quinta-feira, março 31, 2011

O genuíno.

Algumas pessoas responderam à minha questão de como um ateu pode distinguir entre um cristo falso e um genuíno (1). No entanto, o problema ficou por resolver.

O Jónatas Machado propôs que «Jesus Cristo, de que fala a Bíblia, teve uma vida pública de cerca de 3 anos, não tento escrito qualquer livro nem contado com a comunicação e as redes sociais. Ainda assim conseguiu ser o personagem mais influente da história da humanidade.» Mas só se tornou influente muito depois de morrer, e só então é que, retroactivamente, associaram a ele as profecias. Se compararmos a fama e a influência durante o tempo de vida, até o José Castelo Branco ultrapassa o tal Jesus que dizem ser o genuíno. O Jónatas pergunta também como é que eu posso distinguir entre o Napoleão verdadeiro e os malucos que dizem ser Napoleão. Nesse caso é fácil. Napoleão era um humano como qualquer outro e, a partir do momento que morreu, morto ficou. Se alguém diz ser Napoleão está obviamente enganado. O problema surge apenas quando permitimos milagres, ressurreição, omnipotência e essas coisas. A partir daí vale tudo.

Segundo o Miguel Panão, no caso do INRI CRISTO basta «o bom senso». Concordo. Tanto no caso deste, como no caso de qualquer outro. Se alguém diz ser filho do criador do universo, o bom senso dir-lhe-á está bem, abelha. Mesmo os critérios que o Miguel acrescenta, quer o do ridículo – «afirmar-se, de modo ridículo, como sendo Jesus» – quer o da ressurreição – «Jesus morreu e ressuscitou» – não servem para distinguir a religião do Miguel daquela professada pelo INRI CRISTO. O ridículo toca tanto ao senhor que diz ser Jesus como ao homem de saias a dizer que uma bolacha se transformou no corpo do criador do universo. E a ressurreição não é um dado. É uma das alegações em causa e, por isso, não serve para distinguir nada.

O Mats também tentou responder mas, infelizmente, não parece ter percebido a pergunta. Propõe que eu determine se alguém é a encarnação do omnipotente criador do universo da mesma forma como se distingue entre duas pessoas normais. Não diz sequer se é pelo bigode, pela forma do nariz ou pela cor dos olhos. Afirma, no entanto, que «Não há "consistência" nenhum[a] em dizer que "ambos são ridículos" porque Um Deles não é.» Mesmo que concordasse com a afirmação, persistiria o problema de determinar qual é que é menos ridículo. Além de que “não ser ridículo” parece um critério muito frouxo para se identificar conclusivamente o criador de todo o universo. Mas talvez eu seja ateu precisamente por ser demasiado exigente nestas coisas.

É possível que usar o INRI CRISTO como ponto de partida tenha limitado a qualidade das respostas à minha questão. O confronto com os aspectos mais obviamente insanos da religiosidade desencoraja a participação dos crentes que se consideram mais sofisticados. Mas a pergunta é pertinente, e devia ser importante para os crentes que apregoam o diálogo com ateus e agnósticos: que critérios pode alguém sem fé usar para determinar a religião mais correcta?

Notem que não estou a pedir uma receita como “reza e ser-te-á revelado” ou “tem fé e verás”. Não é racional aceitar a conclusão antes de me darem as premissas. O que quero é uma forma imparcial de determinar se há alguma religião verdadeira no meio de tanta crença da treta. Suspeito, no entanto, que não haja tal critério. Sempre que o peço ou me dão coisas vagas como “a causa não causada”, que tanto pode ser o Jahvé como o Saci-pererê, ou então uma petição de princípio, invocando tradição, fé e afins.

A linha mais óbvia é a que separa o ateísmo das religiões. Basta um mínimo de exigência epistemológica para rejeitar como especulação infundada tudo o que se diz acerca de deuses que ninguém vê. Quase todo o universo é hostil à vida como a conhecemos. As leis da natureza são indiferentes ao sofrimento e à injustiça. Os mitos, lendas, rituais e dogmas são facilmente explicados pela imaginação humana, e tendem a ficar muito aquém da complexidade e riqueza da realidade. E até é evidente para quase todas as pessoas que, no mínimo, quase todas as religiões são falsas. Se, ainda por cima, nem os crentes sabem explicar como se distingue das outras uma religião verdadeira, então o veredicto só pode ser um. Isso dos deuses que criaram o universo é tudo treta.

1- Treta da Semana: INRI CRISTO

terça-feira, março 29, 2011

Ética verdadeira.

No outro post sobre ética eu defendi que esta nunca pode ser objectiva no sentido forte de ser atributo de objectos, mas apenas no sentido fraco de ser independente da opinião individual de qualquer sujeito. O João Vasco propôs «um sentido intermédio», segundo o qual a ética «é uma coisa a ser descoberta, mais do que um mero produto de uma convenção social. [...] Nesse sentido é como os factos da natureza, que são o que são mesmo que todos os seres conscientes sobre eles estejam equivocados [… e ...] é objectiva na medida em que [continua] a ser verdadeira mesmo que ninguém o saiba.»(1) Discordo, pela diferença na direcção do ajuste entre estes conceitos e a realidade. Vou aproveitar um exemplo da Elizabeth Anscombe para explicar a minha objecção*.

O Manuel vai às compras com uma lista do que que deve comprar. A Maria, a espiá-lo, anota tudo o que ele compra. Quando o Manuel se engana e põe no carrinho massa em vez do arroz que a lista indica, não é alterando a lista que corrige o erro. Tira a massa do carrinho e põe lá um pacote de arroz. Isto porque a direcção do ajuste desejado é da realidade para a lista. O que o Manuel quer é que a realidade se ajuste à lista. Agora a Maria nota que tinha escrito “massa” na sua lista mas, em vez de massa, o Manuel tem arroz no carro das compras. Ao contrário do Manuel, a Maria não vai trocar o arroz por massa no carrinho. Como a direcção do ajuste que ela quer é da lista para a realidade, a Maria vai apagar “massa” e escrever “arroz”.

A verdade e a descoberta aplicam-se a descrições como a lista da Maria. A Maria está a descobrir o que o Manuel compra e é a lista da Maria que pode ser verdadeira ou falsa. Porque é esta que pretende ajustar-se à realidade. A lista do Manuel não é assim. É normativa, especifica o que deve ser em vez de descrever o que é, foi inventada em vez de descoberta e não pode ser nem verdadeira nem falsa. Se o Manuel devia comprar arroz e comprou massa, então foi o Manuel que se enganou. A lista dele não passa de verdadeira a falsa.

