Diálogo difícil, parte 2.
Outra dificuldade no diálogo com os crentes é basearem os seus argumentos em extremos. Tudo ou se prova ou se refuta, tudo é axioma, fé e dogma. Em parte, isto é consequência de confundir a prova científica com a prova da dedução lógica. Já falei disso antes (1), por isso adianto aqui apenas que a prova científica é no sentido de provar um bolo ou um fato. É testar, não é como provar um teorema. Esta insistência nos extremos faz perder toda a gama de possibilidades intermédias, e leva a erros como este comentário do Bernardo Motta:
«A descrença no metafísico é a crença do ateu. É o seu ponto de partida. O seu axioma. Aquilo que o ateu não está disposto a abdicar.»
Não é nada disso. A careca não é uma cabeleira e a descrença não é uma crença. Há muitas formas de encarar uma proposição. Axiomas, dogmas, opiniões, conjecturas, hipóteses, palpites, disparates. Ver apenas fé a favor e fé contra faz perder toda a gama da rejeição confiante, passando pela dúvida, a desconfiança moderada, até à aceitação relutante ou confiante.
A metafísica foi o que Aristóteles escreveu depois da física. Física era acerca da matéria, metafísica acerca das leis que governam a realidade, do propósito do universo, e assim por diante. Hoje em dia partes do que era metafísica estão no domínio da física, outras no domínio da filosofia, outras no domínio do disparate. Rejeito estas últimas, mas não por crença dogmática. Por descrença. Pela mesma razão que não estou em pânico com medo da bomba debaixo da minha cadeira. Se não há evidências de bomba também não se justifica o pânico. Mas estou disposto a abdicar, e a entrar em pânico, assim que as evidências o justifiquem.
Este extremismo também perde de vista os mecanismos pelos quais formamos opiniões. Noutro comentário, o Bernardo Motta dá como condição para a fé:
«ter confiança nos testemunhos das religiões sérias: confiança em pessoas concretas, que viveram experiências concretas, cuja explicação empírica não existe porque não experienciaram nada de puramente empírico»
Isto assume que se tem confiança em algo isolado, numa pessoa ou numa hipótese. É falso. Eu nunca vi o meu pai bebé nem tartaruga. Se o meu pai me disser que já foi bebé eu acredito que sim. Mas se me disser que já foi tartaruga eu duvido da afirmação e da sua sanidade. Não é uma questão simples de confiar no meu pai. Não se reduz aos extremos de confio ou não confio. É a tarefa mais complexa de comparar a afirmação com a imagem coerente que eu tenho da realidade, testar (a tal prova) a sua compatibilidade, e decidir, no caso de serem incompatíveis, se revejo o modelo ou rejeito a afirmação. O meu modelo é compatível com um bebé crescer e envelhecer, mas incompatível com o meu pai ter sido tartaruga. Como as evidências em que apoio o modelo (com que o provei, no sentido de testar) são mais sólidas que a afirmação que o meu pai foi tartaruga eu rejeito a afirmação. Mesmo vinda de alguém em quem normalmente confio.
A proposta de «ter confiança nos testemunhos» é inaceitável porque exige uma confiança extrema que ignora outros factores. A confiança sensata depende de como o testemunho encaixa num modelo assente em evidências. A confiança cega que os crentes defendem não pode ser base para um diálogo. É arbitrária. Porquê confiar naquele testemunho e não naquele outro que o contradiz?
O diálogo tem que assentar no que é partilhado pelos intervenientes: ideias com as quais concordam, o que observam do mundo que os rodeia, e a razão, o encadear lógico de premissas e conclusões. Só assim é possível resolver divergências de uma forma racional e pacífica. Mas o crente parte de premissas que já sabe que o ateu rejeita. Alega que nada de empírico é relevante, pondo de parte todas as observações que possa partilhar com o interlocutor. E, finalmente, afirma que a fé transcende a razão. O que sobra? Nada. É esse o diálogo...
Nota: crentes há muitos. Por «crente» aqui refiro-me especificamente ao crente defensor da teologia Católica e afins. Kierkegaard, por exemplo, ia concordar comigo que a sensatez é o oposto da fé, que a fé é cega e sem razões, e que o diálogo é impossível. Mas acrescentaria que assim é que deve ser.
1- Eu, 25-11-06, Provado cientificamente.
Muito Bom!
ResponderEliminarCaro Ludwig admiro a sua capacidade de explicar de forma simples coisas muitos complexas.
De facto os crentes conseguem ser totalmente irracionais sem dar por isso, e quando apelamos à sua razão, estes defendem dizendo que a fé é superior à razão. Isto não só é irracional como é estúpido. De facto os seres humanos têm esta extraordinária capacidade de em certos momentos dando-lhes a escolher entre uma atitude racional e outra estúpida, escolhem a mais estúpida. Porquê? As respostas que oiço são normalmente do tipo: conforta-me mais.
