Ética, parte 3: Deus?... Para quê?
Muita gente defende que o papel de Deus e da religião é na ética. Já não precisamos Dele para explicar a chuva e as doenças, mas precisamos para explicar o Bem e o Mal. E apresentam três razões para justificar esta posição. Todas são treta.
A primeira é que Deus é o Bem. Esta é simplesmente uma confusão de categorias, consequência de recorrer a metáforas vagas. Bem e mal são classificações que damos a actos voluntários. A algo que se faz, e não algo que é. Dizer que Deus é o Bem é tão disparatado com dizer que Deus é o Espirro.
A segunda razão faz mais sentido. Deus é a fonte do bem. Ou seja, precisamos de Deus para nos dar os critérios pelos quais classificamos os nossos actos voluntários. Mas o problema desta já é famoso desde os primórdios da filosofia moral. Só há duas possibilidades, e ambas são más para a posição que defendem.
Uma é que Deus inventa os valores e define o bem. Um acto é bom ou mau porque Deus decide, e pronto. Quando no antigo testamento Deus aconselhava os pais a apedrejar as filhas que descobrissem não ser virgens, isso era bom por definição. Supostamente, entretanto mudou de ideias e agora é mau. Ora isto não é ética. É capricho. O bem e o mal não pode ser assim à escolha do freguês. Nem mesmo que seja o Freguês.
A alternativa é que Deus nos ensina o bem. Ele sabe-o, e como um pai atencioso ou um bom professor explica-nos o que devemos fazer. Aceitável, mas não é bem o que os crentes querem. Não somos crianças nem alunos para sempre, e a implicação é que uma vez que conhecemos o bem não precisamos de Deus para nada. E até podemos ir directamente à fonte desse conhecimento e aprender por nós o que é o bem. Deus é supérfluo ou, no máximo, tem um papel de auxiliar provisório.
Pelos problemas com estas justificações os crentes normalmente recorrem à terceira: crer em Deus e numa religião torna o crente eticamente melhor. Outro erro. É que nem pode ser.
Um ladrão sem escrúpulos vai roubar um carro mas vê que está um polícia por perto e acaba por não cometer o crime. Não se tornou uma pessoa melhor. Não roubou, mas é tão imoral como era antes de ver o polícia. E nem por adquirir a crença num polícia invisível que o persegue constantemente se vai tornar uma pessoa melhor. Deixa de roubar, mas continua um crápula.
Isto porque a ética não é uma resposta a pressões externas, nem um meio para um fim. Não é o que fazemos para escapar à prisão ou para agradar a um deus. São as restrições que nós próprios impomos aos nossos actos. Se em todo o universo só existir eu e um cachorro, a ética vem da compreensão que não devo dar um pontapé no bicho porque isso vai magoá-lo. É o critério final que avalia os meus actos. Não depende do polícia, dos santos, de Deus nem da tia Dele.
Quem alega que Deus ou a crença em Deus é importante para justificar a sua ética está a cometer um erro sério. A crença em Deus pode ser importante para o crente, mas não tem nada a ver com a ética.
Ética, parte 1: Subjectividade.
Ética, parte 2: Fundamentos.
Curiosamente, apesar de concordar com muito do que escreves neste artigo, não concordo com a mensagem principal (isso não me vai impedir de o citar no DA :p)
ResponderEliminarSe a religião de facto fizesse as pessoas "praticarem o bem" mesmo que elas não ficassem mais virtuosas (porque o faziam para ir para o paraíso ou por medo do inferno), então poderia ser eticamente louvável espalhar essa mentira, para que muitas pessoas sofressem menos com as más acções dos outros.
E sim, acho que esse seria um argumento muito poderoso a favor da religião - a não ser pelo facto de ser desmentido pelas evidências: as pessoas não vão começar a abortae com o objectivo de evitar o inferno para os seus filhos porque "não acreditam assim tanto", mas da mesma forma também não deixam de roubar ou matar por causa disso. Quando alguém está tão "lavado" que deixe de roubar ou matar por causa da crença religiosa, então existe o perigo que mate por causa dela (tipo a malta da Al-Quaeda).