Eu rejeito a proposta do João Vasco porque a ética é normativa, tal como qualquer moral que dela se derive. O objectivo da ética não é conformar-se à realidade mas dizer a que padrões a realidade se deve conformar. Concordo que «mesmo que escravos e esclavagistas acreditassem na moralidade da escravatura, ela continuaria a ser imoral». Eu também quero que a ética seja mais sólida do que uma lista de compras. Não pode mudar com as modas nem faz sentido aquela desculpa do “contexto histórico” com a qual tentam justificar as barbaridades na Bíblia. Apedrejar crianças, escravizar pessoas, maltratar mulheres e matar inocentes é imoral em qualquer “contexto”. No entanto, a ética não algo que se possa descobrir, nem que possa ser verdadeiro ou falso, porque estes conceitos exigem a direcção de ajuste oposta. Só uma coisa que se quer ajustar à realidade é que pode ser verdadeira ou descoberta. Quando o que queremos é ajustar a realidade a algo esses conceitos não se aplicam.

A ideia da ética como verdade que se descobre tem mais dois grandes problemas. Um é implicar que haja uma, e só uma, ética válida. Pode não ser esse o caso. Talvez seja possível criar vários sistemas éticos, todos eles universais e todos eles um bom fundamento para a moral. Não estou a defender o relativismo; defendo que muitas coisas serão necessariamente imorais em qualquer ética. Mas pode haver várias soluções para este problema. Ou não haver nenhuma. Também pode ser que aquilo que exigimos da ética seja impossível. Talvez nunca se consiga criar algo que, ao mesmo tempo, seja fiel aos valores de cada sujeito mas transcenda os valores de qualquer individuo. Parece-me que a ideia da ética como uma verdade por descobrir esconde a complexidade do problema que é criar tal coisa. Comparado com a tarefa de criar um sistema ético, descobrir verdades é canja.

E ignora a barreira entre o que é e o que deve ser, o que deixa passar uma data de tretas. Revelação divina, livros sagrados, a falsa autoridade dos sacerdote, as “leis naturais” e coisas tais são apresentadas como fundamento moral na premissa da ética ser algo que “está lá” para ser descoberto. Ou revelado. Não contentes com isso, depois de “provarem” que a moral certa é aquela porque o seu deus diz que é, fecham o círculo “provando” que o seu deus existe porque só assim a moral certa será aquela. Evitava-se a tonteira destas voltas reconhecendo, à partida, que ética e deuses são ambas criações nossas. E que só uma delas tem utilidade.

* Se bem que foi Searle quem relacionou este exemplo com o problema da direcção do ajuste entre conceitos e realidade. Mais (demais?) detalhes na Wikipedia.

1- Comentário em Mais do mesmo.

Editado no dia 30 para corrigir várias gralhas. Obrigado a todos os que as apontaram.

domingo, março 27, 2011

Treta da semana: INRI CRISTO.



Este vídeo revela como a fé pode milagres. É que um discurso ainda mais ridículo do que o do Paulo Futre é um verdadeiro milagre. Mostra também como são irrefutáveis os mistérios da fé. INRI CRISTO fala-nos de um plano teológico e tretafísico, pelo que nenhum teste empírico poderá refutar aquilo que ele nos transmite. E demonstra, como se fosse preciso, que por muito disparatado que algo seja há sempre alguém que acredite e se dedique a isso. É o tal fenómeno a que chamam “espiritualidade”.

Não tenho muito mais a dizer. Deixo apenas o vídeo da entrevista que INRI CRISTO deu ao Jô Soares, chamando especial atenção para as coreografias das discípulas, e um convite ao Bernado Motta, Miguel Panão, Alfredo Dinis, Mats, Jónatas Machado e demais comentadores cristãos para me explicarem como é que um ateu pode distinguir entre os cristos verdadeiros e os falsos. É que, da outra vez, pelo que contam, também muita gente duvidou dele.



Mais sobre INRI CRISTO em inricristo.org. Obrigado ao Francisco Burnay pela ligação ao “emissárrio do P'HAI”.

sábado, março 26, 2011

Saímos da frigideira...

O ping demitiu-se. Agora deve vir o pong. Outra vez. De 1976 para cá, o PSD foi responsável por 70% do défice e o PS pelos restantes 30% (1). Agora é preciso uma atitude completamente diferente mas, suspeito, vai tudo continuar na mesma. Os ratos continuam a eleger ora os gatos brancos, ora os gatos pretos, na esperança que os gatos de agora sejam melhores que os de ontem. Se bem que, na verdade, não haja muita escolha. Talvez se os partidos tentassem colaborar mais e passar menos tempo a tramarem-se uns aos outros as coisas melhorassem um pouco.

Assim, vão piorar. O PSD já disse que deve aumentar os impostos, o que seria boa ideia se fossem os impostos certos. Mas vão aumentar «os impostos sobre o consumo, e não [os] impostos sobre o rendimento das pessoas»(2). Até soa bem, se não olharmos para os detalhes. Mas o que chamam “consumo” não é só carros e whisky. É também electricidade, água, arroz e farinha. E o rendimento não é um prémio justo que cada um ganha pelo seu esforço e pelo que contribui para a sociedade. Ao contrário do que a direita sempre presume, o rendimento é, principalmente, o que calha a cada um na lotaria do capitalismo. É pura sorte (ou azar) que um professor universitário ganhe mais dinheiro do quem recolhe o lixo. São apenas pressões de oferta e procura, sem nada que ver com o mérito ou esforço de ninguém. É isto que faz com que um trabalho desagradável, monótono e com horários horríveis pague menos do que um trabalho interessante e confortável.

O PSD está a planear mais uma medida injusta, a somar a outras que o PS tem tomado. Ouvi um comentador na TV a dizer que o IVA era “de certa forma democrático” porque afecta todos de igual maneira. Isto é um disparate. Um aumento no IVA não afecta de igual maneira quem ganha 500€ e quem ganha 10.000€. Dói muito mais a quem ganha menos. Obviamente, porque cada euro vale mais para quem tem menos. Mas isto não é verdade apenas em termos absolutos. É verdade até em termos relativos. Dez porcento do rendimento faz mais diferença na qualidade de vida de quem ganha 500€ do que na de quem ganha 10.000€. Os 50€ de diferença para o primeiro sempre lhe tapa um pouco mais do mês. Os 1.000€, ao segundo, não representam nada que lhe fizesse falta e do qual se tenha de privar. Por isso, se quisermos exigir o mesmo sacrifício de todos, não só temos de cobrar mais a quem ganha mais mas temos também de cobrar uma fracção maior. E isto assumindo que vamos exigir o mesmo sacrifício a todos quando uns estão muito melhor do que os outros. É uma questão controversa, mas é difícil defender que todos os pobres o são porque merecem e não por algum azar, genético ou social, fundamentalmente injusto.

O IVA esta longe de um sacrifício justo. Dá a impressão de ser progressivo por ter taxas mais baixas para os “bens essenciais”, mas essa impressão depende da premissa questionável de que os pobres têm menos direito a café ou enlatados e que, por isso, é legítimo taxar esses bens como se fossem só para os mais ricos.

