domingo, setembro 30, 2007

Treta da Semana: Auras.

Há quem acredite que todos os seres vivos estão rodeados por um halo de radiação colorida que indica a personalidade, estado de espírito ou saúde. Alegam que só as crianças ou alguns adultos especialmente dotados o podem ver. Alguns fotografam-no, outros usam-no para diagnosticar doenças. Chamam-lhe aura. Eu chamo-lhe treta.

O impulsionador moderno desta crença foi Semyon Kirilian, que redescobriu a técnica do padre Landell de Moura de fotografar objectos colocando-os directamente sobre uma chapa fotográfica e aplicando uma corrente fraca de alta voltagem (1). Na fotografia vê-se um halo brilhante rodeando o objecto. Fotografam assim a descarga eléctrica e ionização do gás que rodeia o objecto, que é espiritualmente tão significativa como a luz da cozinha.

Uma versão moderna foi desenvolvida por Guy Coggins (2). A Coggins Polaroid Aura Camera 6000 tira uma fotografia enquanto mede a condutibilidade eléctrica da pele do sujeito, que repousa as mãos sobre eléctrodos. Um ecrã de cristais líquidos no aparelho cria uma aura colorida em função do valor de condutibilidade medido e sobrepõe-na à imagem fotografada. Trata-se assim de um método dispendioso de estragar uma fotografia perfeitamente normal.

Mas a maioria dos adeptos prefere usar a intuição e sensibilidade. São dois termos técnicos na gíria da Nova Era. Em linguagem coloquial dir-se-ia «inventam». Em 1990, Loftin testou vários auto-denominados «psíquicos». Num quarto escuro, o vidente teria que dizer se estava a olhar para uma ou duas pessoas, contando as auras que via. Os resultados foram os esperados adivinhando à sorte. Um dos candidatos ao prémio que James Randi oferece a quem demonstrar aptidões sobrenaturais afirmou ser capaz de ver auras. Da audiência, o psíquico escolheu as dez pessoas com a aura mais visível e garantiu que as conseguiria ver por trás de um biombo pela aura que se projectava sobre elas. Colocado o biombo, o psíquico disse ver todas as dez, mas apenas estavam lá quatro (3).

Mas há quem veja auras. Num caso raro de sinestesia, GW via auras coloridas quando via uma pessoa conhecida, ou quando pensava em alguém que conhecia (4). A sinestesia é a associação de percepções que são distintas numa pessoa normal. Um sinesteta pode ter a sensação de cor associada a cada algarismo, ou ver formas quando ouve sons. Neste caso, a sinestesia de GW fazia-a associar a cores as emoções de ver ou recordar-se de um conhecido. Ver auras também pode ser um sintoma de problemas neurológicos mais graves. A quem se vir subitamente com este «dom» recomendo uma consulta de neurologia com urgência.

Em suma, a aura é uma hipótese sem fundamento. Não há evidência de tal campo misterioso, ninguém conseguiu demonstrar que a vê, e não há razão para concluir que existe. As ferormonas que libertamos, a temperatura do corpo e os sons que emitimos dão indícios da nossa personalidade, estado emocional e de saúde. Mas os adeptos da Nova Era querem algo mais misterioso que não parece lá estar nem servir para grande coisa. Se queremos diagnosticar uma infecção medimos a temperatura. Se queremos encontrar sobreviventes nos escombros usamos cães para os farejar. Se queremos detectar a presença de um ladrão em casa escutamos atentamente.

A única utilidade parece ser, como diz Isabel Leal, para «A caracterização do Ser humano segundo a coloração da aura bem como as compatibilidades entre cada cor/aura humana.»(5). Vai de mal a pior. Por hipótese, vamos assumir que vêm em cada pessoa uma cor. Como a cor da pele, vêm a cor da aura também. Então vão classificar cada pessoa pela sua cor e inferindo daí com que cores se pode relacionar? Isto, além de treta, é de muito mau gosto.

1- Wikipedia, Fotografia Kirilian
2- Aura Imaging
3- Joe Nickel, Skeptical Enquirer, Aura Photography: A Candid Shot
4- Skeptical Dictionary, Auras
6- Isabel Leal, Biografia

Evangelho de amor.

O profeta Isaias já tinha anunciado a vinda do Messias. Proviria da cidade de Belém, onde tinha nascido o rei David, e iria chamar-se Emanuel. Emanuel de Belém, Jesus de Nazaré, a correspondência era quase perfeita. E não só nasceu de uma virgem, mas nasceu durante o recenseamento mais estranho de que (não) há registo. Foi nessa altura que os Romanos se lembraram de recensear as pessoas a uma centena de quilómetros do sítio onde viviam. Entupiu as estradas, dificultou o comércio e o movimento das legiões e incomodou até as mulheres no final da gravidez.

Com uma reputação de administradores eficientes, os Romanos ficaram tão envergonhados com esta burrice que a apagaram dos registos. Hoje só um dos evangelhos regista a incompetência burocrática que terá obrigado Maria a ter a criança numa manjedoura.

O miúdo cresceu, impressionou muita gente, transformou água em vinho e reuniu discípulos. Pelo caminho fez algumas inimizades e acabou crucificado pelos Romanos, cumprindo assim a profecia de Isaias. Quase. É que Isaias tinha dito que o Messias traria glória a Israel, subjugaria os seus inimigos e assim. Não tinha dito nada acerca de morrer crucificado.

Mas os discípulos encontraram uma explicação. Sim, o Messias foi apanhado pelos Romanos e morreu. Mas foi de propósito. «A cunning plan», como diria São Baldrick. E ressuscitou. Não era com dois paus e uns pregos que se estragava os planos do Deus omnipotente criador de todo o universo. Na Sua infinita misericórdia, Ele ainda culpava toda a gente pelos pecados dos antepassados até Adão e Eva. Só depois de cumprida a formalidade da crucificação é que Ele poderia salvar quem acreditasse totalmente neste sacrifício.

A ideologia em si já é preocupante. Deus não perdoa se não houver sofrimento. Esta ideia permeia toda a história Cristã. Os autos da fé, as penitências, os mártires, há muitos exemplos de veneração do sofrimento. Até estátuas que choram sangue. Mas mais perturbador é que alguns Cristãos interpretem os evangelhos como sendo uma mensagem de amor. O leitor Pedro Silva escreveu que «a mensagem principal do novo testamento é: “ama os outros como a ti mesmo”».

A mensagem principal do novo testamento é que Jesus morreu pelos nossos pecados. É o que diz credo Católico. É o símbolo do Cristianismo. A mensagem é que só depois de um inocente ter sido humilhado, torturado, e morto de forma cruel é que Deus decidiu perdoar alguns de nós pelo alegados pecados que terão cometido os nossos antepassados antes sequer de saberem o que era o bem e o mal.

O novo testamento ensina a amar o próximo. Amá-lo como Deus amou o Seu filho, deixando-o a morrer na cruz. Amá-lo como os homens amaram o seu Deus, pregando-o lá. Ou amá-lo como Deus ama todas as pessoas que condena ao sofrimento eterno por não acreditarem neste tipo de amor.

sexta-feira, setembro 28, 2007

Não percebe.

Sou muito acusado pelos crentes de não perceber a posição deles. Pois agora acuso eu. Acuso Manuel Clemente, o Bispo do Porto, de não perceber a extinção das capelanias hospitalares. Mas vou mais longe que os crentes. Não só tenho a ousadia de dizer que não percebe como tenho o desplante de explicar porquê. Mais um exemplo de fanatismo ateu. Os crentes preferem ficar-se só pela acusação.

Manuel Clemente escreveu:

«O que está em causa, quando se restringe a proposta religiosa, geral ou específica, no espaço público ou estatal? Pode estar em causa um preconceito de tipo laicista, que fere a liberdade pessoal e contraria a própria laicidade ou secularidade do Estado.»(1).

Seria um atentado à liberdade pessoal proibir a visita dos padres aos doentes que o solicitassem. Mas não se propõe tal disparate. Propõe-se que o estado deixe de pagar o salário de padres Católicos e a manutenção da parafernália religiosa nos hospitais, e que não permita que o espaço hospitalar reservado à prática religiosa de todos os pacientes seja usurpado por uma só denominação (2). A proposta não fere liberdades pessoais. Apenas recusa custear o proselitismo da religião da maioria.

A esta confusão acrescenta outra, alegando que a proposta esquece a natureza cultural da religião:

«Parte do princípio de que a convicção religiosa e a preferência cultural são algo de individual, que cada um resolve por si mesmo. Esquece que, sendo dimensões intrínsecas do ser humano, como toda a história demonstra, são necessariamente inter-pessoais. Esquece que, como facto cultural e social, a religião pode e deve ser reciprocamente proposta, mesmo que não seja acolhida.»

Tem graça que mesmo há pouco chamei a atenção dos meus alunos para evitar esta confusão. É um facto que a religião é mais cultural e social que individual. Mas o que está em causa é um juízo de valor. Está em causa se a religião deve ser uma opção livre do indivíduo ou se deve ser determinada pela sua cultura.

Esta proposta não esquece o poder que a religião tem na nossa cultura e sociedade. Apenas decide em favor da liberdade religiosa do indivíduo, como consagrada na nossa constituição. Não é a cultura religiosa que temos que defender, mas sim o direito de cada um a ter a religião que quiser, e se quiser.

1- Manuel Clemente, Jornal de Notícias, Carta aos capelães hospitalares
2- Associação República e Laicidade,Carta ao Sr. Ministro da Saúde

quinta-feira, setembro 27, 2007

Treta da Semana: Isabel Leal.