Não são especulações vagas: estudos têm desmentido a teoria do "caos moral" sem religião. Os religiosos não têm um comportamento menos criminoso que os ateus (até pelo contrário, mas creio que isso não se deve à religião, mas sim à educação).
Posto isto, acho que o objectivo da ética é mesmo fazer com que o nosso comportamento seja o melhor possível.
Entre um indivíduo que acredita no polícia invisível que o pode mandar para o Inferno - e por motivos egoistas não rouba - e o indivíduo que acredita em fazer o bem e que se sentirá mal consigo se fizer o mal - e por motivos egoistas não rouba - só existe uma diferença importante; é que o segundo continuará a ter uma boa motivação para não roubar, mesmo sabendo como o mundo funciona, enquanto que para o primeiro temos de o manter numa constante ilusão - e isso pode ser mau.
Por esta razão não sou contra incentivos egoistas para que as pessoas façam o bem - em última análise são-no todos. O pior é se baseamos os incentivos para as pessoas fazerem o bem numa ilusão gerida por uma entidade que não é democráticamente eleita, e tende a ser sedenta de poder. Não é só o perigo da entidade que a gere (que a história já mostrou ser real e significativo!), é mesmo o facto de ser uma ilusão. A ciência tem demonstrado que conhecer o mundo como ele é pode trazer consequências bastante proveitosas...
«Posto isto, acho que o objectivo da ética é mesmo fazer com que o nosso comportamento seja o melhor possível.»
ResponderEliminarNão. Estás a cometer o mesmo erro. A ética não pode ser uma ferramenta para fazer com que o comportamento seja melhor. Não pode ser um meio para um fim. Porque a ética é aquilo que diz qual é o comportamento melhor. OU seja, o que diz quais são os fins a atingir.
Tu estás a assumir que há algo que diz que X é melhor que Y, e a ética é aquilo que nós fazemos para obter X em vez de Y. Mas não é. Isso é a política, ou a psicologia, ou a lei, ou a educação. A ética é aquele tal algo que diz que X é melhor que Y.
É possível que seja eticamente desejável enganar as pessoas para que se atinja os objectivos que a ética nos dá. Não me parece que seja, porque enganar as pessoas parece-me ser contrário a esses objectivos, mas não é uma contradição assumir que enganar seja um meio adequado.
Mas é uma contradição chamar a isso ética. Ética é aquilo que vem antes e nos dá os objectivos.
«É possível que seja eticamente desejável enganar as pessoas para que se atinja os objectivos que a ética nos dá.»
ResponderEliminarMuitas vezes quando se diz que X teve a atitude mais ética, estamos a dizer isso mesmo: que teve a atitude mais eticamente desejável -a melhor para aingir os objectivos que a ética nos dá.
Nesse sentido, difundir a mentira religiosa PODERIA ser a atitude mais eticamente desejável, caso o bem que daí adviesse fosse maior que o mal eventualmente provocado pelo facto de se enganar as pessoas.
Mas concordo contigo que não é assim no mundo em que vivemos: a história, os dados e os factos têm mostrado que entre o mal causado pelo engano e pela superstição, e os bens que alegadamente poderia causar, mais vale tentar desmistificar as ilusões e engodos da religião.
«Muitas vezes quando se diz que X teve a atitude mais ética, estamos a dizer isso mesmo: que teve a atitude mais eticamente desejável -a melhor para aingir os objectivos que a ética nos dá.»
ResponderEliminarUm exemplo simples. X e Y ambos alimentam crianças que estavam a passar fome. Mas X fê-lo convencido que a comida estava envenenada e que as crianças iam morrer uma morte agonizante.
Tiveram o mesmo comportamento, com exactamente as mesmas consequências, mas eu diria que o de X não foi eticamente desejável.