Trocar o Sócrates pelo Passos Coelho não vai fazer nada aos problemas fundamentais. Não vai resolver as injustiças desta “política de austeridade” que cobra aos mais pobres as aldrabices pelas quais os ricos ficaram ainda mais ricos. O combate ao tachismo vai continuar meramente cosmético, porque vai deixar na mesma o rendado de influências, favores e negociatas que o PS e o PSD têm urdido conforme alternam no poder. Ninguém vai mexer no sistema financeiro pelo qual os contribuintes financiam os bancos privados por intermédio dos bancos públicos, e os Estados são obrigados a contrair empréstimos com os bancos privados, subordinando o governo democrático às leis de mercado em vez de ser o mercado regulado pelas leis da democracia (3).

Além disso, as próximas eleições vão novamente dizer à malta do PS e do PSD que podem fazer o que quiserem porque terão sempre o lugar assegurado. Se não for numa legislatura, será na outra a seguir.

1- Manuel Caldeira Cabral, Jornal de Negócios, 10-9-2009, Afinal, quem aumentou a despesa pública?
2- Negócios Online, Passos Coelho assume "compromisso" de não cortar salários nem pensões mas admite subida de IVA
3- José Castro Caldas, A “esquerda” que se sujeita e a direita que mente

quinta-feira, março 24, 2011

Mais do mesmo...

O Bernardo Motta tem-me criticado pela superficialidade com que trato o que ele chama “os melhores argumentos teístas”. Argumentos como, por exemplo, esta versão do argumento moral que o Bernardo propõe para refutar um tal de “naturalismo darwinista”.

«(1) Se o naturalismo darwinista é verdadeiro, então a moralidade humana é um produto do neodarwinismo (mutação, cruzamento, selecção natural)
(2) Se a moralidade humana é um produto do neodarwinismo, então não existem factos morais objectivos (verdades morais objectivas)
(3) Existem factos morais objectivos
(4) Logo, o naturalismo darwinista é falso»
(1)

Se o Bernardo se refere à teoria da evolução, muito diferente hoje do que era quando Darwin deu o pontapé de saída, a primeira premissa é falsa. Há factores biológicos hereditários que fundamentam a nossa moralidade, como a empatia, a noção intuitiva de justiça e a compreensão das intenções dos outros. Este atributos são evidentes também nos nossos parentes primatas mais próximos, claramente herdados de um antepassado comum. Mas a maioria dos elementos da moral, nas várias culturas, não surgiu por herança e modificação de genes. O respeito cristão pela hóstia consagrada, as formas de vestir, de se dirigir aos pais ou a poligamia dos Mórmones são preceitos morais que, em detalhe, devem muito mais a interacções sociais do que à evolução biológica.

Mesmo ignorando a falsidade da premissa, a inferência no ponto 2 é absurda. A evolução da moral humana não permite concluir nada acerca da “existência de factos morais objectivos”. Pode haver factos morais, a nossa moral ter evoluído e coincidir com esse factos; pode ter evoluído e não coincidir; pode nem existir qualquer facto moral; podemos ter sido criados por um deus mas não existirem factos morais; ou existirem mas não serem os que julgamos ser, e assim por diante. Uma coisa não tem nada que ver com a outra. O Bernardo parece também assumir, implicitamente, que a moral humana é a “Moral Verdadeira, Única e Certa®”, uma premissa difícil de aceitar com a evidência que temos.

Inaceitável também é a alegação do ponto 3, de que “existem factos morais objectivos”. Se “objectivo” quer dizer ser atributo de um objecto, então é evidente que não há factos morais objectivos. Não faz sentido falar de deveres ou direitos de algo que não seja sujeito. A gravidade é um atributo objectivo, mas o dever de respeitar os mais velhos não é aplicável a objectos. E se “objectivo” tiver aqui o sentido mais fraco de independente da opinião de qualquer sujeito, isso não levanta problemas para o naturalismo. É perfeitamente possível que essa moral seja um produto natural da interacção de sujeitos que criam normas consensuais e resistentes a caprichos individuais. Isso existe, sim, mas no sentido em que existem as regras de trânsito, a adopção e os contratos de arrendamento. Existe porque o criamos.

É verdade que, subjacente a estes preceitos morais, gostaríamos que houvesse um fundamento ético universal, algo que permitisse avaliar qualquer norma de forma idónea e independente, e que separasse as morais boas das más (e há muitas que são más). Mas, após milhares de anos de tentativas de sucesso modesto, não se justifica assumir que tal coisa existe e, ainda por cima, que tem origem sobrenatural e nos é dada de bandeja num livro qualquer. Pelo contrário. Ao que tudo indica, se alguma vez conseguirmos um fundamento destes para a moral, será à custa de o criarmos, entre todos, usando as capacidades que herdámos pelo sacrifício de todos os que a evolução condenou a não serem antepassados de ninguém.

O Bernardo até pode ter razão em queixar-se de que eu não perco muito tempo com os “argumentos” teístas. É uma opinião subjectiva. Eu até acho que perco mais tempo com isto do que devia ser necessário. Mas, seja como for, a minha análise não é breve por ignorância ou receio. O problema é simplesmente que os “argumentos” teístas não passam de umbigologia. Inventam umas premissas sem fundamento, não apresentam evidências, martelam inferências sem sentido e tudo isso só para chegar à conclusão que já escolheram à partida. Como um argumento só pode persuadir pela razão se partir de premissas aceites por ambas as partes e seguir uma linha de inferência válida e clara, facilmente se vê que “argumentos” como este que o Bernardo apresenta não servem para nada. Não é preciso uma análise muito elaborada.

PS: Na próxima sexta-feira o Bernardo Motta vai debater com o Ricardo Silvestre no bar do Helder Sanches. Para quem estiver interessado, há mais detalhes aqui e aqui.

1- Bernardo Motta, Ateísmo - homeopatia para o intelecto

terça-feira, março 22, 2011

Os censos e os recibos verdes.

O ponto 32 do questionário individual dos Censos 2011 pergunta «Qual o modo como exerce a profissão indicada?». Este ponto tem suscitado polémica por causa da indicação «Se trabalha a “recibos verdes” mas tem um local de trabalho fixo dentro de uma empresa, subordinação hierárquica efectiva e um horário de trabalho definido deve assinalar a opção “Trabalhador por conta de outrem”».

Uma objecção é que a situação descrita é ilegal, pois se alguém trabalha nessas condições não é um trabalhador independente e, portanto, não pode legalmente ser pago a recibos verdes. Tem de ter um contrato de trabalho. Realmente, esse parece ser o espírito da lei. O problema é que a letra da lei deixa buracos suficientes para passar qualquer coisa. O artigo 5º do DL 338/93 estipula que se presume ser trabalho independente «quando ocorram algumas [...] circunstâncias» tais como «O trabalhador tenha [...] a faculdade de escolher os processos e meios a utilizar, sendo estes, total ou parcialmente, da sua propriedade» ou «A actividade do trabalhador não se integre na estrutura do processo produtivo»(1). Ora isto parece-me mesmo lei para os políticos dizerem que fizeram alguma coisa, os advogados ganharem balúrdios, o processo arrastar-se e, no fim, não se chegar a conclusão nenhuma. Ou ser conforme der na cabeça ao juiz.