«Em busca de respostas a inquietações profundas descobriu o poder de algumas formas de cura alternativas como Reiki, Karuna Reiki, Meditação, Jin Shin Jyutsu, Crystal Healing, A caracterização do Ser humano segundo a coloração da aura bem como as compatibilidades entre cada cor/aura humana.[...] Iniciou os estudos sobre o fenómeno Índigo e Cristal em Portugal e mais recentemente nos EUA. [...] É com base nos estudos que tem desenvolvido que dá apoio a estas crianças e suas famílias numa clinica em Lisboa.[...] »(1)

Este post foi difícil de escrever. Nem sabia para onde me virar. Curas alternativas? Crianças Índigo e Cristal? Caracterizar pela cor-barra-aura*? Decidi dividir isto em várias partes e dedicar este primeiro post à Isabel Leal, que será a minha musa inspiradora nas próximas semanas.

Na sua clínica, a Isabel Leal dá consultas de:

«Acompanhamento de casos que necessitam de melhoria no rendimento escolar, resolução de terrores nocturnos, dificuldades do sono, desequilíbrios alimentares e comportamentais.
Expansão da área criativa e energética.
Consultas de apoio familiar a:
* Crianças Índigo e familiares
* Crianças Cristal e familiares
* Crianças Arco Íris e familiares»
(2)

Se questionam as suas habilitações para resolver os terrores nocturnos e os desequilíbrios alimentares das crianças, fiquem descansados. A Isabel «é licenciada em Gestão e trabalhou por 20 anos em empresas nacionais e multinacionais»(1). E é tão rigorosa no diagnóstico que pede aos pais para trazer «a hora/local de nascimento da criança»(2), porque «É estudante de astrologia, pois acredita que esta ferramenta é bastante útil na definição do perfil da criança»(1).

E vê-se que é escritora. «Convidada de diversos de programas de televisão, rádio e media em geral, leva esta nova experiência a quem lida com crianças no dia a dia procurando dar a mais recente energia de informação e de regeneração a todos os interessados nestas matérias.»(1)

A mais recente energia de informação e regeneração. Não vou comentar, mas queria saborear isto. A mais recente energia de informação e regeneração.

A Isabel Leal, além de terapeuta, dá cursos de Crystal Healing, Reiki, e Karuna Reiki, e é autora de dois livros intitulados As Crianças de um Novo Mundo: os Índigo, e os Cristal. São crianças sobredotadas. As Índigo são capazes de ver espectros de luz. O que dá jeito para não ser cego. As Cristal têm uma energia de grande amplitude espiritual que é fundamental para operar a transição da era de Peixes para a de Aquário (3). Aparentemente, a precessão dos equinócios não é um fenómeno físico. É trabalho infantil. Eu voto que se acabe com isto. É que não compensa o esforço destas crianças só para vermos o Sol a 50,3 segundos de arco da posição que tinha no equinócio do ano anterior. Deixem os miúdos brincar à vontade. Logo se preocupam com a orientação do eixo da Terra quando forem crescidos.

Deixo aqui um muito obrigado à Isabel Leal pela sua extraordinária imaginação. Parece-me que até ao Natal já não vou precisar de procurar temas para esta rubrica.

*A Isabel Leal usa a expressão cor/aura, mas não sei se a barra se faz com um gesto da mão numa curta pausa entre cor e aura ou se é suposto ler a barra. Como neste post não se vê os gestos que faço com a mão (felizmente...) decidi escrever assim.

1- Biografia de Isabel Leal.
2- Consultas
3- Livros Publicados

quarta-feira, setembro 26, 2007

Ética, parte 5: Morte e sofrimento.

Finalmente decidi acabar este post por causa de uma pergunta do Pedro Dias: «Alguém diz que matar é mau só porque Deus diz que é? Ou existem razões apenas humanas ligadas a esse julgamento?» Se alguém diz que é só por causa de Deus, não sei. Mas o Vaticano alega constantemente que a vida humana é sagrada, como se isso resolvesse o problema.

O João Vasco propôs algo diferente: «Então o que é que nos diz que algo é bom ou não? Fundamentalmente a nossa intuição ética, moldada pela nossa cultura e influenciada pelos valores da nossa sociedade.». Sim, isso disse a muita gente que a escravatura era aceitável ou que o marido podia bater na mulher. Mas disse mal. Não é boa ideia guiarmo-nos pelos preconceitos da nossa cultura, sejam religiosos ou não.

O melhor é pô-los de parte e usar como valor fundamental o interesse dos afectados. Em vez de fazer aos outros o que queremos que nos façam a nós, fazer-lhes o que eles preferem. A ética de causar sofrimento é um exemplo fácil.

É mau torturar porque faz sofrer. Não importa se a cultura do torturador diz que é uma coisa boa ou se a cultura de quem assiste diz que é um espectáculo maravilhoso. Nem importa a espécie de quem sofre, ou se o consideram sagrado ou não. A tourada, por exemplo, é um mal em todas as culturas enquanto causar sofrimento ao touro. É o touro o mais lesado com a brincadeira. A cultura não sente, por isso pouco importa.

A ética de matar é mais complicada, e dá origem a alguma confusão. Alguns dirão que não havendo problema em matar o touro para comer também se pode picá-lo com ferros primeiro. Talvez fique mais tenro. Mas também aqui compensa considerar a experiência subjectiva do touro.

Provavelmente, o touro não tem consciência da sua vida como um todo. Não se recorda de quando era novo, não pensa no que vai fazer quando for velho, nem se reconhece como um ser que dura no tempo. Posso estar enganado, mas pelo que sabemos o touro vive cada momento sem uma narrativa que ligue as suas experiências naquilo que nós chamamos vida.

Se assim for, cada episódio tem para o touro qualidades semelhantes às que tem para nós. A dor dói-lhe, o medo assusta-o, e torturar um touro é eticamente equivalente a torturar um ser humano. Mas a vida do touro, para o touro, é muito diferente da vida de um humano para o humano. O humano sente a sua vida toda como um percurso do passado pelo presente e para o futuro, e essa vida como um todo tem um grande valor para si.

Por isso proponho que matar sem sofrimento é aceitável se quem morre é como o touro. Não lhe tiramos nada que ele sinta ser de valor. Mas não é aceitável se quem morre é como o ser humano. Não por ser humano, sagrado, ou pela minha cultura, mas porque para este a vida tem valor como um todo, para além do valor de cada momento. E nesta categoria devíamos incluir os primatas antropóides, os cetáceos, e talvez o elefante ou outros animais cuja neurologia e comportamento sugiram partilhar esta característica.

Parece-me que esta tem sido a direcção do progresso na ética. Largar as regras ad hoc de favorecer os da nossa tribo ou costumes, ou da nossa espécie, ou mesmo os que estão vivos agora, e considerar como valor fundamental a subjectividade do outro. Daquele que afectamos. Mesmo que seja um animal ou gerações futuras que vão levar com os sacos de plástico e outras porcarias que espalhamos hoje por todo o lado.

Infelizmente, os velhos hábitos ainda perduram. Por causa da vida humana ser «sagrada» não se pode criar embriões em laboratório. Como se não ser criado fosse muito melhor que viver como um punhado de células durante uns dias. Por causa da «dignidade» da pessoa querem negar a uma mulher solteira assistência médica para engravidar. Como se nascer sem pai fosse pior que nunca existir. Mas esta tendência para se guiar por abstracções arbitrárias vai gradualmente vai dando lugar a uma ética mais sólida, em que os valores fundamentais são os valores de cada um em vez dos ditames da cultura ou religião.

Episódios anteriores:
1: Subjectividade.
2: Fundamentos.
3: Deus?... Para quê?
4: Apelo à natureza.

terça-feira, setembro 25, 2007

O domínio dos valores.

Historicamente, a teologia era a rainha das ciências. Deus era o objecto mais elevado do conhecimento e, nessa altura, ninguém se atrevia a dizer que a religião não dominava os factos. Mas os tempos mudaram. Sabemos mais, temos melhor tecnologia, e a religião ficou para trás. Por isso agora propõe que se separe os domínios, deixando os factos à ciência e ficando os valores com a religião. Mas nem isso me parece aceitável.

Concordo que a ciência que temos não diz muito acerca dos valores. Diz-nos como as coisas são, mas não diz como deveriam ser. Nem sequer diz o que quer dizer «deve ser». De momento, este é um problema da filosofia. «Deve ser» será uma preferência pessoal? Será o agregado de todas as preferências? Será algo mais estranho, como virtude ou obrigação? Talvez um dia se compreenda o «deve ser» e passe ao domínio da ciência, se houver algum facto acerca de nós que seja um «deve ser». Ou talvez fique para sempre um problema filosófico, sem solução clara mas ainda assim importante porque, no fundo, é o problema de decidir o que importa. Mas nunca será do domínio da religião porque a religião faz batota.

O problema fundamental é que não encontramos nenhum facto que seja um valor por si só. Qualquer que seja o facto pode-se sempre questionar se é relevante ou se não interessa. O machismo e o feminismo, por exemplo, não se distinguem pelos factos que consideram. Ambos reconhecem que a nossa espécie tem dois sexos. Distinguem-se pelo valor que dão a cada facto.

E a religião quer resolver o problema do valor alegando factos: deus aprova ou deus condena. É duplamente irónico. Intrometem-se no domínio que afirmam não ser o seu. A existência e a opinião dos deuses são matéria de facto. E ignoram o problema do valor.

Vamos fingir que existe mesmo um Deus e que Ele se preocupa com os nossos rituais religiosos, franze o sobrolho se cobiçamos a vizinha, chateia-se se usamos preservativos e essas coisas. É duvidoso, o criador de todo o universo a perder tempo com isto. Seria como um parecer do tribunal constitucional acerca do acto reprodutivo da levedura de padeiro. Mas vamos fingir que era assim. A questão de valor que isto levanta é porque raio me hei de ralar com isso. Porque importa o que Deus pensa?

