quarta-feira, setembro 12, 2007

Crianças rotuladas.

O tema de hoje do programa da Júlia Pinheiro, na TVI, foi «crianças sobredotadas». Só pude ver uns bocadinhos, mas gravei, porque penso que há aqui tema para a minha rubrica semanal. Queria só adiantar que me parece uma má ideia rotular as crianças desta maneira.

É arbitrário. É sobredotado quem está a mais de dois desvios padrão acima da média. Ou seja, 2.5% da população, por definição, seja qual for a média e a inteligência em absoluto. O Quociente de Inteligência (QI) foi inicialmente concebido para estimar o nível de educação, e os valores da média têm vindo a aumentar reflectindo as melhorias na educação e nível de vida. Os resultados também variam conforme o tipo de testes, e são calibrados de acordo com a cultura em que se inserem. Por exemplo, desenvolvidos em países industrializados dão muito mais importância à capacidade de encontrar sinónimos para «aborrecido» que de distinguir pássaros pelo canto ou de seguir as pegadas de um cervo.

Nas crianças é ainda pior, porque nestas o QI mede a proporção entre a idade da criança e a idade de uma criança média com o mesmo desempenho. Se um miúdo de 10 anos responde ao teste como a média dos miúdos de 13 tem um QI de 130 e fica com o carimbo de «sobredotado». O que não quer dizer nada. Não é por ter aos 10 a «inteligência» de um miúdo de 13 que podemos prever que vá ser um brilhante isto ou aquilo quando for grande. Estes testes não são bons indicadores de desempenho futuro.

E são desnecessários. A Ana tem seis anos e adora desenhar. O João tem sete e gosta de ler. Obviamente, o melhor é dar canetas e papel à Ana e livros ao João. Não importa aqui o QI. Vão dizer aos miúdos que com um QI de 95 não vale a pena gastar dinheiro nessas coisas?

Claro que há pessoas mais inteligentes que outras. Mas se a criança é mesmo inteligente há de compreender que isso é como ser bonito, ou atlético, ou ter uma voz grossa. Calhou ser assim, não é por culpa nem por mérito. Ainda se fosse um quociente de honestidade e decência...

Fundamentalmente, acho maldade rotular as crianças. Os pais devem estar atentos e encorajar as aptidões dos filhos. Mas não devem ensinar a criança a definir-se por aquilo que gosta de fazer nesse momento. Pode gostar de matemática aos 10 anos e aos 16 querer ser um bailarino. Acima de tudo, não dar à criança a ideia que os pais gostam dela por ser especial. A infância e a adolescência já são tramadas que chegue sem essa pressão adicional.

Como qualquer pai, acho os meus filhos muito inteligentes. Verdadeiramente sobredotados. Com seis anos jogam Guitar Hero melhor que a mãe, conhecem mais Pokemons que eu, cantam em Inglês mesmo sem saber o que dizem, e aprendem qualquer palavrão instantaneamente. Quero lá saber se têm QI de 130 ou não. Que diferença é que isso faz?

11 comentários:

  1. Não percebo nada de testes de QI e afins, mas, estou contigo nesta.
    Agora quer-se catalogar tudo de génio, mas, esquecem-se que as crianças necessitam é de brincar e divertir-se.

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  2. Excelente post, Ludwig. Obrigado.

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  3. A ciência (neste caso a psicometria) não é boa nem má (pelo menos quando bem desenvolvida). a sua aplicação é que já é outra história.
    O "QIsmo" como qualquer "ismo" cego pode ser perigoso. Pode coarctar a liberdade, a exploração, as experiências, o próprio desenvolvimento das crianças e jovens. Os testes de QI podem, no entanto, ser muito úteis quando bem aplicados e tendo em conta (obviamente!) a sua validade e fiabilidade.
    Concordo em absoluto com a questão dos riscos dos rótulos.
    Estas coisas - e falando da psicologia, acho bom ter sentido de critica e até de humor com estas coisas que nos alertam para coisas sérias - lembra-me a piada (entre psicologos) da criança que só pintava desenhos a preto, o que origina a desconfiança de um diagnostico de depressão, até que alguém se lembra de perguntar à criança o porquê daquilo. E esta responde que os colegas são mais rápidos e chegam mais cedo a todos os lápis de cor...
    P.S. - caro António, não levei a mal a piada do "poder instituido", nos comentários do post sobre o I.I. Aliás, até dei umas boas gargalhadas!

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  4. Caro Victor,

    Concordo que o QI seja uma ferramenta útil. Por exemplo se usado como originalmente foi concebido, para identificar crianças que estejam a ficar para trás na educação e precisem de mais ajuda.

    Mas no outro lado da distribuição, nos tais sobredotados, parece-me só útil para fazer dinheiro à custa dos pais babados...