Mas a objecção principal é que esta indicação esconde a situação dos trabalhadores precários. O Bloco de Esquerda quer ver a questão “esclarecida” (2). O PCP diz que «É esconder completamente e impedir que se saiba a realidade dos falsos recibos verdes»(3). Há até quem sugira ignorar a indicação no questionário e responder “outra situação” porque, alegadamente, é mais verdadeiro (4).



Acho que estão baralhados. A Direcção Geral dos Impostos recolhe todos os anos informação completa e actualizada acerca dos recibos verdes. É desnecessário que nos censos se indique também que se está a receber a recibos verdes. O que importa saber é quais são as condições efectivas de trabalho. É essa informação que falta. E é essa informação que nos pode indicar quantos trabalhadores estão a ser privados dos seus direitos pelos falsos recibos verdes.

No final de 2010 havia 77 mil trabalhadores a recibos verdes, dados que o INE já tem e disponibiliza (5). Se esses 77 mil responderem “trabalhador por conta própria” ou “outra situação” nos censos ficamos a saber exactamente o que já sabíamos antes. Que há 77 mil a receber recibos verdes. Mas se todos os que tiverem «um local de trabalho fixo dentro de uma empresa, subordinação hierárquica efectiva e um horário de trabalho definido» seguirem as instruções do inquérito e marcarem a cruz como trabalhadores por conta de outrem, vai haver menos de 77 mil nas outras categorias. É essa diferença que nos dá o número de falsos recibos verdes.

A intenção do protesto pode ser boa, mas é asneira. Se protestarem contra a “ocultação” ignorando a indicação no questionário vão acabar por esconder o que se tornaria evidente se respondessem de acordo com as condições efectivas de trabalho.

1- IGF, Decreto-Lei n.º 328/93
2- TVI 24, Censos 2011: BE quer questão dos recibos verdes esclarecida
3- IOL, Censos «escondem» falsos recibos verdes?
4- Via Cidadã do Mundo, Censos 2011 "escondem" falsos recibos verdes
5- Económico, Recibos verdes com maior aumento da década

domingo, março 20, 2011

Treta da semana: Kryon em Portugal.

Kryon, do Serviço Magnético, veio este fim de semana a Portugal. Ou, melhor dizendo, veio o Lee Carrol, que “canaliza” o Kryon. O Kryon é um ser transcendente e incompreensível mas que, por alguma razão, quando quer falar com pessoas em Portugal, tem de mandar o coitado do Lee Carrol meter-se num avião e viajar até cá. Nas (alegadas) palavras de Kryon, «Gostaria de poder partilhar consigo o que é ser uma entidade como sou, mas há implantes humanos básicos, de restrição psicológica, que simplesmente não vão permitir que compreenda. O meu nome é um “grupo de pensamentos”, ou “um pacote de energia” que me envolve e é reconhecido por todas as outras entidades. Este mesmo pacote de energia é enviado nas minhas comunicações com todos – por favor, aceitem isto simplesmente.»(1) Pois...

Com um “valor” de 180€, estes dois dias de conferência trazem ao público português não só as canalizações do Lee Carrol, que é o canalizador oficial do Kryon, mas também a "Malha e o DNA" da Peggy Phoenix Dubro, a “Lattice Logic” do Jorge Bianchi e a cura musical do Robert Coxon (2). Haverá também workshops como o «CURSO de Facilitador LatticeLogic™ Estilos de Vida», por um “valor” adicional de 330€, preço que se compreende por haver Estilos de Vida que não são nada baratos.

O Serviço Magnético, segundo consta, é muito importante porque «O campo magnético do planeta foi cuidadosamente calculado para respeitar a sua saúde – e permitir as suas lições de aprendizagem. Olhe ao seu redor. Que outros planetas encontra com campos magnéticos? […] Se encontrar outro planeta com um campo magnético, será a primeira suspeita da existência de vida biológica»(1). Isto é excelente, porque quer dizer que há vida biológica em Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. Talvez até em Mercúrio (3). É que, em geral, qualquer planeta com núcleo metálico líquido tem campo magnético.

Este evento vai decorrer no auditório da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa. O que não me parece boa ideia. Percebo que este auditório sirva vários propósitos, como seminários, congressos e espectáculos, e que não tenha exclusividade científica ou pedagógica (4). Aceitava que organizassem lá um concerto do Quim Barreiros, um espectáculo de ilusionismo ou até uma gala qualquer com a Júlia Pinheiro. Não me oponho a que cedam um auditório universitário para este congresso do Kryon só por não ser ciência. Oponho-me por ser treta.

O problema fundamental é que as pessoas só lá vão por julgarem que isto é verdade. Deixam-se levar pelo uso pseudo-científico de termos como “vibrações”, “energias” e “campos magnéticos”. Acreditam em coisas como a «Técnica de Equilíbrio do Campo Electromagnético® é o sistema de energia concebido para operar com a Malha de Calibração Universal®, um sistema na anatomia energética humana», e disparates afins (5). Penso que é lamentável uma universidade pública ser cúmplice destas coisas.

1- Kryon em Portugal, Quem é Kryon?
2- Kryon em Portugal, Programa
3- Astronomy Notes, Planet atmospheres and magnetic fields
4- FMD/UL, Auditório da FMD da UL (PDF)
5- EMF Balancing Technique®, A graceful, elegant and sophisticated form of energy work

sábado, março 19, 2011

Naturalismo.

O Bernardo Motta argumentou que o “ateísmo filosófico” está em decadência porque «o sonho do empiricismo lógico está morto», porque há «um número cada vez maior de filósofos a abraçar o teísmo», e porque «a vasta maioria dos filósofos naturalistas não têm justificação (filosófica) para o seu naturalismo»(1). Esta última justificação é curiosa, pois implica que alguns, pelo menos, têm justificação filosófica para o naturalismo. Ou seja, que o naturalismo, afinal, é justificado. Por fim, o Bernardo recomenda que os ateus encarem este problema «estudando os melhores argumentos teístas e procurando refutá-los, e em paralelo, montando bons argumentos ateístas que possam resistir a refutações teístas.»

Felizmente, é desnecessário desmontar, um a um, os argumentos teístas. E ainda bem. Porque além dos teístas há os astrológicos, do Reiki, da numerologia e de uma imensidão de outras tretas. Nunca mais se arrumava isto. Mas, felizmente, os argumentos de quem defende o tal sobrenatural são fundamentalmente diferentes dos argumentos contrários, e essa diferença fundamental basta para os rejeitar.

Os argumentos modernos pela existência do sobrenatural tendem a ser exclusivamente ontológicos. Ou seja, limitam-se a afirmar que as coisas são de certa maneira sem tocar no problema de como saber que são assim em vez de outra forma. O Bernardo dá um exemplo disso num post mais recente, onde afirma que o “milagre do Sol” foi apenas um fenómeno meteorológico raro e que o verdadeiro milagre foi Fátima avisar os pastorinhos de quando o fenómeno ia acontecer (2). Mas o Bernardo não tem forma de saber se foi Fátima, se foram extraterrestres ou se foi tudo treta dos miúdos. Todo o “sobrenatural” assenta em raciocínios destes, onde se parte assumindo, basicamente, aquilo onde se quer chegar.