Este é o problema fundamental, e a religião não o resolve. Prometem recompensas e castigos. Mas paraíso, inferno, karma, chamem-lhe o que quiserem, são apenas um negócio. É portar bem para o Pai Natal dar prendinhas. Não tem nada a ver com valores. Apenas diz que dá jeito. O verdadeiro valor, o dever de fazer o que os deuses querem, nunca o justificam. Dizem que é, e pronto.

A religião nunca terá o domínio nem dos factos nem dos valores porque assenta na autoridade. Seja da intuição, da fé, da tradição, do mestre ou do livro sagrado, é sempre uma autoridade se impõe. Mas todo o progresso destes milhares de anos, quer em factos quer em valores, foi pela partilha de ideias em vez da imposição. Foi graças à dúvida como método.

Não é a dúvida enquanto sensação. Para muitos crentes, duvidar é sentir a fé tremer, mas isso é tão útil como um espirro. A dúvida que interessa é pôr de lado a crença e avaliar as alternativas sem ligar ao que acreditamos. Sem ligar a preconceitos. Foi isto que permitiu questionar se a Terra estava no centro do Universo, e que permitiu questionar se a escravatura era aceitável. Quer em factos quer em valores, é o método de ignorar crenças que permite partilhar ideias, exigir justificações, criticá-las e melhorá-las em conjunto. Um esforço muito mais produtivo que aceitar a autoridade do que sentimos, acreditamos ou, pior ainda, do que nos dizem.

segunda-feira, setembro 24, 2007

A propósito...

Muitos bits têm corrido neste blog acerca da ciência e da fé. Discutimos semântica, religião, crença e crendices. Até a Santíssima Trindade, se bem que não tão a sério como alguns queriam (mas mais a sério do que o assunto merece). Mas não há nada como um bom exemplo para aclarar ideias. Na passada sexta-feira, a empresa farmacêutica Merck interrompeu os testes clínicos de uma vacina contra o HIV porque os resultados indicam que a vacina não funciona.

É isto que separa a ciência do resto. Pode-se baralhar o assunto à vontade, mas ao contrário das religiões, crenças, fés, bruxarias, alternativas e afins, em ciência o que não funciona deita-se fora. Imaginem o que seria da astrologia se lhe aplicassem o mesmo critério. Ou da religião, quando admitissem que não é por pedir que os deuses abençoem um casamento que este dura mais tempo.

A notícia no San Francisco Chronicle está aqui. Via Skeptico.

domingo, setembro 23, 2007

NOMA

Non-Overlapping Magisteria foi o termo que Stephen J. Gould cunhou para a separação de domínios entre ciência e fé religiosa. Já Galileu dizia que a religião ensina como ir para o céu e a ciência como o céu funciona. Nesta tradição de separar as águas, a leitora «Abobrinha» comentou :

«Fé e Ciência não são compatíveis nem incompatíveis: são duas esferas que não se intersectam. E acabou!» (1)

Era bom. Como ping-pong e futebol. As regras são diferentes, mas se jogarmos cada um no seu sítio ninguém se chateia. Seria excelente para a ciência que a religião ficasse a brincar no seu canto. Infelizmente, não é viável.

A ciência descreve o que observamos, e é do seu domínio qualquer afirmação que se possa confrontar com observações. Qualquer hipótese testável, como a física, a química e essas coisas que para muitos não dizem nada à fé. Mas para separar a fé disto tudo temos que a restringir ao que nunca pode ser observado. Por mim tudo bem, mas a maioria dos crentes não gosta das consequências.

Por um lado retira à fé qualquer justificação que não seja pessoal e arbitrária. Não se pode fundamentar a fé em testemunhos, milagres ou qualquer observação sem entrar no domínio da ciência porque tudo o que é justificado por observações passadas sujeita-se a ser refutado por observações futuras.

Por outro lado não permite fé em qualquer acontecimento observável. O nascimento virgem, a ressurreição, a própria existência de Jesus são hipóteses que podem ser refutadas por observação. São do domínio da ciência. Os crentes julgam-nas a salvo de refutação por ser difícil saber ao certo o que aconteceu há dois mil anos, mas é uma segurança ilusória. Também se julgava difícil demonstrar que a Terra não é plana, que não é o centro do universo, ou que a humanidade foi criada à parte do resto. Muito que era aceite por fé acabou refutado pelas evidências da ciência. Para não haver conflito nada na fé se pode sujeitar a isto.

Por isso não se consegue evitar o conflito. Nenhum crente quer restringir a sua fé ao que é impossível conhecer, e a certeza absoluta em algo que possa ser investigado mais cedo ou mais tarde entra em conflito com a ciência. Aconteceu ao longo da história, acontece hoje em dia, e continuará a acontecer enquanto a fé não for brincar para outro lado.

Esta não é uma questão meramente metafísica, como comentou o leitor Osvaldo Lucas (1). Nas escolas públicas ensina-se às crianças que a humanidade descende de Adão e Eva, que há dois mil anos um homem era deus, morreu e ressuscitou, e que esse deus criou todo o universo para nós. Recentemente o governo Indiano propôs construir um canal para melhorar a navegação entre a Índia e o Ceilão. O canal iria atravessar uma formação geológica que a religião Hindu diz ser uma estrada construída pelo deus Ram e o seu exército de macacos. Não só o projecto está parado como o governo retirou o relatório que tinha submetido ao tribunal porque os geólogos que o elaboraram diziam tratar-se de uma formação natural e rejeitavam a hipótese de deuses ou macacos (2).

Esferas separadas? Quem me dera. A fé intromete-se em questões empíricas, desde estátuas que choram a crucificados que ressuscitam ao Sol que fica parado a dançar sobre Fátima. Atravanca a educação ensinando disparates e sempre que tem o poder reprime a oposição. A defesa inquestionável de uma hipótese é incompatível com a liberdade de discussão, dúvida, e crítica de que a ciência depende. A única forma de coexistirem é mesmo fechando a fé numa esfera onde não possa e incomodar ninguém. Mas isso os crentes não querem.

E o pior nem é o conflito acerca dos factos. O pior é a ideia que a fé tem tanto domínio sobre os valores como a ciência tem sobre os factos. Como se a incapacidade de descobrir o que é a qualificasse para decidir o que deve ser. Mas isso é treta para outra altura.

1- Comentários a Fé e Ciência.
2- BBC, Report on Hindu god Ram withdrawn.

sexta-feira, setembro 21, 2007

Fé e Ciência.

A fé e a ciência não são compatíveis. Há cientistas com fé, mas fazem ciência numa coisa e têm fé noutra. É como fazer jejum e comer. A mesma pessoa pode fazer ambos, mas são incompatíveis. Não se pode ter fé naquilo que se tenta compreender, e não se pode compreender o que se aceita por fé.

Se formos claros nos termos isto é óbvio. De Agostinho a Kierkegaard que a fé é um compromisso definitivo. Ninguém tem fé se está a contar mudar de ideias. Isso não é fé, é opinião. E compreender é o processo de alterar ideias de forma a que correspondam ao que queremos compreender. Ninguém pode compreender sem mudar alguma ideia.

A ciência é o processo interminável de aperfeiçoar a compreensão. Para fazer ciência é sempre preciso mudar de ideias. Mas ter fé é não mudar aquela ideia. Nunca. E fazer as duas ao mesmo tempo é dar cabo da mioleira porque mais incompatível que isto é impossível.

Infelizmente, o óbvio torna-se obscuro por pequenos mal entendidos. O leitor Tiago Luchini escreveu (1):

«Fé e ciência andam tão juntas que você mesmo chegou a citar o seu processo para considerar algo como "superior".[...]
O processo que utiliza-se para adotar a posicão como sua é a fé em si próprio e na série de artigos científicos.»


O Tiago confunde a fé. Eu não tenho fé em artigos científicos. Eu tenho a opinião que estão correctos até ter indícios em contrário. Como o frigorífico. Todos os dias assumo que está a funcionar, mas se um dia avariar mando arranjá-lo. Não tenho fé no frigorífico porque estou sempre disposto a mudar de opinião. Pela mesma razão, não tenho fé nos artigos científicos. A fé é um compromisso definitivo e o que eu tenho são opiniões condicionadas à informação de que disponho.

E o Tiago confunde a ciência. A ciência não é uma lista de factos em que se acredita. Isso é o catecismo. A ciência é um processo. O conhecimento que produz é útil, mas necessariamente vai mudando ao longo dos tempos. O que persiste na ciência é o método de duvidar de tudo e aproveitar, a cada momento, o que está a aguentar melhor. Isto é o contrário da fé.

E há cientistas com fé. Grande coisa. Não é por um cientista jogar uma futebolada que vamos dizer que ciência e futebol são o mesmo. Não são. Nem de longe. Basta ver o tempo que os telejornais dedicam ao futebol e à ciência para verem como são diferentes.

Finalmente, que a fé é uma forma igualmente legítima de compreender. Nem por isso. O livro com as histórias mais antigas que tiverem em casa é provavelmente a Bíblia ou outra compilação religiosa. É a contribuição da fé para a compreensão do universo. É o que se consegue quando se agarra uma ideia com toda a força. Tudo o resto, a casa, a roupa que vestem, a comida que comem, e até o livro onde essas histórias estão impressas, e todo o conhecimento que temos foi dado pela ciência. Que é o que se consegue quando se agarra a realidade com as ideias.

Adenda: reparei agora pelo Technocrati que o Tiago Luchini já tinha escrito um post com o mesmo título, também sobre este assunto.

Moderação.

