tem o direito de divulgar a sua obra como bem entender. Um direito mesmo, como o direito de votar, de escolher a sua religião ou de não ser torturado. Por isso deve ser nula qualquer clausula contratual que retire este direito ao autor, tal como se o contrato o obrigasse a converter-se ao Judaísmo ou a votar sempre no PSD. O copyright como o temos é uma violação deste direito do autor, tal como permitir a venda de votos violaria o direito de voto. Por isso aceito uma lei que regule o comércio obrigando o vendedor a pagar ao autor mas rejeito qualquer lei que permita ao vendedor comprar “direitos” exclusivos violando os direitos do autor.
Também me preocupa a violação dos direitos de terceiros. A venda em segunda mão, os gravadores de cassetes, as licenças de software, o «buraco analógico», que soa mal e é ainda pior (2), e os esforços para cortar o acesso a quem partilhar certos ficheiros revelam uma mudança de mentalidade no sentido de favorecer os interesses económicos em detrimento dos direitos pessoais. Em parte pelo poder político dos distribuidores mas também pela confusão entre o licenciamento e o direito à propriedade. O Ricardo escreve:
«Os direitos de autor não servem para proibir mais do que o direito à propriedade privada serve para eu só deixar entrar em minha casa quem eu autorizar. Ou vender a casa. Ou alugar a casa.»
Isto confunde o direito com a propriedade. O direito de quem faz omeletes de ser dono das omeletes que fez é um direito igual para todos e ninguém pode ser privado dele. Mas, por isso, a propriedade tem que se restringir a objectos específicos. O Ricardo tem a omelete dele e eu tenho a minha. Não é direito à propriedade o Ricardo ser dono da categoria abstracta “omelete” e mais ninguém poder juntar ovos na frigideira. Isso é dar exclusivamente ao Ricardo um direito que devia ser de todos.
Eu reconheço o direito à propriedade. O Ricardo tem o direito de ter o computador dele e os CDs dele, e eu o direito de ter os meus. O Ricardo tem o direito de ser dono daquilo que cria, seja omeletes ou filmes, e eu daquilo que eu crio. Mas o que o Ricardo exige é algo muito diferente. Ele quer o direito de restringir as sequências de bits no meu computador e nos computadores de todas as pessoas do mundo. Isso não é direito à propriedade. Isso ou é insanidade ou é abuso.
Para concluir num tom mais leve, quero agradecer e retribuir o elogio do Ricardo, segundo o qual sou «um argumentador com graça». Também me fartei de rir quando o Ricardo escreveu, naquele tom sério do bom humorista, que
«Passados 50 anos após a morte do autor, as obram passam a domínio público. É tempo para o autor e os seus herdeiros serem recompensados pelo seu trabalho.»
O direito de ser recompensado depois de morto. Se calhar esta discussão é tão difícil porque, na verdade, o copyright é uma fé religiosa...
*O título alude à construção das pirâmides, um exemplo que eu dei de uma obra que exigiu o contributo de muita gente e que já não se faz. Em Hollywood basta meia dúzia de figurantes e um gordo de chicote para guardar milhares de escravos munidos de ferramentas para partir pedra, mas os historiadores pensam que no antigo Egipto a realidade ia dificultar esta solução. O consenso é que as pirâmides foram construídas por trabalhadores remunerados. Daí a minha escolha do exemplo e mais um infeliz mal-entendido.
1- Ricardo Pinho, 12-3-08, Não somos escravos de ninguém
2- Eric Bangeman, 18-12-05, "Analog hole" legislation introduced
Arre, homem! :-) E continuas a dar-lhe na sequência de bits.
ResponderEliminarOi Ricardo, e bem vindo :)
ResponderEliminarSim. O problema não são os filmes nem a música, que não consegues enfiar imagens e sons na internet. A única coisa que se troca na 'net são sequências de bits. Tudo o resto é feito em casa com monitores, colunas ou a cantar no duche.
Caro Ludi
ResponderEliminarSe me permites, meto aqui uma colherada. Porque no meio de tantas asneiras, dizes coisas acertadas. Eis uma delas: a tua crítica à cedência absoluta de direitos dos criadores às empresas. Isto devia ser proibido por lei, tal como é proibido por lei a escravatura voluntária. Aqui tens toda a razão.
Mas o que defendes e bem é incoerente com o direito que tu julgas absoluto de as pessoas copiarem o que o criador fez sem lhe pagarem, contra a vontade dele. Pois trata-se exactamente do mesmo tipo de situação. Nada pode haver de errado numa empresa ficar com os direitos absolutos do que eu crio se nada há de errado em um milhão de pessoas poderem copiar a minha criação contra a minha vontade sem me pagar. As duas coisas são uma só e qualquer uma delas só tem interesse por uma razão muito pragmática: o criador tem de ser pago para poder viver da sua criação, merece ser pago, e se as pessoas que usufruem do que ele criou não lhe pagam é injusto que outras pessoas paguem, tal como é injusto que apenas algumas das que usufruem do que ele criou lhe paguem.