O naturalismo, em contraste, é consequência de admitir que antes de afirmar como as coisas são é preciso uma forma fiável de distinguir entre afirmações verdadeiras e afirmações falsas. Sem isso, dissertar sobre o que é ou deixa de ser é como dar tiros no escuro. Não se acerta em nada e só se incomoda os outros com o barulho. E, ao contrário das muitas doutrinas acerca dos diversos sobrenaturais, o naturalismo não é um conjunto de proposições. É uma atitude, uma abordagem, um método. Consiste em responder às questões com hipóteses informativas e testáveis em vez de com metáforas vagas, contradições, mistérios, apelos à fé ou flatulências linguísticas sem sentido.

Isto é importante porque acaba por ser esta a única diferença entre o natural e o sobrenatural. Na prática, não se consegue usar estas categorias para classificar as coisas em si. A gravidade é uma deformação na geometria do espaço-tempo e, ao nível quântico, abundam os efeitos sem causa. Se alguma vez houve candidatos a sobrenatural, são estes. Comparados com a estranheza da realidade, os deuses, demónios e fantasmas que a imaginação humana foi inventando são coisas perfeitamente corriqueiras. Não há maneira, que faça sentido, de separar as coisas em naturais e sobrenaturais. Quer sejam coisas reais, quer sejam imaginárias.

A distinção entre natural e sobrenatural está nas alegações que se defende, e não nas coisas em si. Enquanto o naturalismo leva a propor hipóteses concretas que possam ser testadas, e que sirvam para compreender a realidade, o resto limita-se a debitar tretas sem qualquer justificação, com a desculpa de que, como é sobrenatural, então vale tudo.

1- Bernardo Motta, O ocaso do ateísmo filosófico
1- Bernardo Motta, Fátima e o dito "milagre do Sol"

quinta-feira, março 17, 2011

Fé e Razão.



Editado: Este vídeo, aparentemente, não é genuíno. A rapariga disse, num vídeo posterior, estar a fingir ser cristã. No entanto, há sempre muito disto quando há desgraças:

Cho, Kim condemned for quake comments

Glenn Beck Says Japan Quake Was ‘A Message From God’

É que esta gente diz tanto disparate que nem se consegue distinguir o genuíno do sarcástico (lei de Poe, como menciona o JN nos comentários).

terça-feira, março 15, 2011

Modelos económicos.

A propósito da minha proposta de taxar os ricos em vez dos pobres (1), alguns comentários foram que não podia ser, que eu estou muito enganado acerca disto, mas que são questões complexas que não há tempo para explicar. Ouve-se muito isto, na economia. Mas não me convence. Eis as razões porquê, para além da óbvia de que, a maioria das vezes, isto é desculpa de quem quer aparentar mais conhecimento do que aquele que tem.

Primeiro, precisamente porque o problema é complexo. Comparativamente, o problema de decidir a velocidade máxima permitida na autoestrada é muito mais simples do que decidir as taxas e os escalões do IRS. Mas mesmo esse é complexo demais para se dizer que o limite tem de ser 120Km/h e nem mais uma fracção que seja. Depende do traçado das estradas, do tipo de automóvel, do clima e de muita tecnologia que tem evoluído desde que se escolheu este valor. Por isso, se alguém alegar que os tais 120 são um número rigoroso calculado por modelos fiáveis e que não pode ser mudado, duvido. É um número como qualquer outro num intervalo considerável de incerteza. As taxas de IRS, IRC e afins são como isto, mas ainda mais. Confio menos em quem disser, sem justificar, que é ruinoso aumentar 7% na taxa do último escalão do IRS do que em quem diga ser ruinoso aumentar 7% o limite de velocidade na autoestrada.

Em segundo lugar, não há uma forma consensual de calcular os efeitos dos impostos. Há economistas clássicos, neo-clássicos, keynesianos e de mais uma data de clubes propondo modelos para todos os gostos. Não é que seja tudo treta na economia. Há princípios sólidos que se integram bem no resto da ciência, e que tanto explicam porque é que o Skip é mais caro do que uma marca branca, porque as penas do pavão são tão vistosas ou porque as árvores são tão altas. Mas para modelar uma variação de 7% no IRS os modelos económicos ficam muito aquém daquilo que se pode testar e determinar como fiável e preciso. Daí a diversidade de “ismos” nesta área.

Além disso, enquanto que é difícil prever os efeitos que subir ou baixar os impostos terá na economia, para o político é relativamente fácil prever os efeitos que essa decisão terá na probabilidade de obter um cargo de direcção numa empresa quando sair da política. Mesmo que lhe pese a consciência por prejudicar todo aquele povo que cumprimentou, abraçou e elogiou durante as suas digressões a caminho do poder, se há um facto económico estabelecido é que um ordenado chorudo e duas ou três reformas ajudam muito a tolerar o infortúnio dos outros.

Mas a razão mais importante não é nenhuma destas. Mesmo que todos os políticos fossem honestos, todos os que dizem perceber muito de economia tivessem razão e todos os modelos económicos fossem fiáveis e bem testados, ainda assim restava o problema fundamental de se estar a medir a coisa errada. Os indicadores quantificáveis como o PIB, o rendimento médio disponível e a taxa de desemprego são úteis, principalmente, porque são quantificáveis e porque se pode incluí-los facilmente em modelos matemáticos. No entanto, não são aquilo que queremos. Nenhum destes é importante por si.

O que queremos maximizar são aspectos mais difíceis de quantificar como a saúde, a liberdade, a estabilidade social ou a qualidade de vida. Estes correlacionam se bem com o PIB em países mais pobres mas, em países como o nosso, esta correlação é muito menos significativa do que se assume implicitamente quando se põe o crescimento económico em primeiro lugar.

Além disso, estas medidas médias são tão representativas como dizer que temos meio útero e um testículo per capita. Pouco interessa que o rendimento médio suba por um grupo pequeno de estupidamente ricos ficar ainda mais estupidamente rico. A esses pouca diferença faz e aos outros de nada adianta. É um enriquecimento ilusório do país. Por outro lado, uma melhor distribuição da riqueza pode fazer muito pela qualidade de vida da grande maioria mesmo sem qualquer crescimento económico pelos indicadores usuais, e com um impacto irrisório naqueles cujo rendimento encolher um pouco.