Pedem-me mais moderação na critica a certas crenças. Mas não explicam como, nem porquê nem em que aspecto é que eu devia ser mais moderado.

O aspecto íntimo não discuto. Há quem goste de rezar, ir à missa e louvar o senhor. Há quem goste de golfe. Eu gosto de chocolate. Admito interesse em conversar com o Criador do Universo, se existisse tal coisa, mas não me ia dar para ajoelhar, rezar e louvar. Não faz o meu estilo. Mas é uma questão de gosto e não há nada para discutir. Nem sequer posso ser mais moderado. Podia, e devia, ser mais moderado no consumo do chocolate, mas não posso moderar o gosto. Esse é o que é.

O aspecto da crença que discuto é público. Se deus existe, existe para todos, crente ou descrente. Se não existe, não há crença que lhe valha. E qual destas melhor corresponde à realidade é uma questão a investigar. A fé não interessa. Tem que se considerar alternativas, confrontá-las com as evidências, rever as que não são adequadas, e repetir tudo sempre que há dados novos.

E sem moderação. Não queremos um juiz moderadamente imparcial, que julgue metade dos casos de acordo com as provas e metade de acordo com a sua crença que quem tem bigode é culpado. Não queremos um cirurgião moderadamente rigoroso, que metade das vezes corte onde a anatomia indica ser apropriado e outra metade feche os olhos e confie em deus para guiar o bisturi. Se queremos ter uma boa noção da realidade também não podemos ser moderadamente criteriosos. Temos que confrontar as nossas ideias com a realidade como ela é, sem pitadas de fantasia, de li uma história engraçada, nem de ai que bom que era.

Ou talvez queiram que eu seja mais moderado no confronto com quem discorda de mim. Mesmo assim não vejo como. Não devem querer moderação nas vezes que rebento autocarros cheios de gente, atiro aviões contra prédios, queimo pessoas vivas ou as condeno a sofrer para sempre no inferno. É que isso não faço, nem com moderação nem com coisa nenhuma. Também não vou bater à porta das pessoas a vender ateísmo, não distribuo panfletos, e nem sequer uso pontos de exclamação quando escrevo estas coisas. Só respondo a quem me dirige a palavra ou escrevo aqui, onde só vem ler quem quer.

Se não é nada disto que querem quando me pedem moderação só resta uma possibilidade. Querem que me cale.

Azar. Não se pode ter tudo...

quinta-feira, setembro 20, 2007

Boécio, e o três em um.

O Bernardo Motta dedicou-me um post acerca duma que é três das minhas tretas favoritas (1). A doutrina da Santíssima Trindade, segundo a qual Deus é um e não é dois nem quatro mas sim três. Para me ajudar a compreender como o quantificaram, o Bernardo recomendou-me que lesse o De Trinitate de Boécio (2):

«Boécio tem a particularidade de que escreve este curto, mas profundo, tratado sobre a Trindade usando apenas argumentação filosófica. Não se deve adiar a leitura deste texto fundamental. Hoje em dia já não se encontra com tanta frequência esta forma límpida de pensar.»

Confesso que adiei várias vezes a leitura deste texto. Mas agora estou a vigiar um exame e já só cá está um aluno. Vamos lá então ver isso. Assim começa esta argumentação unicamente filosófica:

«Há muitos que usurpam a dignidade da religião cristã, mas a fé que é válida principal e exclusivamente é aquela que, tanto pelo caráter universal de seus preceitos - que dão a medida da autoridade da religião -, quanto pelo seu culto, se espalhou por quase todo o mundo e é chamada católica ou universal. Dessa fé, a sentença da unidade da Trindade é: "O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus". E, portanto, Pai, Filho e Espírito Santo são um deus e não três deuses.»

E um exemplo da forma límpida de pensar:

«Não se pode dizer que Deus se tornou Pai pelo acréscimo de algo; pois Ele nunca começou a ser Pai, já que a produção do Filho pertence à sua própria substância; embora o predicado Pai, enquanto tal seja relativo. E se nos lembramos de todas as proposições feitas sobre Deus na discussão prévia, devemos admitir que Deus Filho procede de Deus Pai e Deus Espírito Santo de ambos e que eles não podem ser espacialmente diferentes por serem incorpóreos.»

Concordo com o Bernardo em tudo. Quase. Excepto que considero o argumento de cariz teológico. E obscuro. E não é fundamental. E, infelizmente, ainda há muito disto hoje em dia. Ah, e não perdem nada se adiarem a sua leitura. Mas, no essencial, estou de acordo com o Bernardo. É realmente um texto.

Boécio diz que Deus é único porque é forma sem matéria, a velha ideia platónica que a nossa maneira de agrupar objectos denota uma essência que existe numa realidade superior. As coisas que chamamos «árvore» são sombras da essência Árvore, e alguns clubes de futebol, presumo, sombras da Primeira Divisão, um bicho estranho que dorme à Sombra da tal Árvore. Foi uma ideia engraçada, mas que o próprio Platão criticou (no Parmenides). Infelizmente, aos teólogos falta o sentido crítico dos filósofos.

Estabelecido que Deus é só um, resta a Boécio provar que são (é?) três. Argumenta que as relações, como pai e filho, não alteram as coisas que se relacionam, e por isso Deus pode continuar único mas ser pai e filho. Parece-me bem. Eu também sou pai e filho. Mas depois tenta contradizer-se e sai asneira:

«Mas, como toda relação sempre se refere a outro, pois a predicação que se refere ao próprio sujeito é sem relação, a numerosidade da Trindade é garantida pela categoria relação, enquanto a unidade é preservada pelo fato de que não há diferen-ça de substância ou de operação ou de qualquer predicado substancial.»

Errado. A relação entre mim e os filhos do meu pai não é necessariamente uma relação que se refere a outro. Afinal, eu também sou filho do meu pai. Por este argumento eu também seria vários: Eu, o filho do meu pai, o sobrinho dos meus tios, e um filho da mãe. Fica assim por responder esta pergunta tão importante para todos nós: como é que um ser imaginário pode ser um e três ao mesmo tempo? Sugeria ao Bernardo que aplicasse a mesma metodologia ao estudo da dualidade de Clark Kent e Kal-El, nas sua unidade de substância e multiplicidade de relações com todos os filhos de Jor-El.

Deste episódio tirei duas lições. Por muita treta que inventem, ou é um ou é três. E que mesmo a vigiar um exame devia arranjar melhor que fazer.

1- Bernardo Motta, 18-9-07, De Trinitate
2- Luiz Jean Lauland, Boécio e De Trinitate.

quarta-feira, setembro 19, 2007

As respostas.

Numa noite calma, há milhares de anos, um grupo de hebreus descansava à volta da fogueira já quase apagada. Contemplando as estrelas, o céu escuro, as oliveiras e o riacho a passar pelo vale, um deles perguntou como terá surgido isto tudo. Ponderaram alguns instantes até que um levantou o braço e disse eh pá, já sei. Sabes? Conta lá, disseram os outros. Então foi assim. No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas... Em meia hora a religião respondia às perguntas mais importantes. Como escreveu o Pedro Silva (1):

«A religião apareceu como resposta ou tentativa de resposta às perguntas milenares feitas pelo Homem: “Quem sou? Porque estou aqui, qual o objectivo da vida? De onde vim e para onde vou?”.»

Se a resposta que queremos é primeira que surge a seguir à pergunta então concordo. As religiões respondem a tudo. E os teletubbies também. Mas se queremos a resposta correcta é preciso mais. É preciso considerar várias possibilidades, confrontá-las com as evidências e considerar as novas perguntas que, inevitavelmente, vão surgir. E é preciso estar ciente que vai haver sempre mais para fazer. Um serão não chega. Milhares de anos deste processo indicam que a resposta certa não é deus no paraíso com a costela. O jogo é mais complicado.

Se o objectivo da religião fosse dar respostas correctas seria um enorme fracasso. Não é deitando-se a adivinhar que vão acertar. E se o objectivo fosse dar a primeira resposta que aparecesse não era preciso religião. Inventar tretas é fácil. O papel da religião é mais subtil. É dar respostas que façam parecer que sabe muito quem não faz a mínima ideia do que diz. E nisto a religião é exímia. Passaram-se milhares de anos, explorámos o sistema solar, encontrámos planetas a orbitar outras estrelas, sabemos de que é feito o Sol e como surgiram as espécies. E mesmo assim ainda muita gente está convencida que o senhor padre é que sabe...

1- Comentário em Comparações Impróprias.

terça-feira, setembro 18, 2007

Comparações Impróprias.

Da autoria de Dom Mário Neto, blinólogo.

Os ateus fundamentalistas tentam desvalorizar a vivência espiritual do crente comparando a fé religiosa a atitudes que consideram semelhantes. Erroneamente, como todos sabemos! Mas é proveitoso explicitar o erro deste argumento enganador e, para tal, considerarei quatro variantes comuns.

Primeiro, defendem que a devoção religiosa é um apego emocional como qualquer outro, como por um clube de futebol, por exemplo. Mas não tem nada de semelhante. O adepto foi influenciado pelos pais quando era criança. Imitou os amigos, que também tinham clubes favoritos. O favoritismo foi se enraizando assistindo aos jogos durante a juventude e, eventualmente, não se sabe bem como, estas influências fazem alguns identificar-se com um determinado clube. A fé religiosa é radicalmente diferente.

O crente herda uma tradição religiosa familiar e recebe da sua comunidade e cultura os primeiros sinais de espiritualidade. A espiritualidade é nutrida pelas celebrações litúrgicas a que o adolescente assiste e, no mistério da revelação, isto desperta em alguns crentes a sua devoção por uma religião. A diferença não podia ser maior.