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  5. E não se pode deixar de lado aquestão central: o que se entende por "inteligência"? Picasso, por exemplo, era menos inteligente do que Einstein ou vice-versa? Beethoven, menos ou mais do que Pessoa?

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  6. Aquilo que aferi desta conversa, é que o QI é relativo.
    Alguém com um QI de 130 e 20 anos, se não aprender mais nada chega aos 26 com um QI de 100, e se a média da inteligencia da população subir, os mesmos conhecimentos passam a representar menos na escala.
    Isto agora sou eu a concluir... Se assim é, então essa escala não serve de modo algum para indicar sobredotação de ninguém! É meramente relativa, e só depende da amostra base.

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  7. Ludwig

    Para que não haja dúvidas, assino o que disseste por baixo e faço o mesmo que fazes com os teus pequeninos aos meus sobrinhos: observo as peculiaridades de cada um e acho encantador. Por acaso são espertíssimos, mas se não fossem tão espertos gostaria na mesma deles. Porque são meus e porque são uma doçura!

    Cometeste de novo o erro de ser lógico. Há quem não seja, sabias? Há pais (e isto é mais velho que eu sei lá o quê) que enchem a boca a falar das proezas dos filhos, colocando pressão sobre os putos. Por outras palavras, vivem a vida dos filhos como se fosse deles.

    Por que isso, tentam corrigir o que não conseguiram fazer em putos (por falta de capacidade ou calacice) com as realizações dos filhos. Não sabendo que os filhos não lhes pertencem, mas foram-lhes "atribuídos" para tomar conta deles até serem independentes. O pior é que muitos deles queixaram-se precisamente disso em relação aos pais!

    Em relação ao QI e sobredotação, parece-me útil no sentido de encontrar um meio de ajustar a aprendizagem a quem sai fora da média. De facto, não é necessariamente indicação de sucessos futuros, mas não diagnosticar um ligeiro avanço PODE provocar desinteresse nos pequeninos.

    No fundo, é igual a ajudar os meninos com défices de atenção, Asperger, dislexia ou hiperactividade e tentar que se encaixem mais numa média. De preferência sem serem estigmatizados.

    Lembras-te de ter dito que dei catequese? Tinha na minha turma uma menina com Asperger e uma com não faço ideia o quê. Mais que qualquer coisa que tenha ensinado aos pequeninos, tentei transmitir que tinham que respeitar todos e não fazer pouco deles. No caso da primeira tive sucesso, mas no da segunda não saí da cepa torta. Nem eu nem ninguém, porque passaram 2 anos e acho que ninguém sabe o que ela tem. Dito isto, não posso salvar o mundo nem ninguém me encomendou tal empreitada.

    Que diabo, então vês a TVI?? Isso é contra a minha religião!!

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  8. O QI é basicamente aquilo que um teste de QI mede. Se é inteligência ou não é uma questão mais difícil, e algo subjectiva.

    Há perguntas de memorização, padrões geométricos, vocabolário e coisas dessas. Fazem os testes a uns milhares de pessoas, e tiram a média e a dispersão dos resultados. Depois ajustam as classificações de forma a que ~95% da população esteja entre 70 e 130, e de forma a que não haja diferença entre os sexos (há muitos tipos de perguntas que um dos sexos responde melhor que o outro).

    O resultado é um teste que pode ser útil para diagnosticar um conjunto de pessoas ou alguns problemas individuais, mas, como qualquer outro teste, tem muito ruído, e não faz sentido caracterizar alguém pelo resultado que teve num teste.

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  9. Ludwig

    A inteligência é relativa e há várias formas dela. Mas estou a ensinar o Pai Nosso ao padre, certo?

    Dito isto, não te esqueças que estás a falar de Ciências Sociais, que têm variáveis complicadíssimas. E muitas! Pesando os prós e os contras, e vendo o ruído, é melhor que se faça alguma coisa do que coisa nenhuma. Como em tudo na vida.

    Mas repara quando éramos pequenitos não havia hiperactivos nem Asperger nem nada disso: duas lapadas davam conta de tudo. E muita criança se há-de ter perdido com essa abordagem. E outros adaptaram-se e deram gente!

    Mas em relação à atitude dos pais e Júlias Pinheiros, assino por baixo o que disseste. Se for preciso de bilhete de identidade na mão, para não haver dúvidas. Só de pensar que a Júlia Pinheiro apresentou a "noite da má língua" até me dá vontade de chorar! É como diz a outra publicidade: a vida custa a ganhar! Ou uma do meu pai: o dinheiro está caro!

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  10. Penso que estamos de acordo, mas, só para esticar um pouco a conversa:

    «é melhor que se faça alguma coisa do que coisa nenhuma. Como em tudo na vida.»

    Isso depende do que se vai fazer. Muitas vezes, mais valia não ter feito nada :)

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  11. Lindo! Muito bem dito! Adorei!

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