Por isso, quando me dizem que não se pode subir os impostos dos mais ricos porque isto é muito complicado, a minha conclusão é que estão a exagerar a sua capacidade para prever estas coisas, a subestimar as margens de erro e a focar os aspectos menos importantes. Sim, se eu fosse professor no Luxemburgo ganhava cinco vezes mais. E certamente que lá se vive muito bem. Mas o dinheiro que ganho por cá também chega para viver confortável, e acho mais importante reduzir as disparidades económicas que geram tantos problemas sociais, de educação, de criminalidade e de saúde, e que prejudicam até própria democracia, do que sacrificar tudo para aumentar o PIB só porque o PIB é um indicador conveniente e o Luxemburgo tem um maior do que o nosso.

1- O meu protesto.

Editado às 16:50 para tirar um H do ouvido. Obrigado ao nmhdias por apontar a gralha.

domingo, março 13, 2011

Treta da semana: melhor banda sonora original.

A noite dos Óscares já foi há umas semanas, mas como ligo pouco à coisa isto passou-me despercebido até hoje, quando li sobre o prémio da Academia à melhor banda sonora original (1). Aqui fica um exemplo da banda sonora criada por Trent Reznor e Atticus Ross, para o filme The Social Network.



Entretanto, parece que a MPAA anda à procura de um tal Edvard Grieg pela usurpação de direitos autorais da banda sonora deste filme.



E, nos comentários ao primeiro vídeo, respondendo a alguém que perguntou como se chamava a música, outro alguém respondeu: «The song name is In The Hall of The Mountain King - Atticus Ross, Trent Razner»

É coisas como esta que tornam tão difícil explicar o que é cultura e fazer ver o enorme valor de ter algo que nos possa inspirar, e que possamos partilhar, transformar e adaptar, sem pagar licenças a ninguém.

1- Question Copyright, And the Winner for Most Ironic Oscar is...

sábado, março 12, 2011

O meu protesto.

Não me agrada andar na rua a gritar palavras de ordem. Se quisessem proibir manifestações destas, aí sim, podiam contar comigo*. Mas, podendo dizer o que penso, prefiro não me limitar ao que cabe num cartaz. É uma preferência pessoal. Aceito sem problema que outros prefiram um desabafo diferente. Mas, neste protesto, há outra coisa que me preocupa. É ser contra a precariedade laboral, os maus salários e «para que todos os responsáveis pela nossa actual situação de incerteza – políticos, empregadores e nós mesmos – actuem em conjunto para uma alteração rápida desta realidade»(1).

Isto é demasiado vago. A situação é má e compreende-se que as pessoas protestem, mas este protesto não é um exercício responsável de cidadania nem é particularmente útil. Pelo contrário. Por um lado, porque dá a quem se manifesta a sensação de ter cumprido o seu dever democrático, quando o dever democrático de cada um é mais do que apenas dizer “au” quando o pisam. Exige ter uma ideia clara do problema e das soluções que se quer tentar, e este problema da precariedade dos empregos e dos salários baixos não é algo que se possa resolver directamente legislando. Temo que muitos, após o desabafo do protesto, voltem a votar como sempre votaram antes.

Por outro lado, é mais uma oportunidade dos politiqueiros do costume nos enfiar barretes. Um protesto vago permite que quaisquer políticos se “associem” e se “preocupem”, como costumam dizer, e proponham “medidas” que só lhes dêem jeito a eles e que não resolvam nada. Da extrema esquerda à extrema direita, de nacionalizações à dissolução dos sindicatos, argumentando que é preciso dar mais competitividade às empresas ou menos poder aos patrões, qualquer um pode dizer que está a lutar contra o desemprego e a precariedade. E, assim, deixar tudo na mesma. Ou pior.

Eu prefiro protestar por algo mais concreto. Se tivesse de o pôr num cartaz, seria o chavão já gasto de “os ricos que paguem a crise”. Não convencia ninguém. Felizmente, aqui tenho mais espaço para explicar.

Esta crise que vivemos foi, principalmente, causada pelos ricos. Ricos, no sentido estrito de quem tem balúrdios de dinheiro. E que, com a crise, ficaram ainda mais ricos. Muito mais ricos. Por exemplo, o Américo Amorim ganhou 800 milhões de euros em 2010 só pela valorização da Galp (1). Não por se ter trabalhado o mesmo que vinte mil trabalhadores portugueses, mas porque a desregulação do mercado de futuros em mercadorias como o petróleo permitiu a quem já tinha muito dinheiro apostar na subida dos preços e, com isso, fazer subir os preços e ganhar a aposta (2). Esta especulação financeira é um jogo viciado que beneficia quem tem muito à custa de todos os outros. E mesmo quando espalham nas apostas, como aconteceu por cá com o BPN, depois vão buscar dinheiro aos contribuintes.

Além disso, qualquer crise é mais fácil de suportar pelos ricos, estes já no sentido lato de quem ganha acima da média. Não precisam de ter aviões privados, iates ou sequer mudar de carro todos os anos. Basta ter uma vida confortável, sem andar com a corda ao pescoço. Por isso, mesmo sem ser especulador financeiro nem ter culpa de colapso algum, prefiro que aumentem os meus impostos em vez de reduzir o apoio escolar às crianças que não têm pais ricos ou que aumentem o preço dos medicamentos a quem já tem dificuldade em os comprar.

Assim, é este o meu protesto: exijo a reposição, e reforço, das prestações sociais e dos apoios aos que mais precisam, e que se aumente os impostos, de forma progressiva, tanto quanto for necessário para reduzir o défice e estabilizar as finanças do Estado. Não tenho nada contra os ricos, mas sou contra que enriqueçam à custa dos outros. E se não os obrigamos a pagar pelas aldrabices que têm feito vão continuar a fazer o mesmo. Quanto à precariedade do emprego e aos salários, que preocupa tanta gente, isso é consequência da falta de apoio social. Quanto menos se pode contar com o Estado, menos poder se tem para negociar condições de trabalho. Quando a escolha é entre trabalhar e passar fome, até a pão e laranjas se arranja empregados.

1- Geração enrascada, Manifesto.
2- Stop gambling on hunger, Experts on excessive commodity speculation

* Adenda: eu penso que se percebe pelo contexto, mas o comentário do Aires Almeida sugere que talvez não. Quando digo “Se quisessem proibir manifestações destas, aí sim, podiam contar comigo” o que quero dizer é que podiam contar comigo para ir à manifestação e lutar contra a proibição.

terça-feira, março 08, 2011

Pareidolia

é a percepção de algo familiar, como um vulto de uma pessoa ou uma cara, naquilo que é simplesmente ruído, como a forma de uma nuvem ou das sombras em Marte. É consequência da nossa tendência para procurar sentido e informação em tudo o que presenciamos. Aqueles que até julgam que o universo todo tem um propósito, e um propósito que os inclui, costumam chamar milagre aos casos de pareidolia em que o nosso cérebro reconhece um santo na tosta queimada ou uma alegada virgem no bolor da parede. Mas eu achei mais graça a esta laranja zangada.

Aaargh

domingo, março 06, 2011

Treta da semana: o coqueiro?!