Outro disparate é comparar o Pai Natal com o Divino. A criança imagina o Pai Natal como um ser mágico a quem pede prendas e por quem se porta bem para as receber. Agradece ao Pai Natal deixando-lhe leite e bolachas ou dizendo obrigado. Em contraste, o crente concebe o Divino como um ser livre das restrições da natureza. Dirige-Lhe preces e esforça-se para cumprir a Sua vontade para que seja digno da Sua benção e graça. Grato, louva o seu nome, e oferece na igreja dinheiro ou outros bens materiais como símbolo da sua devoção. É o fanatismo do ateu que cria a ilusão de semelhanças entre duas coisas tão diferentes.

Argumentam também que milhares de religiões esquecidas provam que a fé religiosa não é sólida e permanente. Mas isto prova o oposto! É precisamente porque milhares de anos eliminaram as crendices falsas que sabemos que a nossa fé de agora é absolutamente correcta e eterna. Isto é tão óbvio que nem devia ser preciso dizê-lo. Mas vou ilustrar com um exemplo.

Da religião dos Sumérios restam apenas placas de argila e memórias fragmentadas. Perdeu-se precisamente pelas suas crenças erradas. Um dos mitos contava a morte da deusa Inanna, senhora do Céu. Desceu a Kur, o reino dos mortos, onde ficou três dias e três noites após os quais ressuscitou (1). Uma crença absurda. Um deus imortal que morre? E depois ressuscita, quando a morte é por definição eterna? Se está vivo, como todos sabem, é porque não morreu.

A religião Suméria pereceu porque nenhuma crendice falsa sobrevive ao crivo do tempo. Hoje já ninguém acredita em deuses imortais que morrem e ressuscitam, e isto demonstra que a religião não é um baralhar e voltar a dar de mitos e histórias mas sim uma verdadeira demanda pela Sabedoria.

Finalmente, alegam que a multiplicidade de religiões modernas revela que a religião é como os rebuçados na feira, cada cor seu sabor e à escolha do freguês. É cegueira do ateu. Não resisto aqui citar um trecho da Blínia Sagrada, especificamente as palavras do profeta Sebastião ao seu discípulo Matatias, como relatado no Livro dos Azurreus;

«14:21 Atendei pois, jovem, às minhas palavras e tende cuidado com essa chávena
14:22 pois se a partirdes levareis tal sova que não vos podereis sentar durante uma semana.»


Ao interpretar um texto sagrado temos que ver para além da beleza das palavras e do relato de um episódio aparentemente prosaico, e vislumbrar o seu significado simbólico mais profundo. A chávena é, evidentemente, a verdadeira religião. Os cacos da chávena que se parte são também parte da chávena. São pedaços de um todo, e simbolizam aqui as várias religiões.

Quem não está cego pelo fanatismo ateu vê que todas as religiões modernas, do cristianismo ao budismo, dos manás aos shiitas, são como pequenos pedaços de uma só religião. Não passam de formas particulares e simplificadas de adorar os Divinos Blin, omnipotentes e omniverdes criadores do Universo, Unos na Sua Multiplicidade, e Idênticos naquilo que Os Distingue. Toda a religião é esta religião.

1- Samuel Noah Kramer, A História Começa na Suméria, Círculo de Leitores.

segunda-feira, setembro 17, 2007

Criacionismo e copyright.

Duas das minhas tretas favoritas numa só embalagem. Kent Hovind, ou «Doutor Dino», é um criacionista, fundador da Creation Science Evangelism (CSE) (1), e residente do sistema prisional Americano. Segundo Hovind, os milhões que fez a vender tretas foi em serviço de Deus. Por isso não tinha nada que pagar impostos nem respeitar leis (2). Como muitos outros, este argumento criacionista também não convenceu.

Durante anos o site da CSE afirmava que nenhum do seu material estava protegido por copyright, e que podia ser difundido livremente. Kent Hovind afirmou-o várias vezes nos seus vídeos e palestras. Agora estão a usar e abusar do copyright para censurar qualquer crítica. Avisam que «ALL MATERIAL (UNLESS OTHERWISE STATED) IS COPYRIGHT © 2007 CSE MINISTRY», e com efeitos retroactivos. Usando o Digital Millenium Copyright Act (DMCA), forçaram o YouTube a retirar vários vídeos com material que anteriormente distribuíram livremente. Mais que isso, forçaram também a remoção de vídeos que criticavam ou satirizavam Kent Hovind alegando violação de copyright.

Há uns tempos o utilizador do YouTube «RabbidApe» organizou um concurso de músicas acerca de Kent Hovind e as suas façanhas de evasão fiscal. A canção vencedora foi também retirada por alegada violação de copyright da CSE, apesar de nem a canção nem o vídeo conter qualquer material da CSE. A conta de «RabbidApe» no YouTube foi também eliminada por causa do número de queixas.

É um abuso da lei e é punível, mas estes criacionistas já mostraram que a lei não os preocupa. É tudo em nome do Senhor. Mas é uma má lei a que permite tal abuso, bastando uma queixa sem qualquer prova que se retire conteúdo. Felizmente, os bits são o que são. Tira-se um aparecem mais trinta:



Mais alguns detalhes no udreamofjanie e Bad Astronomy.

1- Site da CSE
2- Wikipedia, Kent Hovind (legal problems).

domingo, setembro 16, 2007

Treta da Semana: Crianças Sobredotadas.

Há pessoas sobredotadas. Quem dirige as melhores orquestras, corre cem metros em 9.74 segundos, ganha um prémio Nobel ou inventa o Google demonstra capacidades para além do normal. E podem ser crianças. Aos oito anos, Mozart compôs a sua primeira sinfonia e já era um músico reconhecido internacionalmente. Era criança, e era sobredotado.

O que muitos chamam «crianças sobredotadas», ou detentoras de «Altas Capacidades», são apenas crianças precoces. Se aos seis anos responde num exame como um miúdo de doze então está adiantada para a sua idade. Mas responder como um miúdo de doze não é uma alta capacidade. Não quer dizer grande coisa. Não é por aprender a andar aos oito meses que vai ser um grande atleta.

Mas é pior que isto. No passado dia 12 o programa da Júlia Pinheiro na TVI foi sobre os sobredotados. Um jovem convidado, segundo a mãe, começou a falar aos dez meses, a andar com um ano, fazia muitas perguntas e gostava de livros. Não censuro a senhora porque sei o que sente pelo filho. Até a espirrar nos parecem melhores que qualquer outro. Mas segundo o «Essentials of Pediatrics» a senhora teve um filho perfeitamente normal. O que não lhe tira mérito, porque e se é normal e saudável é pelo muito que os pais fizeram. Mas não satisfaz as expectativas do programa.

Outro exemplo foi um estudante de medicina que entrou para a faculdade com 16 anos. A Júlia Pinheiro ainda andou à pesca de algo genial na vida deste convidado, mas sem grande sucesso. Ele chegou a dizer que não se considerava sobredotado nem nunca o consideraram tal coisa. Só por isso me pareceu demonstrar uma inteligência acima da média do programa. Foi um show de pais babados. O que não teria mal nenhum, não fossem as consequências para as crianças.

Preocupou-me a ênfase nas necessidades das crianças sobredotadas. É evidente que os pais e o sistema educativo devem dar à criança o que ela precisa para se desenvolver. Mas não por ser sobredotada. É por ser criança que deve ter este apoio. Repugna-me a ideia, mesmo implícita e bem disfarçada, que umas crianças merecem mais que outras.

Também desconfio da prestação de serviços de acompanhamento aos sobredotados por entidades comerciais com fins lucrativos. Estima-se que cerca de 2.5% das crianças sejam sobredotadas, mas duvido que um consultório privado rejeite os 97.5% de clientes cujo filho não é sobredotado. As «Altas Capacidades» parece-me uma jogada para aceitar qualquer criança, quanto mais não seja pela alta capacidade de saltar nos sofás e gritar alto. O que vem à rede é peixe.

Mas o pior é o que isto faz às crianças. Já falei nisto (1), por isso vou deixar apenas um relato pessoal. Em criança fui muitas vezes o melhor da turma, o que me ensinavam era tão fácil que aborrecia, e fui convidado a assinar o livro de honra da escola quando acabei o ciclo preparatório. Não me senti especialmente dotado. Os meus colegas viviam em barracas, tinham problemas com a família, e um até foi para uma casa de correcção por bater numa professora. Eu podia fazer os trabalhos de casa, ler um livro, brincar com os irmãos ou pedir ajuda aos pais. Tinha o dom, raro naquela escola, de não levar pancada de um pai bêbado nem ter que viver com a avó por ter os pais na cadeia. Não era caso para me sentir sobredotado.

E os papelinhos das notas cheios de cincos nunca contaram para nada lá em casa. Os meus pais só queriam saber se eu precisava de ajuda, ninguém ia gostar mais de mim por causa das notas, e eu também nunca liguei a isso. Nem fui assinar o raio do livro.

É isto que a fuçanguice e negócio dos sobredotados estão a roubar às crianças. Em vez de sentir que valem pelo que são dizem-lhes que valem por ser mais que os outros. Para bem dos poucos que sejam mesmo sobredotados só desejo que passem despercebidos.

1- 12-9-07, Crianças Rotuladas

sábado, setembro 15, 2007

O bom da religião.

A leitora que assina «Abobrinha» comentou que «há muita coisa boa nos valores religiosos» (1). E eu concordei. Acontece. Elas baralham-me as ideias e acabo por concordar antes de pensar bem no quê. Mas já recuperei e pensei melhor.

