domingo, junho 17, 2007

Ética, parte 4: Apelo à natureza.

A lei natural é um tema complexo na filosofia ética, mas o seu maior problema é evidente num exemplo simples. É natural ter cáries, mas nem por isso é imoral usar pasta de dentes.

Quem justifica um principio ético pela observação que é assim na natureza ou está distraído ou a tentar enganar. Porque deixa omisso que primeiro usou um principio ético para escolher esse exemplo que apresenta. Seja qual for. É um problema semelhante ao de basear a ética na fé religiosa. Quer nas religiões quer na natureza abundam exemplos do bom e do mau, e só sabendo primeiro distingui-los é que conseguimos apontar o bom exemplo. Como louvar o leão que defende os seus filhos e não mencionar que mata os dos outros.

Para David Hume este problema viria da impossibilidade de passar de uma constatação de facto – aquilo que é – para um juízo de valor – aquilo que deve ser – sem recorrer a outro juízo de valor. E parece-me que ele tinha razão. A natureza dá-nos meros acontecimentos. O que acontece, e a forma como a evolução nos moldou, não é intrinsecamente bom nem mau. É, e pronto. Bom e mau são classificações criadas pela percepção subjectiva.

Mas isto do natural ser bom está sempre na moda. Da medicina alternativa aos iogurtes apresentam-nos muita coisa como sendo boa por ser natural. E nunca mencionam que o arsénico e o veneno de cascavel também são 100% naturais. Na ética, criticam os direitos dos animais porque somos omnívoros (será a violação menos condenável se o violador for heterossexual?), criticam o capitalismo pelo nosso instinto de cooperação, o comunismo pelo nosso instinto territorial, ou defendem cada um escolhendo o exemplo contrário.

A coisa chega a tal absurdo que alguns defendem a igualdade de direitos entre raças ou sexos afirmando que somos todos iguais. Não só perdem a noção dos factos como perdem a noção da ética. Não somos iguais. Isso é um facto. Mas o que importa é que todos merecemos a mesma consideração porque todos sentimos, pensamos, temos consciência de nós próprios e autonomia nas nossas decisões. Que a natureza tenha dado a uns características diferentes das que deu a outros é eticamente irrelevante. Merecemos igual consideração mesmo sendo diferentes. Isso é ética. O resto é cenário.

Todas as formas de apelo à natureza partilham este problema fundamental. Nem tudo o que ocorre na natureza é bom. Para fundamentar a ética na natureza há que seleccionar o que a natureza tem de bom e ignorar o que tem de mau. Mas é a ética que distingue o bom do mau. Temos assim a tarefa impossível (ou desonesta) de precisar antes daquilo que apresentamos como vindo depois.

O resultado é a aldrabice de um tentar impor aos outros o que julga importante. Porque acha que o importante é ser humano agora é isto que tem que valer para todos. Ou que o importante é ser omnívoro. Ou querer propriedade privada. Ou não querer. Mas qualquer que seja a escolha será sempre errada porque nada é importante em si, e de igual forma para todos. A relevância ética seja do que for é necessariamente subjectiva.

O único universal ético com que podemos contar é que cada sujeito tem uma perspectiva subjectiva única. O que é importante para um nem sempre é importante para os outros. Escolher o que é importante para mim e tentar impô-lo aos outros não tem nada de ético, por muito que eu gesticule invocando deuses, instintos, ou naturezas. A ética tem que ser um critério que considere todos os pontos de vista, toda a diversidade do subjectivo. Seja natural ou não.

Episódios anteriores:
Ética, parte 1: Subjectividade.
Ética, parte 2: Fundamentos.
Ética, parte 3: Deus?... Para quê?

4 comentários:

  1. Devias ter acabado com um "A ética natural é treta!"

    Um abraço.

    P.S. - Segue uma dedicatória em forma de vídeo no meu blogue.

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  2. "A ética tem que ser um critério que considere todos os pontos de vista, toda a diversidade do subjectivo. Seja natural ou não"

    Quem tem ética levanta o dedoo! hehehe

    abraço. adorei o texto.

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  3. Bem dito caro Ludwig.
    A ética é universal e não resultado de conjunturas. O mal é que só nos apercebemos dos erros à posteriori.
    Para alguns antepassados nossos a escravatura era perfeitamente "ética", para nós é aberrante. E no entanto, ainda hoje temos coisas que aceitamos e temos o descaramento de chamar ética, mas, que partiram de situações absolutamente intoleráveis. Os impostos por exemplo. Surgem para pagar a protecção militar que os senhores feudais "ofereciam" a quem vivia nas "suas" terras, num esquema que hoje em dia se chamaria extorção. Pois o curioso, é que esses impostos é que mantinham o veículo da repressão vivo. Sem impostos não havia exercito (ninguém luta por outrem sem devida recompensa). Moral e eticamente isto está errado, mas, hoje em dia o ético é todos pagarem, pois aparentemente já nos distanciamos das causas originais da imposição...

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