À procura de inspiração para este post, fui dar ao site de esoterismo do Mário Sousa (1). Logo à partida, ter um site na Internet dedicado ao esotérico é estranho. O esoterismo é aquilo que se reserva apenas aos iniciados e que se preserva oculto. Escarrapachá-lo na autoestrada dos bytes parece-me um contra-senso.

Mas o que me atraiu nas páginas do Mário Sousa foi a secção sobre os horóscopos. Tem lá de tudo: Grego, Chinês, “Xamánico”, Celta, Árabe, Cigano, Azteca e até de árvores e flores. O das árvores é o “Horóscopo Druídico”:

«este ramo da Astrologia remonta ao tempo dos Druidas, os sacerdotes que viveram nas regiões da Gália e da Irlanda durante a Idade Média. Além das funções sacerdotais - que iam desde a consagração de oferendas aos deuses da natureza até a prestação de aconselhamento aos membros da comunidade -, os Druidas também se dedicavam aos estudos da magia, das propriedades curativas das plantas e dos corpos celestes.

Foi assim que nasceu o Horóscopo Druídico. Para simbolizar cada tipo de personalidade, estes antigos sábios escolheram doze diferentes árvores, que, para eles, estavam associadas a determinadas forças e características. Vale lembrar que os Druidas viviam nas florestas, e assim enxergavam o sagrado em cada detalhe da vida - nas plantas, nos animais, na chuva e no Sol, no nascimento e na morte.»


Dei uma olhadela de relance nas árvores que os druidas tinham escolhido. Cedro («inteligentes, práticos, bons administradores»), cipreste («joviais e versáteis»), pinheiro («marcantes e fortes»), enfim, as tretas do costume. Mas, de repente, salta-me um coqueiro à vista, trazendo a imagem indelével do Panoramix com saia de palha e flores ao pescoço. E segue-se eucalipto, manacá, paineira, mangueira, acácia, jacarandá, goiabeira, e até o bambu, que tem tanto que ver com as árvores como tem com a Irlanda medieval.

Fiquei a saber duas coisas. Uma, é que sou do signo da goiabeira no horóscopo dos druidas da Irlanda e da Gália. A outra é que, afinal, não eram os romanos que estavam loucos.

1 - esoterico.no.sapo.pt

sábado, março 05, 2011

Bela educação.

A Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC) também está a organizar um «concurso de criatividade» para jovens*, o “Somos todos autores” (1). Os concorrentes, alunos entre 6 e 12 anos, «devem conceber um filme de animação que sensibilize o público infantil para a protecção do direito de autor e direitos conexos». Numa demonstração irónica de falta de criatividade, o logótipo é o Pac-Man a comer uma caveira pirata (2).

A IGAC é um órgão fiscalizador do comércio de “conteúdos culturais”. Deve fazer cumprir a lei que, democraticamente, for instituída no nosso país. Não compete a esta entidades educar as crianças acerca das leis que devemos ter, porque um princípio fundamental da democracia é que sejam essas crianças, quando se tornarem eleitores, a dizer à IGAC o que fazer. Pior ainda, explicam mal a lei. No questionário sobre os direitos do autor, intitulado “Podes ou não fazer?”, à questão de «Fazer uma cópia do CD do teu colega para o teu leitor de MP3» dizem que não, não se pode (3). Mas a própria IGAC admite que a licitude destes acto tem só pode ser determinada pelo juiz, porque a lei também consagra o direito à cópia privada (4). E é improvável que um juiz condene uma criança de 6 anos por copiar um CD emprestado. Ainda por cima quando o leitor de CD já foi taxado pela AGECOP, que provavelmente irá taxar também os leitores de MP3 também, precisamente para compensar estes actos de cópia privada (5).

Além do fiscalizador querer “educar” os futuros eleitores acerca da lei que devem ter, fá-lo em parceria com entidades privadas cujo negócio depende dos monopólios sobre a cópia: Associação Portuguesa de Editores e Livreiros; Federação de Editores de Videogramas; Associação Fonográfica Portuguesa (AFP); e Associação Portuguesa das Empresas Cinematográficas. Nenhum dos parceiros da IGAC neste concurso é autor de coisa nenhuma. São só revendedores de cópias. E ninguém representa aqui o interesse do principal visado por esta legislação: o público.

Por sua vez, a IGAC recebe formação de parceiros como a AFP. E que formação. Além de termos um órgão público a ser “educado” por uma associação privada de revendedores, uma das cláusulas no protocolo de colaboração da IGAC com a AFP estipula que «Sempre que for necessário obter autorizações das empresas suas associadas para disponibilizar fonogramas nos serviços de partilha de ficheiros onde vai efectuar a fiscalização, a AFP actuará prontamente no sentido de obter as mesmas e bem assim, os respectivos ficheiros MP3.»(6) Ou seja, a IGAC disponibiliza os ficheiros, com autorização da AFP, para depois denunciar quem participar nas redes de partilha que a IGAC criar. Como a educação se dá pelo exemplo, em vez de “Somos todos autores”, era mais correcto chamar ao concurso “Seja sacana como nós”.

Finalmente, os exemplos com os quais querem educar os jovens. «Alguém descobriu a roda, a electricidade e o frigorífico, alguém inventou a primeira mesa, o computador no qual estás a ler este texto, alguém pintou o primeiro quadro, escreveu a primeira história e assim sucessivamente.» Nada disto é coberto pelos direitos de autor. A roda e a electricidade podem ser patenteadas, mas isso é uma legislação – e um conceito – diferente. E ninguém tem direitos por pintar o primeiro quadro ou escrever a primeira história. Não só porque o fizeram durante milhares de anos sem legislação nenhuma para isto, mas também porque ideias abstractas como a de inventar uma história ou pintar um quadro não são cobertas pela legislação dos direitos de autor, que exclui explicitamente «As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios [e] as descobertas».

Mas a calinada mais grave é criarem uma confusão entre o plágio e a violação de monopólios comerciais. «Imagina o seguinte: o professor pede a cada aluno que escreva uma história sobre o circo. Tu inventas uma história muito gira. Mas esqueceste-te da folha escrita em cima da mesa. Um colega lê a história e acha que é mais gira que a dele e resolve copiá-la. No dia seguinte ele entrega a história ao professor primeiro do que tu e diz que é dele.»

Se o professor pediu ao aluno que escrevesse uma história e o aluno copiou, então o aluno cometeu plágio e tentou aldrabar o professor num elemento de avaliação. O problema é mentira e fraude, e não tem nada que ver com os direitos de autor. Até pode ter copiado com a autorização do colega, de fontes no domínio público, ou apenas trechos que fosse legítimo copiar ao abrigo da lei. Por exemplo, o ministro alemão Karl-Theodor zu Guttenberg, agora também conhecido como “zu Googleberg”, teve o seu doutoramento anulado por plágio. Não por ter violado direitos comerciais de cópia mas pela aldrabice de se fazer passar por autor de textos que não tinha escrito (7). “Educar” as crianças a confundir monopólios comerciais com honestidade intelectual é um péssimo serviço que prestam à educação.