Nos últimos dois mil anos pouco melhorou no cristianismo que tenha vindo da religião em si. Não houve mais profetas, Jesus não voltou e o milagrezito ocasional foi sempre de pouca monta. É verdade que este grupo de religiões mudou muito para melhor, em média, mas só por pressão externa. A maior tolerância por outras religiões, o maior respeito pela vontade de cada um, um leve aceno à igualdade de direitos entre os sexos e outras melhorias foram impostas pela sociedade laica que, nestas coisas, esteve sempre muito à frente. E aquelas mudanças que vieram de dentro, como as cruzadas, a reforma protestante e a inquisição, não foram propriamente algo de bom.

Nestes vinte séculos muita coisa melhorou que nada deve à religião. Na ética e na política, da magna carta à declaração universal dos direitos do homem, surgiram novas formas de governo, igualdade perante a lei, educação, reformas, serviços sociais, a divisão de poderes no estado e tantas outras ideias que nos dão hoje mais estabilidade, liberdade e segurança que alguma vez foi possível.

Mas o principal vem da melhor compreensão da natureza. Estas melhorias são inimagináveis. Literalmente. Nós não conseguimos imaginar o que é ver metade dos filhos morrer no primeiro ano de vida ou epidemias matarem grande parte da população sem que ninguém perceba o que se passa, ou viver a cada dia à mercê das secas, inundações, ou pragas.

Aponta-se hoje em dia exemplos do bem que a religião faz. Os missionários de grupos religiosos ajudam pessoas em dificuldades levando-lhes comida, ensinando-os a trabalhar com computadores ou a falar outras línguas, ou promovendo campanhas de vacinação. Mas considerem o que os seus antecessores faziam antes de haver aviões, computadores, ou agricultura moderna ou vacinas. Evangelizavam. Convertiam os nativos à religião dos mais fortes. Que é a sua missão principal ainda hoje. O resto, os verdadeiros benefícios, são ferramentas de evangelização que o progresso científico dá à religião. O que é irónico, visto que a religião sempre se opôs ao progresso.

A «Abobrinha» também salienta que a religião cristã «não manda cortar o pescoço a quem saia dela para abraçar outra. Parte dos muçulmanos parecem levar uma instrução do Corão nesse sentido a sério. O que não faz sentido porque o Islão é uma religião tolerante.». É verdade. Mas não corta porque não pode. O importante não é ser uma religião diferente, mas sim ter menos poder, porque nos tempos em que podia a Igreja Católica fazia a mesma coisa. Qualquer religião pode ser tolerante e inofensiva, mas só se não a deixarmos ser de outra forma.

Por fim, há quem considere que a religião em si é uma coisa boa, por muitos defeitos que tenha. Gostos não discuto. Mas, de resto, não vejo nada recomendável na religião que não tenha vindo de fora. Apontar o bom na religião parece-me o optimismo exagerado de dizer que o bom de ficar sem uma perna é não ficar sem as duas.

1- 14-9-07, Se se portassem bem...

sexta-feira, setembro 14, 2007

Se se portassem bem...

Em Junho de 2005 o Papa Bento XVI explicou aos bispos Africanos que «os ensinamentos tradicionais da igreja são a única forma infalível de prevenir a propagação do HIV/SIDA»(1). Mais recentemente, o leitor Pedro Silva comentou que «A posição da Igreja é defender sempre a abstinência antes do casamento, e a fidelidade dentro do casamento. Só isto seria suficiente para erradicar a doença»(2). Cometem os mesmos dois erros.

O primeiro é um juízo de valor, algo que normalmente não considero errado. Posso discordar do látex ser pecado ou que condenem o sexo consensual entre adultos solteiros (eu só condeno o sexo antes do casamento se deixarem os convidados à espera), mas mesmo discordando reconheço que não é um juízo errado. É uma escolha.

Só que no caso do preservativo é mesmo um erro. Por muito que condenem a vida sexual alheia, é certamente preferível não transmitir a doença. No entanto, havendo prostituição e infidelidade, preferem que seja sem preservativo. Isto é um disparate.

O outro erro é confundir o recomendar com o cumprir. O crime desapareceria se ninguém violasse a lei. Acabávamos com a obesidade se ninguém comesse demais, e com os malefícios do tabaco se todos deixassem de fumar. Mas nenhum destes problemas se resolve dizendo portem-se bem, tenham cuidado com o que comem e não fumem.

Nem a Igreja nem o Pedro Dias podem obrigar os outros ao celibato. Apenas o podem aconselhar. E se bem que o celibato reduzisse muito a transmissão do vírus, a mera recomendação é pouco eficaz. E é compatível com a distribuição de preservativos. Recomenda-se menos parceiros sexuais e dá-se preservativos para as eventualidades. Não há problema. É como dizer para conduzir com cuidado mas instalar cintos de segurança nos carros à mesma.

A posição da Igreja Católica é consequência de uma idiossincrasia doutrinal. Deu-lhes, em tempos, para condenar a contracepção como pecado e agora ou se submetem à razão e reconhecem o erro ou agravam a tragédia em defesa do dogma. Infelizmente, para um Papa é uma decisão fácil...

1- BBC, Pope rejects condoms for Africa
2- 3-9-07, Ao lado, parte 3: sem transcendências.

quinta-feira, setembro 13, 2007

«Caso Maddie faz Ben Affleck Reflectir»

era o título de uma notícia no jornal do Metro de hoje. Aqui vai uma sugestão para amanhã:«Caso Maddie faz Ludwig dizer porra, se não têm notícias poupem papel».

quarta-feira, setembro 12, 2007

Crianças rotuladas.

O tema de hoje do programa da Júlia Pinheiro, na TVI, foi «crianças sobredotadas». Só pude ver uns bocadinhos, mas gravei, porque penso que há aqui tema para a minha rubrica semanal. Queria só adiantar que me parece uma má ideia rotular as crianças desta maneira.

É arbitrário. É sobredotado quem está a mais de dois desvios padrão acima da média. Ou seja, 2.5% da população, por definição, seja qual for a média e a inteligência em absoluto. O Quociente de Inteligência (QI) foi inicialmente concebido para estimar o nível de educação, e os valores da média têm vindo a aumentar reflectindo as melhorias na educação e nível de vida. Os resultados também variam conforme o tipo de testes, e são calibrados de acordo com a cultura em que se inserem. Por exemplo, desenvolvidos em países industrializados dão muito mais importância à capacidade de encontrar sinónimos para «aborrecido» que de distinguir pássaros pelo canto ou de seguir as pegadas de um cervo.

Nas crianças é ainda pior, porque nestas o QI mede a proporção entre a idade da criança e a idade de uma criança média com o mesmo desempenho. Se um miúdo de 10 anos responde ao teste como a média dos miúdos de 13 tem um QI de 130 e fica com o carimbo de «sobredotado». O que não quer dizer nada. Não é por ter aos 10 a «inteligência» de um miúdo de 13 que podemos prever que vá ser um brilhante isto ou aquilo quando for grande. Estes testes não são bons indicadores de desempenho futuro.

E são desnecessários. A Ana tem seis anos e adora desenhar. O João tem sete e gosta de ler. Obviamente, o melhor é dar canetas e papel à Ana e livros ao João. Não importa aqui o QI. Vão dizer aos miúdos que com um QI de 95 não vale a pena gastar dinheiro nessas coisas?

Claro que há pessoas mais inteligentes que outras. Mas se a criança é mesmo inteligente há de compreender que isso é como ser bonito, ou atlético, ou ter uma voz grossa. Calhou ser assim, não é por culpa nem por mérito. Ainda se fosse um quociente de honestidade e decência...

Fundamentalmente, acho maldade rotular as crianças. Os pais devem estar atentos e encorajar as aptidões dos filhos. Mas não devem ensinar a criança a definir-se por aquilo que gosta de fazer nesse momento. Pode gostar de matemática aos 10 anos e aos 16 querer ser um bailarino. Acima de tudo, não dar à criança a ideia que os pais gostam dela por ser especial. A infância e a adolescência já são tramadas que chegue sem essa pressão adicional.

Como qualquer pai, acho os meus filhos muito inteligentes. Verdadeiramente sobredotados. Com seis anos jogam Guitar Hero melhor que a mãe, conhecem mais Pokemons que eu, cantam em Inglês mesmo sem saber o que dizem, e aprendem qualquer palavrão instantaneamente. Quero lá saber se têm QI de 130 ou não. Que diferença é que isso faz?

terça-feira, setembro 11, 2007

Parcerias do Instituto da Inteligência.

Isto pode parecer perseguição, mas é que se puxo uma pontinha vem a treta toda agarrada. No site do Instituto da Inteligência (1) podemos ver as parcerias deste com outras instituições. Em primeiro lugar, a Bircham International University, uma empresa de ensino à distância sem acreditação.

Em segundo lugar, a sonante Facultad Libre de Altos Estudos Paracientíficos (2). Oferece cursos de terapias vibracionais, contactação espiritual, e até um doutoramento em psicologia alternativa. Em agosto deram 50% de desconto no curso de desenvolvimento da autoestima. Não sei se alguém apreciou a ironia. Quem acha que vale pouco paga só metade...

Se seguirem a ligação para os produtos vão ter a uma listagem de aparelhos sofisticados, entre os quais o sincro inductor SP4-PRO (MEGABRAIN). Infelizmente, o megabrain que fez a página deixou as ligações para os ficheiros no seu desktop. Por isso se quiserem ver os produtos têm que copiar as ligações, substituir por «www» a parte que diz «file:/C|/Documents%20and%20Settings/antonio/Desktop/» e depois colocar na caixa dos endereços do vosso browser. Não sei se é incompetência, distracção, ou um teste subtil aos visitantes do site.

Eu cá estou interessado na Zenner Box para potenciar as minhas capacidades psi. Por apenas 99€ poderei aumentar a minha telepatia de zero para um valor dez ou cem vezes maior.

