Propriedade estranha.
Apontaram-me hoje para dois artigos de opinião no LA Times que mostram alguns dos problemas da propriedade intelectual. Eu tenho um CD que já não quero e conheço alguém interessado em comprar-mo, mas como o preço que eu peço não lhe agrada, o meu comprador decide copiá-lo em vez de o comprar. A lei condena mas é difícil ver porquê. O raciocínio é tortuoso mesmo sem sair do ponto de partida.
A indústria discográfica diz que copiar é errado porque é roubar, o que é um disparate, como explica Jon Healey (1). A informação no CD é um bem inesgotável e pode ser distribuída sem roubar nada a ninguém. Então copiar deve ser errado porque priva alguém de uma venda. Também faz pouco sentido porque privar terceiros de uma venda oferecendo uma transacção mais atraente é a base da nossa economia. Por si só não pode ser errado. Então deve ser errado neste caso porque permite que alguém goze a música sem recompensar o criador. Mas isto implica ser errado emprestar o CD, tocá-lo ao pé dos amigos ou comprá-lo em segunda mão. Ah, mas isso é diferente. Nesses casos não se faz uma cópia do CD, mas neste caso é errado porque se fez uma cópia. Ficamos assim a saber que copiar o CD é errado porque é copiar o CD.
Apesar de circular e inútil, este argumento é persuasivo pela sensação que tem que haver algum mal em copiar. Mesmo quando não se sabe o quê. Mesmo quando a venda perdida é em segunda mão e o autor não receba um cêntimo de qualquer maneira. A sensação é que a música é propriedade do autor e isto viola os seus direitos de proprietário. Mas o mal aqui não está na cópia. Está nesta noção de ideias como propriedade.
Dallas Weaver escreve que esta estranha propriedade não tem custos nem paga taxas ou impostos (2). A lei diz que a minha casa é propriedade privada mas quem a protege somos principalmente nós que aqui vivemos. A manutenção, a porta trancada, não abrir a porta a estranhos e assim por diante. Os meus livros e o computador tambem estão protegidos pela lei mas, principalmente, estão protegidos por estar aqui em casa com a porta da rua fechada. Além disso pago impostos quando adquiro bens materiais e pago impostos pela casa e pelo carro.
A “propriedade” intelectual não tem custos. Não tem manutenção, não paga impostos e até o dever de a proteger recai sobre a sociedade em vez de sobre o “proprietário”. Se eu deixar os livros na rua e ficar sem eles a polícia não vai fazer muito para os reaver. Mas quem vende CDs ao público tem polícia anti-cópia paga pelos impostos dos outros.
O resultado é um espólio enorme de obras inacessíveis porque os gestores de direitos não lucram com a venda de cópias mas também não querem ceder “propriedade” ao domínio público para permitir a distribuição gratuita. Na investigação científica ficam muitos resultados enterrados em publicações suficientemente antigas para não terem sido disponibilizadas electronicamente mas ainda a décadas de ser legal digitalizá-las e torná-las acessíveis aos motores de pesquisa.
Weaver propõe resolver este problema com um imposto de copyright. Quem quiser manter direitos exclusivos sobre uma obra tem que pagar. A proposta tem o mérito de não mexer muito na legislação, sendo a curto prazo mais viável que uma restruturação profunda. E resolve o problema das obras atoladas porque assim que deixam de dar lucro há um incentivo para as colocar no domínio público. Mas é apenas um remendo porque o problema principal é a própria propriedade intelectual.
Antigamente a distribuição dependia do fabrico de cópias com custos significativos. A exclusividade de direitos incidia sobre esse bem escasso que são as formas materiais de transmitir a informação, como livros, discos, filme, etc. Hoje a distribuição é gratuita e por meio de descrições. Um ficheiro mp3 não é uma cópia da música mas uma descrição numérica de um processo que pode gerar a música. Estas descrições são abstractas, arbitrárias e abundantes. Não faz sentido licenciar o direito de descrever coisas nem há vantagem em ter monopólios de distribuição sobre algo que não tem custos. A solução a longo prazo é substituir o modelo dos donos das obras por um modelo de licenciamento comercial para poder incentivar a criatividade sem entupir a distribuição nem atrasar a inovação.
1- Jon Healey, 18-2-08, File ‘sharing’ or ‘stealing’?
2- Dallas Weaver, 20-2-08, Copyright this