Isto é claro como água, mas como a tua posição é claramente religiosa, já sei que me vais arrear com força! Dou-te esse direito, mas nem penses que te pago! :-)
Desidério,
ResponderEliminareu vou na rua e dou um pulinho estúpido.
fui a primeira pessoa de sempre a dar um pulinho daquela maneira, houve mais gente que viu e começou também a dar pulinhos daquela maneira.
Fui eu que criei, que direito têm as pessoas de me copiar sem me pagar, se me der na gana que quero que me paguem por aquele pulinho?
PS - isto não é uma história verídica ...
ardoRic,
ResponderEliminar(ainda bem que assinas assim, para não confundir com o Ricardo :)
O pulinho pode ser inventado, mas a realidade imita bem a fantasia. Vê aqui
Desidério,
ResponderEliminar«Mas o que defendes e bem é incoerente com o direito que tu julgas absoluto de as pessoas copiarem o que o criador fez sem lhe pagarem,»
Não é um direito absoluto, nem precisa ser. São direitos relativos.
Considera: de um lado o meu direito de viver do licenciamento da omolete de feijão e iogurte de banana que eu acabei de inventar. De outro lado o teu direito de juntar ovos, feijão e iogurte numa frigideira sempre que te der na cabeça. O teu direito não precisa ser absoluto para se sobrepor ao meu.
O que eu proponho é que viva da criação da sua arte todo e qualquer artista a quem haja suficientes pessoas dispostas a pagar por esse trabalho. O artista que não atinja esse mínimo terá que viver de outra coisa.
Desta maneira escusa-se de policiar os ficheiros, restringir bytes e operações algébricas, ninguém se apropria das obras dos autores, e não precisamos de um Desidério a decidir que um poema foleiro merece protecção mas a minha espantosa omolete é domínio público. Será o público a decidir se vale a pena pagar a um tipo para que seja artista.
É claro, como diz o João Vasco, nem todos vão conseguir. Mas a ideia não é que qualquer bimbo que saiba fazer um dó maior seja estrela de rock. Se fosse assim também eu.
acho especial piada ao "citing two earlier patents on swings" :)
ResponderEliminarLudwig e ardoRic
ResponderEliminarHá muitos anos uma fulana processou a Madonna porque os movimentos de dança do "like a virgin" (se não me falha a memória) eram alegadamente cópias de movimentos dela. Não sei em que é que isso ficou, o que possivelmente quer dizer que não ficou em nada por ser falso. E se fosse verdadeiro? Ela não patenteou os movimentos de dança!
Já agora, o que aconteceria se alguém fizesse a palermice pegada de copiar os meus textos e registá-los? Isso torná-los-ia propriedade dessa pessoa e eu teria que pagar uma indemnização por os ter na net como meus, apesar de ter testemunhas que os tinha publicado antes?
Isto sim, são as verdadeiras falhas de patentes e direitos de autor.
as patentes só atrapalham...
ResponderEliminarPelo (pouco) que sei das patentes, para uma patente ser aceite não podes ter publicado nada sobre o assunto.
Está-se, portanto, a atrasar a divulgação da informação, às vezes por tempo indefinido.
As patentes são treta.
Bell é que a soube bem... Mas isto não muda a minha opinião, ó Tretas*
ResponderEliminar*Não estou a "entrar" com o Ludwig, mas sim com o "Anónimo"8)
As patentes são bastante diferentes do copyright.
ResponderEliminarPrimeiro, cobrem coisas diferentes. O copyright (em principio) não cobre processos e a patente não cobre livros e danças.
Para ter uma patente é preciso demonstrar originalidade e utilidade, para ter copyright basta ser cantor pimba. E a patente só é válida onde é registada, e registar uma patente mundial sai caro.
Além disso quando se regista a patente a informação passa a domínio público. É esse o preço da protecção conferida. O detentor da patente fica com certos privilégios de aplicação mas a inovação em si fica ao alcance de todos. O copyright controla a informação em si.
Finalmente, a norma na legislação (tanto quanto conheço) é que a violação de patentes dá direito a exigir indemnização em função dos prejuizos demonstrados. A violação de copyright dá azo a multas punitivas e coisas absurdas como ter que pagar 10 mil dólares por cada música partilhada quando os ficheiros valem um dólar comprados legalmente.
Posto isto, em muitos casos as patentes são uma porcaria também. No software, na biotecnologia, etc. O que fazem é dar todo o poder a quem tem mais advogados e atravancar a vida a quem quer inovar.
Mas pela sua natureza de regulação comercial e de incentivo à divulgação de certos processos que de outra forma ficariam guardados como segredo industrial penso que pode ter algumas aplicações razoáveis (talvez na industria farmacêutica, por exemplo).
O copyright, se não for restrito estritamente à regulação comercial, não tem ponta por onde se pegue.