Tudo bem! Todos têm o direito de acreditar no que quiserem, e repeito-os. Até estou disposto a discutir a existência de Deus numa base racional, porque me considero um ser minimamente racional. Dizer que não se pode discutir racionalmente a existência de uma qualquer razão superior no Universo é treta! Acontece que a maioria das pessoas não está disposta a estudar física de modo a conhcer a realidade e a perceber como o mundo funciona. Ora isto é base para uma qualquer discussão séria. Preferem acreditar no que lhes dizem, é muito mais fácil. Mesmo que sejam tretas com 2000 anos.
Não se pode levar "tretas irracionais" para uma discussão séria. Torna-a vazia e sem sentido.
«A careca não é uma cabeleira e a descrença não é uma crença.»
ResponderEliminarE a saúde não é uma doença.
«o crente parte de premissas que já sabe que o ateu rejeita. Alega que nada de empírico é relevante»
ResponderEliminarParece-me que a maior parte dos crentes rejeita o empiricismo, não o empírico.
Caro João,
ResponderEliminarObrigado pelo comentário, mas fiquei com uma dúvida... não nos tratamos por tu?
tinha idéia que nos tínhamos encontrado naquele colóquio sobre evolução e criacionismo na FCUL... Ou estou a confundir?
Ricardo,
ResponderEliminarPois, não é claro. Nunca vi um crente sair pela janela. Mas quando discutem a sua fé, crentes como o Bernardo Motta alegam que nada de empírico é relevante para isso.
Ludwig,
ResponderEliminarSim eu estava sentado duas cadeiras à tua frente. Quem me disse quem tu eras foi o RuiM (tb da terraquegira) que estava sentado atrás de mim, mas penso que não falámos. Claro que nos podemos tratar por tu, não sei porquê hoje deu-me para a cordialidade :)
Ludwig,
ResponderEliminarEste seu post foi bastante claro. E no entanto, parece que para alguns esta rejeição com base empirica e lógica, da existência de deus (ou da necessidade de existência de deus) não é aceitável.
Talvez consiga explicar o porquê da necessidade de alguns crentes de tentar "evangelizar" ateus, à força, ou a confiança cega em ideias e instituições que sempre que confrontadas com a realidade, se provaram erradas e insistiram no erro mesmo quando estavam obviamente erradas.
Os evolucionistas são crentes, no pior sentido da palavra, porque têm uma fé cega.
ResponderEliminarEles afirmam que o Universo surgiu por acaso, mas a ciência não consegue discernir a causa do hipotético Big Bang.
Eles afirmam que a vida surgiu por acaso, mas isso nunca foi observado nem os cientistas conseguiram produzir vida "por acaso" em laboratório apesar de terem gasto milhões de dólares para o efeito.
Eles afirmam que as espécies evoluíram de umas para as outras, mas tudo o que vemos são variações dentro de espécies claramente delimitadas, com base em informação genética pré-existente.
Todas essas afirmações são contrariadas pela observação empírica, e no entanto são dogmaticamente propaladas, sem vergonha, pelo sistema de ensino.
Além disso, nem sequer querem admitir que alguém demonstre a sua insustentabilidade! Quem o pretender fazer, dizem, não é um verdadeiro cientista!
E depois acusam os cristãos de serem dogmáticos!
Dogma é um cobardolas anónimo, dizer um monte de mentiras, e projectar na ciência, as limitações que são religiosas, e negar as provas cientificas, apostando num "por acaso". A sua criação de vida "por acaso", é uma prova maior daquilo que são as descobertas da ciência, que todas as provas da existência de deus que os crentes até hoje conseguiram, seja porque valor monetário for.
ResponderEliminarSe vem para aqui com a treta de "como a ciencia não provou algo então a contrária é verdade" primeiro vá aprender a argumentar e depois apareça!
"Todas essas afirmações são contrariadas pela observação empírica, e no entanto são dogmaticamente propaladas, sem vergonha, pelo sistema de ensino."
ResponderEliminarBem, mas que Grande iDIOTA.
Não perca o próximo episódio: "O Regresso das Melgas Criacionistas".
É sempre bom os blogs terem uma componente cómica..
joao
Olá Ludwig,
ResponderEliminarQuem falou contigo na F.C.U.L fui
eu: o KKK, das discussões do MP3/direitos de autor etc... Até à exaustão.
Um abraço,
KKK
P.S. - tenho que mudar este nick!
Sim, de ti lembro-me, falámos no intervalo (e KKK é fácil de lembrar; traz sempre à mente a imagem de um tipo de capuz branco a queimar cruzes, he he ;)
ResponderEliminarMas no final falei com várias pessoas, principalmente do grupo do Octávio Mateus, e pensei que o João Moedas tivesse sido um deles.
Se me permites a sugestão, acho que este texto devia ter uma ligação para o artigo do Bernardo, que pode não saber que a segunda parte do "diálogo difícil" já saiu.
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