domingo, junho 10, 2007

Ética, parte 2: Fundamentos.

O problema fundamental da ética é definir o bem. Só sabendo o que é o bem é que nos podemos preocupar com o bem da maioria, a justiça, a reciprocidade, e assim por diante. Muitos precipitam-se e confundem o problema de implementar o bem com o problema de o definir.

Este problema é antigo, e já se propôs, entre outras, o bem como virtude, moderação, excelência, imperativo categórico, fé ou servir a vontade de um deus, Infelizmente, parece que ainda ninguém acertou, e não há uma boa definição do que é o bem. Não vou resolver o problema. Mas excluir o que não é relevante ajuda a limitar o que o bem pode ser, e ajuda a compreender o problema.

Algo só é eticamente relevante conforme o seu efeito subjectivo. Quebrar uma ligação química ou criar um fotão não é relevante por si, mas apenas se afectar algum ser subjectivamente. Uma consequência disto é que nada pode ser eticamente bom sem ser bom para alguém, nem eticamente mau sem ser mau para alguém. Parece pouco, mas já dá para rejeitar muitos disparates. Por exemplo, que a homossexualidade é pecado ou que rezar trinta pai-nossos é louvável. Se não prejudica ninguém não é condenável. Se não ajuda ninguém não merece louvor.

Outra consequência é que não há nem bem absoluto nem mal absoluto. O subjectivo é relativo, e por isso a ética lida com preferências e avalia tudo em relação às alternativas. Tirar o apêndice a alguém não é necessariamente bom nem necessariamente mau; depende do que acontece se não o tirarmos. E a ética é mais útil quando avalia alternativas no futuro, quando nos indica o que devemos fazer em vez do que devíamos ter feito. É outro princípio que parece banal mas que nos impede de ignorar problemas do ambiente só porque afectam gerações futuras ou os interesses de um feto só porque ainda não pensa. Temos que avaliar as consequências relativamente às suas alternativas.

Mas nem tudo o que é subjectivo é eticamente relevante. A ética avalia actos, e não meros acontecimentos. Uma chuvada ou um terremoto podem ter efeitos subjectivos. Podem ser coisa boa ou má. Mas não no sentido ético. Chover não é louvável, nem é condenável que a terra trema. Acontece. Só é eticamente relevante a consequência previsível de um acto na medida em que foi consciente e deliberado.

Estas condições necessárias à ética tornam claro o que são direitos e deveres. Os direitos de um são restrições que a sua subjectividade impõe às acções de outros. O recém nascido e o deficiente têm direitos em virtude do impacto que os outros possam ter na sua subjectividade. E os deveres não são uma contrapartida pelos direitos. São restrições impostas ao próprio pela sua capacidade de compreender as consequências dos seus actos. Tem mais direitos quem é mais sensível e vulnerável. Tem mais deveres quem é mais consciente e capaz.

Isto é apenas um fundamento. Só delimita a ética, e está longe de resolver problemas reais como decidir pôr um doente de quarentena contra a sua vontade ou perdoar as dívidas aos países mais pobres. Casos reais têm consequências complexas, podem afectar muitos seres, e temos que comparar efeitos subjectivos e avaliar a responsabilidade de quem age ponderando as consequências na medida em que foram escolhidas deliberadamente.

Mas mesmo este esboço mostra que não se distingue o bem do mal com regras de conveniência como a da reciprocidade ou que só os humanos contam. Essas regras são atalhos. São úteis apenas em algumas situações. A reciprocidade resume bem a relação do cliente com o merceeiro, mas não a relação da sociedade com os desalojados ou idosos. Considerar apenas os humanos faz sentido num programa de vacinação ou a matar piolhos, mas não se estamos a destruir florestas ou a chacinar baleias.

O importante é que a ética lida com consequências subjectivas. Não se pode simplesmente arbitrar que umas contam e outras não. E a ética avalia escolhas conscientes. O nosso dever ético surge automaticamente da nossa consciência que aquilo que fazemos afecta os outros. Não só os que nos dão algo em troca ou que são da nossa espécie, mas todos os que sentem as consequências dos nossos actos.

Ética, parte 1: Subjectividade.

