segunda-feira, novembro 26, 2007

Quantas realidades?

O leitor A. J. Faria exortou recentemente: «Aceitemos as realidades como são»(1). E no seu blog, afirmou que

«Há mais mundo para além do palpável, o transcendente existe, e não existe ciência humana que possa medir a sua profundeza.
Há realidades que a ciência nunca poderá contestar, pelo simples facto de que a sua função não é essa.»


A ideia de haver várias realidades é incoerente. A realidade é simplesmente o conjunto de tudo o que é real, por isso não pode haver mais que uma. Mas vou interpretar a afirmação como referindo aspectos da realidade que estão para além da possibilidade de observação. É este o conjunto (hipotético) de entidades ou acontecimentos que a ciência humana nunca poderá medir ou contestar.

A ciência cria modelos da realidade e testa estes modelos confrontando-os com observações. Por isso aquilo que está além da observação está além da ciência. Mas é preciso ser inclusivo nisto da «observação», porque mesmo uma observação muito indirecta já traz qualquer fenómeno para o âmbito da ciência.

Não conseguimos observar electrões directamente. Apenas os podemos inferir como explicação para o comportamento dos detectores, circuitos electrónicos, átomos e moléculas, etc. Mesmo que Deus fosse tão fugidio como um electrão devía ser possível inferir a sua existência observando os efeitos das suas acções. Era isso que se pensava antes, mas a crença religiosa mais esclarecida já não defende essa posição. Defende que Deus é «transcendente», totalmente para além do que podemos observar.

O problema então é como saber que existe tal coisa. Se há «outras realidades», ou aspectos absolutamente insondáveis desta realidade, então nunca o saberemos. Qualquer coisa que se diga acerca disso será pura especulação, se acertar será por mero acaso, e não faz qualquer diferença porque nunca vamos descobrir se acertámos ou não.

Não sei se há coisas que a ciência nunca descobrirá. Pode haver. Mas é treta que saibam que coisas são essas. Não há maneira de o saber. Podem especular, podem inventar e podem acreditar com a força que quiserem. Mas não podem saber, porque se pudessem também a ciência podia.

1- Eles falam, falam, falam...
2- A.J.Faria, 18-11-07, Realidades diversas...

6 comentários:

  1. É aceitável o que diz A. J. Faria.
    O pensamento religioso - e não parece contestável que existe um pensamento religioso - é, ou pelo menos tenta ser, um pensamento lógico. O seu fundamento é a tradição milenar do exercício do poder autocrático e centralizado, essencial para a sobrevivência nómada. O temor é aqui o elemento base de todas as emoções e o pensamento fundamenta-se exclusivamente nelas.
    O pensamento científico enquadra-se no processo de sedentarização e na inédita segurança que gerou, deixando ao homem, por momentos, a hipótese de se sentir indivíduo. Por momentos houve hipótese de contestar a tradição e conseguir seguir um caminho sem ela. O pensamento científico é uma atitude individual, que, sem a pressão do temor, permite ao homem, por momentos, avaliar a realidade sem a pressão emocional e ter como ideal a recusa do não demonstrável.
    Parece-me bastante claro que não existe possibilidade de diálogo entre estes dois mundos. O acesso à liberdade de pensamento, a possibilidade de recusa da hierarquia e da tradição, o prazer de contrariar as ilusões dos sentidos, permanecem aterradores para os rebanhos que ainda teimam na metáfora da travessia do deserto. O pensamento científico procura os limites até onde pode ir a liberdade. O pensamento religioso delimita à partida o estreito caminho da vida. O primeiro quer o infinito aqui, o segundo prepara-se para ele depois.
    Curiosamente, não me parece, até pelas evidências da história, que a proposta científica se possa alargar a mais do que uns tantos. É um caminho difícil, exigente para quem o segue, continuamente sujeito às 'evidências' incontornáveis da superstição e ao seu estruturado poder. O pensamento científico não está preparado para o poder, não o procura e não saberia o que fazer com ele. Ao contrário, o pensamento religioso é a própria formulação do poder, que se alivia através da soberba delegação de uma entidade suprema.
    Hoje o pensamento religioso sabe que nada tem a temer do pensamento científico. Há muito tempo que o domina através do 'pensamento' económico...

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  2. « é, ou pelo menos tenta ser, um pensamento lógico.»

    Parece-me que o mistério da santíssima trindade é um exemplo eloquoente de como essa afirmação é falsa.
    Mas concordo que tenta parecer lógico.



    «Curiosamente, não me parece, até pelas evidências da história, que a proposta científica se possa alargar a mais do que uns tantos.»

    Às vezes sinto esse receio. Infelizmente há muita coisa que mostra que esse receio é razoável.


    «Há muito tempo que o domina através do 'pensamento' económico...»

    Hum... Não sei se estou de acordo. Mas isto só por si dava para um debate interminável. E há algo de verdade nesta afirmação.


    À excepção destas passagens que destaquei, concordo com a generalidade do comentário, que me parece perpicaz e sensato.

    O texto do Ludwig está como o costume :)

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  3. Caro Artur Torrado,

    Gostei muito da sua explicação, e, na parte da economia, creio ter sido 100% certeira. Por esse mesmo motivo tenho apelidado a economia de pseudo-ciência (sem entrar pelas parvoices associadas ao pseudo). É a unica disciplina que pretende ser ciência, mas, só consegue observar, ignorando factores para pseudo isolar fenómenos que depois pretende explicar, e que quando contrariados, tratam de fazer a ginastica necessária para dar a volta à questão, mesmo entrando em contradição com o que afirmava anteriormente. Esta atitude é tipica de quem quer o poder, e nesse aspecto, a economia tem demasiado de "religião".