Outro parceiro é o Instituto Multifocal (3). Esta empresa brasileira oferece cursos de Teopsicoterapia Multifocal e Inteligência Multifocal. Chamo a atenção para o blog do director, e como ele gosta de pôr fotos dele próprio na maior parte dos posts (4).

Finalmente, a validação dos cursos do Instituto da Inteligência está a cargo da Open University of Advanced Sciences, cujo corpo docente inclui um advogado, uma professora de Yoga, um investigador em terapias vibracionais, um mestre de Kyrologia e outro de cristaloterapia. Tem também um ex-colaborador da NASA. Nestas coisas, é muito importante ter um ex-colaborador da NASA.

Admito que este post é mais gozo que crítica inteligente. Mas, bolas, a minha paciência também tem limites, e se me sinto gozado não resisto a gozar também.

1- Instituto da Inteligência
2- FLAEPA
3- Instituto Multifocal
4- Silas Barbosa Dias

segunda-feira, setembro 10, 2007

Treta da Semana: acredita quem quiser.

O post sobre o livro de curas naturais de Kevin Trudeau ainda recebe comentários de vez em quando (1). Para alguns não importa que o autor tenha sido condenado por fraude nem o livro remeter o leitor para um site onde tem que comprar as tais curas que pensava já ter comprado com o livro. Segundo um comentador anónimo, «Seja um intrujão ao não, vale a pena ler, só acredita quem quer.»

É claro que quem não quer acreditar, não acredita. Mas isto não justifica mentiras e aldrabices, porque a realidade não é uma democracia de crenças. É a ditadura dos factos. A quem duvidar, duas palavras. Nariz. Parede.

Isto é evidente em muitos casos, e explica o insucesso da mecânica automóvel alternativa, da construção civil espiritual e dos serviços de urgência exclusivamente naturais. Quando um desgraçado espeta o carro contra uma árvore não é o cházinho que o safa, sabemos bem. Mas sempre que há uma fresta lá entra a ideia disparatada que a realidade é ao gosto do freguês. Ou sempre que alguém quer vender tretas.

Kevin Trudeau brinda cada comprador do seu livro com pérolas de rara sabedoria (2) como o protector solar causa cancro, a água da torneira é venenosa, o leite materno está todo contaminado, e que devemos vestir de branco por causa das energias positivas (infelizmente, não ajuda o leite). Para algumas pessoas isto está bem porque só acredita quem quer. Mas os efeitos do protector solar ou do leite materno não dependem da crença de cada um, e espalhar este tipo de disparates pode prejudicar a saúde a muita gente.

Por todo o lado, aqueles a quem faltam evidências e honestidade para o admitir invocam esta alegada maleabilidade da natureza. Propõem que há umas verdades para uns e outras para outros, que é tudo uma questão de crença ou interpretação. Nas medicinas alternativas, na religião, na astrologia, no pos-modernismo... e, é claro, no criacionismo. Recentemente, a universidade de Baylor foi acusada de «viewpoint discrimination» por não se querer associar às «investigações» do design inteligente (3).

É chato, mas é assim. A natureza não quer saber das nossas crenças. Podemos acreditar no que quisermos que não fazemos da mentira verdade nem da verdade mentira. E a capacidade quase infinita de acreditar em tretas não isenta ninguém de ser responsável pelo que afirma.


1- 28-5-07, Treta da Semana: Kevin Trudeau
2- New York State Consumer Protection Board (via Quackwatch), 5-8-05, Cancer ‘Cures’ Are Empty Promises.
3- Discovery Institute, 9-9-07,Baylor University Accused of Viewpoint Discrimination In Suppression of Pro-Intelligent Design Scientist

domingo, setembro 09, 2007

Instituto da Inteligência, parte 2.

Fiquei muito satisfeito por receber um comentário do Nelson Lima, director do Instituto da Inteligência. Decidi escrever este post para que o comentário não passasse despercebido aos leitores, e para que quem ache que estou a «denegrir o seu trabalho»(1) possa vir aqui dizer-me das boas. Afinal, isto não pode ser só eu a dizer mal. Tenho que me sujeitar a levar o troco.

Aproveito também para esclarecer a leitora Maria Marques da Silva, que comentou no mesmo post que:

« Não posso deixar de me insurgir contra o seu blog! Pode dizer as burrices que lhe apetecer mas deveria ter mais cuidado quanto o seu objectivo é "deitar abaixo" por qualquer maléfica razão institutições como o Instituto da Inteligência de que sou antiga e fiel cliente pois é lá que levo os meus filhos.. O mesmo acontece com outras pessoas minhas amigas.»

Agradeço que reconheça o meu direito de dizer burrices. Mas tentar «deitar abaixo» é mais que um direito. É uma necessidade para testar qualquer hipótese, está na base da ciência e é, por isso, essencial numa sociedade moderna. É essa a razão porque deito abaixo neste fórum onde dou espaço a quem me quiser deitar abaixo também. Se todos tentarmos deitar abaixo, o que ficar de pé será certamente digno de confiança.

No meu post anterior sobre o Instituto da Inteligência levantei dúvidas sobre o fundamento científico das técnicas publicitadas e sobre as habilitações dos responsáveis. O primeiro é um assunto complexo que estou interessado em debater mas que não pode ser resolvido rapidamente. Mas o segundo é trivial. No blog do Instituto da Inteligência há uma lista dos membros da equipa (2):

«Director-executivo:
Dr Nelson S Lima
Coaching (Porto):
Susana L Fátima
Directora Unidade de Alenquer:
Dra Sofia Carvalho
Directora Centro de Neuropsicologia de Lisboa:
Dra Sofia Carvalho
[...]»


Basta que cada um disponibilize alguma informação acerca da sua formação e actividade científica. Isto é a norma em qualquer instituto ou centro de investigação. Do recém doutorado ao professor catedrático, todos apresentam as suas habilitações académicas, onde e quando obtiveram os graus, quais os seus interesses científicos e publicações representativas. Seria muito fácil mostrar ao público que o Instituto da Inteligência tem uma equipa bem qualificada e activa na investigação nestas áreas. Tão fácil que a omissão não passa despercebida...

1- Comentários Treta da Semana: Franchisar o Cérebro.
2- Blog do Instituto da Inteligência.

sábado, setembro 08, 2007

Treta da Semana: «ateu».

Sou ateu porque não tenho deus. O significado é claro, mas há aqui treta. É que também não tenho clube de futebol, partido político nem ídolo de rock e não sou a-coisa-nenhuma por causa disso. Porquê então «ateu»? Há cristãos, muçulmanos e budistas. Há benfiquistas e sportinguistas. Há crentes e adeptos. E quem não é, não é e pronto.

É claro que a palavra não é o problema. O problema é abusarem dela. Como se «apolítico» fosse mais um partido ou como se não ligar ao futebol fosse fanatismo, muitos usam «ateu» como se referissem uma fé no contrário da fé dos outros. Dois exemplos:

«Pregadores que exibem Deus (o deles) ou que negam Deus, ponho-os no mesmo saco.» (1)

« Um ateu tem uma fé não divina, num sentido de não existência de um criador.»(2)

Que confusão. Não tenho preferência por um clube de futebol porque não me interessa. É assim que sou ateu. A falta de vestígios de deuses facilita a decisão, mas mesmo que houvesse tantos deuses como clubes de futebol eu continuava ateu. Não é por criarem o universo que me vão dar vontade de ir à missa ou louvar-lhes seja o que for. Sou ateu porque adorar deuses diz-me ainda menos que o futebol, e nisto é irrelevante o que os outros acreditem. Não é para contrariar. É mesmo falta de interesse.

Mas afirmações de facto são um problema diferente. Não me importa que amem Jesus ou adorem o Benfica, mas se me dizem que os jogadores do Benfica nasceram de uma virgem, morreram, e ressuscitaram três dias depois, aí digo que não. A menos que haja um corpo sólido de evidências a sustentar esta afirmação o mais racional é rejeitá-la. Seja o Benfica seja o Cristianismo, que nestas coisas o clube tanto faz.

A ver se fica esclarecida esta confusão. O ateísmo é o estado de não ter deuses, pelo qual todos passamos. O estado de quem não sente vontade de louvar, não se sente endividado ao sobrenatural, não segue ordens misteriosas de livros antigos e coisas dessas. Ser ateu é não comprar bilhetes nem fazer parte da claque.

Criticar disparates é outra coisa. Não é preciso ser ateu para o fazer, nem é obrigatório a um ateu fazê-lo. Criticar o dogma, a atitude religiosa e as suas consequências não define o ateísmo. É simplesmente bom senso. Aplica-se ao milagre da estátua chorar sangue de galinha, à virgem Maria mãe de Deus vir à terra avisar três pastores que o Papa ia levar um tiro. E depois ele levar o tiro à mesma. E á própria existência desse deus alegadamente perfeito do qual não há vestígios e cujo trabalho ficou muito aquém das expectativas.

Em suma, o meu ateísmo vem do desinteresse pela religião e pelos seus alegados deuses. As críticas que faço são cepticismo, a atitude de considerar cada proposição pelo seu mérito e não pela vontade de acreditar nela. E o que me motiva a escrever é que estas tretas me incomodam. E isto são três coisas diferentes.

1- Joaquim Simões, 7-9-07, num comentário ao post Respeito
2- Tilleul, 1-9-07, Fundamentalismo Ateu

sexta-feira, setembro 07, 2007

Respeito

pode querer dizer várias coisas. Obediência, como em respeitar os sinais de trânsito, ou medo, como em ter respeito por vulcões. Respeito também é algo que podemos exigir dos outros, mas obviamente noutro sentido. O respeito que é legitimo eu exigir de outros é que me tratem como um igual. Nem mais, nem menos, que isso.