A ética não está no gesto que se faz, mas no que nos leva a fazê-lo.
Efectivamente creio que a ética é como o Ludwig disse: -uma definição do que é correcto.
ResponderEliminarNessa pespectiva, dEUS, não entra na equação, porque basta olhar à volta para vêr o quão mal teria feito as coisas se existisse, e portanto não é possível aceitar definições teológicas do bem. O bem também é algo constante ao longo do tempo, tal como foi referido, pelo que o "olho por olho", a morte divina dos primogénitos do antigo testamento, são claramente acções/posições ridículas para quem se defina como fonte de ética.
A questão de uma ilusão que por indução de medo, leva ao bem, é em si incorrecta, porque não é ético enganar, seja em que situação for. Parece-me mais razoável a redução de direitos de quem não actue de forma ética, e essa redução tem sempre de ser reversível, para admitir a correcção de erros, pois não me parece ético, alguém ou alguma sociedade se achar incapaz de errar.
Por isto é que não considero ético a pena de morte. É demasiado absoluta para poder ser ética.
Ludwig:
ResponderEliminarAcho que me expliquei mal, portanto vou reformular:
«É possível que seja eticamente desejável enganar as pessoas para que se atinja os objectivos que a ética nos dá»
Se fosse assim, alguém com o objectivo de atingir os objectivos da ética, poderia querer enganar as pessoas.
E a sua atitude poderia ser considerada ética.
E assim, a divulgação dessa religião e dessa crença ser ética.
Por temor ou por generosidade genuína, é verdade que a religião tem em algumas pessoas, a faculdade de lhes suscitar uma reflexão mais centrada nos outros, abrindo portanto caminho a uma forma menos egoista de pensar. Para alguns a religião tem portanto esse peso ético de servir de bitola e de obrigar a que as pessoas não se centrem apenas nelas próprias, sendo melhores por causa disso. No entanto isso não é um atributo da religião, pois há muita gente que o faz sem qualquer sentimento de religiosidade.É mesmo muito fácil desmontar a religião, como argumento para a ética. Mesmo aceitando que o Novo Testamento apagou a Ética do Velho, a verdade é que nos últimos 200 anos, a valorização dos direitos humanos e a sua oficialização recente levaram ao desenvolvimento de princípios éticos que ultrapassam em muito os da Bíblia. Há muito pouco tempo era fácil encontrar gente racista, defensora da escravatura, etc e o Novo testamento já exisitia há mais de 1500 anos.
ResponderEliminarPodemos não saber bem a causa e o porquê desta evolução, mas não é certamente a religião pois nada foi a esse respeito acrescentado nesses anos.
Há um aspecto deste post de que discordo bastante. Não é o mesmo pensar em cometer um crime ou um acto "errado eticamente" e cometê-lo. É por isso que aos olhos da lei, se eu der um tiro a alguém, a pena não é igual se o alvo sobreviver ou morrer e isto independentemente da intenção (mesmo que esta também seja valorizada na definição da pena). Mesmo que consideremos que a Lei cobre apenas uma pequena parte da Ética, não é certamente o mesmo pensar numa fantasia erótica com uma mulher atratente ou consumá-la enganando a mulher.
Acho que ninguém consegue completamente afastar todos os maus pensamentos e a ética mede-se também pela capacidade de controlo e de bom impacto gerado na sociedade (mesmo que nem sempre seja pelas melhores razões)
Caro João,
ResponderEliminarQuerer cometer um crime não é o mesmo que cometer o crime. Mas eu não disse que era o mesmo. O que eu disse é que não é por ser impedido de o cometer que o criminoso se torna eticamente melhor. A diferença que há não está aí.
De resto, o ponto principal que eu queria transmitir é que não se pode obrigar alguém a ser eticamente melhor. É um contrasenso.
Afinal, qual é o objectivo da ética?
ResponderEliminarResponder a essa pergunta.
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