    A perspectiva de dominio dos povos, associada à religião, é que me leva a discordar de uma coisa no que afirmou. A religião pretende interferir no processo cientifico, pois a expressão de liberdade associada à ciência enfraquece, e muito, a posição de poder das religiões. Por isso é que muitos religiosos, e sobretudo os criacionistas ultimamente, pretendem imiscuir-se nos dominios da ciência. Veja-se o fervor com que insistem em repetir baboseiras, que são todas contrariadas por especialistas, sem margem para dúvidas, mas, que para quem não seja especialista, ficariam sem resposta, e esses senhores a cantar de galo, como se tivesse tido a maior das vitórias. Inventar e deturpar é fácil com informação parcial, que é a especialidade dessa gente, e para gente menos preparada, isso pode parecer sabedoria, mas, é apenas manipulação, e da manipulação nasce o poder.

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  4. Artur,

    «É aceitável o que diz A. J. Faria.
    O pensamento religioso - e não parece contestável que existe um pensamento religioso - é, ou pelo menos tenta ser, um pensamento lógico.»


    De acordo. E concordo que haja muitas formas de pensamento. O meu problema é confundirem o pensamento com a realidade. O que o A.J.Faria afirma não é apenas que há pessoas que acreditam em certas coisas, mas que essas coisas são «realidades» para além da nossa. Ora a essas «realidades» penso que é mais correcto chamar fantasia ou, no mínimo, pura especulação.

    João e Artur,

    Eu sou mais optimista quanto à ciência alargar a visão a muitas pessoas. Vejam que a maioria das pessoas nas sociedades industrializadas já adoptou esta posição de encarar as crenças religiosas (ou a falta delas) como uma opção pessoal e não como algo que é verdade ou mentira. Penso que nisto o progresso científico teve um papel muito importante por obrigar as religiões a tornar-se meramente «metafísicas» (o que eles chamam metafísica, que não é bem metafísica...)

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  5. Artur Torrado

    "Curiosamente, não me parece, até pelas evidências da história, que a proposta científica se possa alargar a mais do que uns tantos."


    Será atrevimento da minha parte perguntar-lhe se estará incluído nesses "tantos"...?
    Pergunta desnecessária, obviamente...
    E os restantes que não entram nesses "tantos" conforme refere,no qual se incluem pessoas das mais variadas áreas da sociedade, desde a ciência à cultura,até ao simples operário ou agricultor, como serão considerados ou denominados?

    "O temor é aqui o elemento base de todas as emoções"

    O crente que tenha uma base sólida na sua formação religiosa, de certeza que não possui o temor como sustentáculo na sua relação com Deus.
    Torna-se abusivo extrapolar determinadas ideias formatadas de quem não vive a dimensão religiosa, e com isso criar uma imagem completamente deturpada do verdadeiro crente.

    Cump,

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  6. A. J. Faria,
    eu sei, por que não estou dentro da dimensão religiosa, que não consigo alcançar a lógica do pensamento religioso. Por isso, pelo menos naquilo que me é possível, observo o fenómeno religioso tão de fora quanto ele me deixa. E posso dizer-lhe que não é fácil. Todas as referências da nossa sociedade - pelo menos dos que, como eu, não nasceram em berço de ouro - estão mergulhadas na obscuridade religiosa. Levei anos a tentar livrar-me da ganga cultural do catolicismo. E se quer que lhe diga, nesta luta pela lucidez, parte-se muito de trás em relação aos que nascem já de olhos abertos. É difícil conseguir ver, num lugar onde a cegueira é considerada um dom. Mas, evidentemente, este é o meu ponto de vista.
    Farei eu parte desses uns tantos? Provavelmente não. Se fizesse talvez não estivesse aqui a discutir este problema. Mas confesso que gosto dessas pessoas que passam bem sem a sombra de um amigo poderoso. Porque é estranho o seu discurso: refere-se aos "tantos" como se fossem abençoados quando apenas os referi como diferentes... Eu seria arrogante e presunçoso era se, admitindo-me crente, fizesse questão de pertencer aos eleitos de Deus.


    António,
    o meu 'pensamento económico' tinha esse sentido de que fala e ao mesmo tempo o equivalente ao do 'carro económico' cujo significado é 'gastar pouco'. :)
    Quanto ao uso da ficção Divina como forma de domínio dos povos, é tão flagrante que se existisse Deus ele já cá teria vindo dizer que não tinha nada a ver com isso.


    João,
    concordo consigo que a questão do 'pensamento económico', só por si dava um debate interminável, principalmente de fosse com os nossos amigos do 'pensamento religioso'.


    Ludwig,
    existe no marketing um curioso conceito chamado 'qualidade percebida': não interessa a qualidade de um produto mas a maneira como o consumidor a vê. Do meu ponto de vista é um conceito suficiente para distinguir entre ciência e religião. A ciência preocupa-se e tem como finalidade encontrar as 'qualidades' das coisas. À religião interessa apenas a 'percepção' das coisas. Para a ciência a realidade é o objectivo e alegra-se sempre que dá uma passo na sua compreensão. Para a religião a realidade é um obstáculo transitório anterior à finalidade transcendente. Não é fácil falar com pessoas que têm um pé cá e outro lá.
    Quanto à ciência alargar a visão a muitas pessoas eu também deveria ser optimista, porque estamos num processo evolutivo, e não deveria ser em vão que a matéria ganhou consciência. Mas, tal como Carl Sagan tinha aquela ideia de que poderia haver muitos planetas habitados por consciências, ou nenhum, dependendo da sua capacidade de auto-destruição, dá para perceber que os criacionistas se não conseguirem 'provar' que a evolução é falsa, tudo farão para que ela pare...
    (Desculpe lá este meu abuso do seu espaço.)vodep

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