Quando alguém me pede que respeite a sua fé tenho que recusar. Não posso tratar a fé como um igual. É uma ideia, nem é uma pessoa. Mas respeito o crente, claro que sim. Trato o crente como um igual, e trato a sua fé como trato qualquer opinião, minha ou de outros.

O problema é que o respeito que os crentes querem não é este. Não querem que as suas ideias sejam tratadas da mesma forma que quaisquer outras ideias de qualquer outra pessoa. Podemos criticar opiniões políticas, gozar com o futebol, insurgir-nos contra os métodos de ensino, refutar teorias científicas. Mas muitos crentes querem ser excepção. E isso, além de treta, é uma falta de respeito.

quinta-feira, setembro 06, 2007

Deus existe.

Soube pelo Luís Rodrigues, no Random Precision (1), de mais uma crítica ao «fundamentalismo ateu» (2). Não tem nada de novo, mas deu-me para comentar isto:

«A conclusão a que se pode chegar é que não existe ateísmo em Portugal mas simplesmente anticlericalismo. Porquê? Tão simplesmente porque um ateu é um crente na não-existência de Deus e nunca poderá ser ateu por oposição aos que acreditam.»

O problema é precisamente que Deus existe. Não é um ser omnipotente que criou o mundo, mas existe tal como a tourada, o racismo, a democracia, o dinheiro. Não é por serem abstractos e imaginários que deixam de ter impacto nas nossas vidas. Para bem ou para mal, existem, neste sentido.

O tal deus omnipotente e essas coisas claro que não existe. Com esse não me preocupo. O que me preocupa é Deus, o conceito inventado como desculpa para os maiores disparates. Há quem diga que também serve para justificar o bem, mas isso é treta. O bem justifica-se a si mesmo. Senão, não é bem.

Sou ateu porque acho que não há deuses e porque, mesmo que houvesse, não os ia adorar. Sou ateu porque não tenho deuses. E sou contra Deus porque acho uma má ideia. Não por ser contra quem acredita, mas por ser contra que levem uma fantasia tão a sério, exijam que a respeitemos, a pintem de conhecimento profundo e a impinjam aos outros.

E é por isso que critico e faço troça. E quem se ofender que mande vir na caixa de comentários. Sem medo, que eu não levo as minhas opiniões tão a sério que me ofenda com as dos outros. Outro fundamentalismo meu...

1- Luís Grave Rodrigues, 5-9-07, Citações de Ateus Famosos – I
2- Tilleul, 1-9-07, Fundamentalismo Ateu

Um pouco ausente

porque estou aqui. O acesso à internet é esporádico; dá para uns posts mas só poderei participar nos comentários lá para sábado.

Miscelânea Criacionista: microevolução e macroevolução.

Muitos não aceitam que um processo natural transforme uma população de microorganismos numa população de humanos. Mas não têm problemas em aceitar que um processo natural transforme um embrião unicelular num humano adulto em vinte anos. Julgam que o desenvolvimento de uma célula a um adulto não é nada de especial porque o embrião já tem os genes, e que o difícil é chegar aos genes. Tão difícil que nem quatro mil milhões de anos chegam. E isto é um disparate.

Os genes são trechos na molécula de ADN. É uma molécula complexa, mas nada que se assemelhe à complexidade de um ser humano, ou sequer de uma formiga. É um polímero formado por quatro tipos diferentes de moléculas pequenas. A diferença de espécie para espécie é a ordem e o número dessas moléculas que formam a cadeia de ADN. Difícil é transformar um bolo de chocolate num cozido à Portuguesa. Mas se pudermos alterar qualquer letra e tivermos tempo que chegue, é trivial transformar uma receita noutra. E o ADN é apenas a receita.

A evolução demora mais tempo porque é um processo de tentativa e erro. Cada mutação é testada na população de organismos. É com o passar das gerações que se vê se o gene passou o teste ou ficou pelo caminho. Mas apesar de demorado é um processo mais simples de compreender. Por isso já há 150 anos que percebemos como as espécies evoluem mas ainda sabemos muito pouco acerca do desenvolvimento dos organismos, e quase tudo o que sabemos é informação recente.

Aceitar que as espécies podem evoluir um bocadinho mas não muito é como aceitar que podemos envelhecer uma semana mas não um ano. É pior, até. Se é por não conseguir imaginar como a natureza o faz, é do envelhecimento natural que temos que duvidar primeiro. Passar de ADN de bactéria para ADN de humano não é nada comparado com a transformação do embrião humano num de nós. E o ADN do chimpanzé difere do nosso em apenas 5%.

Os criacionistas gostam de divisórias. O natural de um lado, o sobrenatural do outro. O material e o espiritual. A ciência e os milagres. E por isso gostariam também de separar a microevolução da macroevolução. Mas isso é como separar o microenvelhecimento do macroenvelhecimento. Não se pode. O último é, em grande parte, apenas mais do primeiro.

Em grande parte, mas não totalmente. Como é típico, os criacionistas distorcem um termo legítimo para enganar com uma verdade parcial. Há três mil e quinhentos milhões de anos microorganismos começaram a libertar oxigénio durante a fotossíntese. Durante dois mil milhões de anos o oxigénio liberto ligou-se a iões metálicos dissolvidos no oceano, precipitando como óxidos metálicos. Mas há mil e quinhentos milhões de anos acabaram-se os iões metálicos e o oxigénio começou a acumular-se na atmosfera. Foi o maior desastre ambiental de sempre, obrigando a maioria das espécies a adaptar-se a este gás tóxico. Mas a possibilidade de queimar matéria orgânica para obter energia deu origem à respiração aeróbia, a quase toda a cadeia alimentar, aos seres multicelulares e à corrida entre predadores e presas que dura até hoje.

Não podemos explicar oitenta anos de vida apenas com o desenvolvimento biológico. A segunda guerra mundial, a queda do muro de Berlim, o 25 de Abril, muitos acontecimentos para além da biologia afectam o desenvolvimento humano. O mesmo se passa com a evolução. A macroevolução, no sentido de Ernst Mayr, é evolução afectada por factores que saem dos modelos de genética de populações. Por exemplo a física da atmosfera, a química dos oceanos, impactos de asteróides, vulcões, e assim por diante. É um termo legítimo, mas não indica nada de sobrenatural nem de fundamentalmente diferente da microevolução. Apenas reconhece o que é óbvio, que os seres vivos afectam o ambiente onde vivem e são afectados por este.

segunda-feira, setembro 03, 2007

Ao lado, parte 3: sem transcendências.

Na sua crítica à minha crítica do ofertório, o Bernardo falha outro alvo importante.

«a vida do ateu é explicada de forma simples: "Trabalho para obter dinheiro; uso o dinheiro para obter comida; como para me manter vivo; morro. Ponto final." [...]
Sem modelos nem referências transcendentais, o ateu radica a sua existência no hic et nunc, no "aqui e agora" utilitarista, na fruição da experiência existencial tal qual ela é, sem grandes interrogações ou suposições metafísicas. [...]
Para o crente [...] Deus criou tudo. [...] A vida não pertence ao Homem, mas sim a Deus: é um dom de Deus para o Homem.
» (1)

É verdade que não considero a vida um dom de Deus para o Homem. Que dom? Temos que lutar por ela. Bombear o sangue pelo corpo, ventilar os pulmões, ingerir água e alimentos. Viver é tão difícil que nem se consegue sozinho, e só podemos contar uns com os outros. Ninguém sobrevive a fiar-se em deuses. A vida não é uma dádiva divina. É uma obra nossa, um esforço individual e colectivo.

Mas o Bernardo falha na inferência. Rejeitar especulações infundadas não me limita nem ao hic nem ao nunc. Não vivo no agora. Dedico uma boa parte da vida ao meu futuro e ao futuro de outros. Nem vivo no aqui. Sou ateu precisamente por tentar ir além da crença pessoal, moldando as minhas opiniões ao que observo da realidade.

Neste universo vale a pena. No outro dos elefantes a segurar a terra em cima da tartaruga talvez não valesse, mas neste a realidade é muito mais rica que a especulação da nossa imaginação limitada. A argumentação teológica é ridícula quando comparada às reacções nucleares numa estrela, à formação de moléculas complexas ou ao equilíbrio dinâmico de um ecossistema. Compreender a realidade leva-nos muito mais longe que qualquer oração.

E compreender a realidade faz parte deste esforço para viver que mostra que, em parte, a vida de cada um é mérito seu. A ajuda que recebemos devemo-la a pessoas como nós, a quem também podemos ajudar. A vida é uma cooperação entre iguais. Não é uma esmola de um ser omnipotente nem uma mera passagem para outra vida sabe-se lá onde. É uma oportunidade única, frágil e preciosa.

Por isso preocupem-se com a vida depois da morte, mas não com essa treta das alminhas numa eternidade de hossanas. Preocupem-se com o ambiente, com o uso de recursos limitados, com o progresso do conhecimento e com o legado que deixamos aos que virão depois de nós.

Agradeçam. Mas não a seres mitológicos ou abstracções metafísicas. Agradeçam aos que construíram as nossas sociedades, que descobriram o que sabemos acerca da natureza e nos dão a possibilidade de ir mais além. E não agradeçam de joelhos, de palminhas unidas ou com sermões sem sentido. Agradeçam de mangas arregaçadas e a fazer algo de útil.

E se querem dar, dêem. Dêem oportunidades, educação ou ajuda a quem precisa. Ou mesmo esmolas, se não tiverem mais nada para dar. Mas não aos padres nem à igreja. Ninguém precisa nem merece menos que esses.

Ao lado, parte 1
Ao lado, parte 2

1- Bernardo Motta, 26-8-07, Materialismo em estado puro