7 comentários:

  1. Parece-me muito bem analisado o tema, embora a parte do que é deliberado ou não me possa oferecer bastantes dúvidas. Posso por exemplo matar um gato que inadvertidamente atrevessava a estrada. Podemos dizer que foi involuntário, mas o facto de eu escolher andar de carro, mesmo sabendo que é quase inevitável, ao longo de muitos quilómeteros, que tal venha a acontecer, não elimina toda a responsabilidade.

    ResponderEliminar
  2. Concordo. Mas a responsabilidade vem daquilo que foi deliberado (andar de carro, correndo um risco), e não do que foi acidental (matar o gato).

    E é apenas a responsabilidade ética (ou moral). A responsabilidade legal, por razões práticas, pode ser muito diferente, pois não podemos ler a mente de cada um e temos que nos guiar por outros indicadores.

    ResponderEliminar
  3. Concordo com o João.
    Aqui o problema é que quem tende a pensar mais naquilo que faz tende mais facilmente a cometer os actos deliberadamente do que quem reage por impulsos, ou pensa menos nas acções que toma.
    Mas o facto de pensarmos mais ou menos naquilo que fazemos não é apenas algo que nasce conosco: somos mais ou menos encorajados a fazê-lo.
    Se a ética apenas valoriza acções deliberadas, e atribui muito mais respinsabilidade a quem pensa bem naquilo que faz, então também oferece um valioso incentivo para que as pessoas não pensem muito antes de agir.

    Por isso, esse também me parece ser o ponto mais frágil do teu raciocínio, e já to tinha dito pessoalmente.
    Não é justo que quem pense mais nas acções que toma tenha os mesmos direitos que quem pensa menos, mas muito mais responsabilidades. A ética tem de tomar isto em conta.

    ResponderEliminar
  4. Creio que a ética é algo diferente do que o Ludwig definiu.
    Os deveres são dispares em função do nível "intelectual" por detrás da decisão, mas, também são os direitos!
    Quem não tem capacidade para raciocinar mais, deve ter menos direitos em função dessa redução de capacidade, podendo-se definir valores tampão.
    Por exemplo, um qualquer doente mental com tendencias violentas não consegue reciocinar o suficiente para entender o que estará a fazer de mal, pelo que eticamente, a sua confinação permanente é adequada, ou seja, o seu direito a usufruir da liberdade pode e deve ser reduzido.
    A ética não condiciona só os deveres mas, também os direitos de acordo com a percepção individual. O valor tampão, neste caso é a valoração da vida humana. Não me interessa se mata sem raciocinar ou se premeditou, a partir do momento em que o faz compulsivamente, quem mata perde o direito que outros têm à liberdade, mas, se o faz por acidente ou necessidade, a condicionante pode ser atenuada.
    Tal como a morte de uma vaca, pode ser algo éticamente correcto se for para alimentação, mas, não o é, se for apenas para satisfazer a curiosidade morbida de alguém assistir a uma morte ou pelo prazer de a causar.

    ResponderEliminar
  5. Olá a todos. Sò uns pontos rapidinho:

    Quem tem mais responsabilidades é quem é capaz de compreender o que faz. Obviamente que não se safa só porque decide matar outro sem pensar muito no assunto ou assim. De qualquer forma, fazer algo com más consequências por negligência em geral é menos condenável que o fazer de propósito.

    E concordo que quem tem mais inteligência e capacidades tem mais direitos. O meu ponto é que não tem mais direitos por ter mais deveres, mas por ter uma subjectividade mais rica. Por exemplo, só considero que tenha o direito à vida aquele ser capaz de compreender a sua vida como um todo. Um ser capaz de auto-consciência. Porque para esse ser a vida tem um sentido subjectivo para além do conjunto de sensações ou experiências que a compõem (mas vou falar disso noutro post).

    O importante, resumindo muito, é que os direitos vêm do que sentimos e os deveres do que compreendemos.

    ResponderEliminar
  6. "só considero que tenha o direito à vida aquele ser capaz de compreender a sua vida como um todo. "

    Cuidado com isto, pode levar a situações complicadas.

    ResponderEliminar
  7. Que grande treta!!!!

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.