O que é lamentável, mas não surpreende. No fundo, o objectivo destas coisas não é educar nem “sensibilizar”. É pura propaganda para promover os negócios dos parceiros da IGAC. Esta propaganda seria desculpável se fossem os privados a fazê-lo com o seu dinheiro, mas é um abuso que venha de uma entidade pública, paga por todos nós.

* Outro nesta linha de lavagem cerebral é o Grande ©

1- www.somostodosautores.igac.pt.
2- Como notou a Paula Simões no post por onde fui dar ao concurso.
3- www.somostodosautores.igac.pt, seguir “Combate a pirataria” e “O que podemos fazer?”. A porcaria do site está todo em Flash...
4- Ilegais? Porquê? – (in)conclusão.
5- Exame Informática, Portugueses vão pagar taxas pelos leitores de MP3, pens USB e telemóveis
6- Partido Pirata Português, Síndrome de Estupidez Aguda, via TorrentFreak. O texto completo está disponível no site da IGAC, segundo o PPP só depois deste último ter feito queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.
7- BBC, German Defence Minister Guttenberg resigns over thesis

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

A alma.

Finalmente descobri o que é a alma. Aquilo que nós temos e que os outros animais não têm.

É mais neurónios. Nem é melhores neurónios nem nada de especial nos neurónios. É simplesmente mais.



Via Pedro Amaral Couto, no Facebook.

domingo, fevereiro 27, 2011

Dimensão espiritual.

Este fim de semana fomos passear com os miúdos. Passámos a noite em Dornes, num sítio bonito e simpático(1). Esta era a vista para o Zêzere:

Dornes

E, na igreja da vila, uma curiosa combinação de religião, política e 7ª arte. Parece que o Cavaco foi lá ver um filme, graças à nossa senhora de Dornes (que não se deve confundir com qualquer uma das outras):

WTF?

À vinda passamos por Fátima, para mostrar o santuário aos miúdos. Mas estava tanta gente que eles nem quiseram que parássemos. Vimos, do carro, umas centenas de lojas de santinhos e a parte de trás do bunker eclesiástico (2). Seguimos então para Bairro, para a Pedreira do Galinha, onde fomos ver as pegadas de dinossaurios (3). Ao contrário de Fátima, esta estava praticamente vazia. Quando chegámos havia uma família a ir-se embora, e outra chegou quando acabámos de dar a volta à pedreira, o que demorou cerca de uma hora.

vazio...

As pessoas gostam é de comprar santinhos e visitar o sítio onde uns miúdos dizem ter visto Maria. Esta escultura em Fátima ilustra bem a cena:

ah... milagre

As crianças a olhar. As ovelhas a pastar. E, da tal senhora, nada...

É triste que tanta gente dê tanto valor – e tanto dinheiro – a umas histórias de crianças. E que tão poucos liguem a pegadas que dinossauros de 20 toneladas, com uns 30 metros de comprimento, deixaram há 175 milhões de anos num pântano que entretanto se transformou em rocha e está no cimo de um monte. Gostos, admito, não se discutem. Mas não me venham dizer que precisamos da nossa dimensão espiritual e religiosa para apreciar as maravilhas da natureza. Isso, claramente, é treta.

1- Ficámos na Casa WladiVal, que recomendo. E aqui está Dornes na Wikipedia.
2- Igreja da Santíssima Trindade.
3- Monumento Natural das Pegadas de Dinossaurios de Serra de Aire.

sexta-feira, fevereiro 25, 2011

Treta da semana: ironias.

Segundo a revista Máxima, os ateus são «uma raça em extinção»(1). «Para os ateus é o cúmulo da ironia. A evolução, o processo que acreditam ser o único responsável por criar a humanidade, parece estar a discriminar os não-crentes e a favorecer os religiosos.» Irónico, e triste, é não perceberem o que escrevem. Parece-me que a pessoa que escreveu isto se limitou a copiar partes da versão preliminar da notícia, publicada no blog do Michael Blume (2).

O Michael Blume (e não “Blumer”), recolheu dados demográficos de comunidades religiosas e de vários países, e notou uma forte correlação entre religiosidade e o número de filhos por mulher. Em média, pessoas que participam regularmente em cultos religiosos têm mais filhos do que aqueles que não praticam qualquer religião. E estes últimos, com uma média de 1.7 filhos por mulher, estão abaixo do necessário para manter a população.

Segundo a Máxima, «em escalas de tempo evolutivas de centenas ou milhares de anos, as pessoas com fortes crenças religiosas tendem a ter mais filhos [...], ao contrário dos ateus, cujas sociedades estão condenadas a desaparecer.» Mas isto assume que as crianças não se conseguem livrar da religião dos pais. É o que acontece em países com pressões legais, culturais ou económicas para que as pessoas dependam de comunidades religiosas, mas em populações mais prósperas e com mais educação há muitos ateus vindos de famílias religiosas.

Baralhando-se ainda mais, a notícia na Máxima acrescenta que «Todos estes argumentos entram em contradição com as opiniões dos biólogos evolucionistas […] que afirmam que a religião é como um vírus que infecta as pessoas.» Isto é falso, porque a religião não está nos genes. Tem de ser transmitida culturalmente. Portanto, não basta a uma religião aumentar a taxa de fertilidade dos fiéis; precisa também de se transmitir das mentes dos pais para as mentes dos filhos. Não são duas teorias contraditórias mas sim dois passos no mecanismo de propagação das religiões.

O que, se for irónico para alguém, não será para os ateus. Um argumento comum dos defensores de qualquer religião é que as suas crenças devem ser verdadeiras porque há tanta gente a acreditar nelas. À parte de haver sempre mais gente a acreditar noutras, pois nenhuma religião tem sequer 50% da quota de mercado, resultados como este revelam uma explicação mais simples. Há muita gente a acreditar nessas coisas porque são crenças que se espalham pelas populações. Não prosperam por obra e graça de qualquer divindade. Propagam-se pelos mesmos mecanismos evolutivos que nos dão a anemia falciforme e as gripes sazonais.

Mas talvez o mais irónico seja a consequência de não perceberem a evolução. Durante milhares de milhões de anos, toda a vida na Terra foi moldada e empurrada pela competição, entre os genes, por lugares nas gerações vindouras. Por sorte, o nosso ramo da família cresceu para o lado de um cérebro grande, permitindo-nos compreender este processo e libertando-nos da tirania dos replicadores e da reprodução. Somos a única espécie com o potencial para contrariar o que os genes mandam. Com a contracepção podemos planear quantos filhos temos, se os temos, e gerir o nosso impacto no meio ambiente em vez de deixar os genes carregarem-nos às cegas para um precipício malthusiano.

Estas religiões são prolíferas à custa de ignorar este mecanismo e o perigo de ser escravo dos replicadores. Sejam genes, sejam memes. É esse o maior perigo de extinção. Foi essa corrida desenfreada pela reprodução, sem plano ou inteligência, que extinguiu quase todas as espécies que já existiram neste planeta. E se todos os humanos se puserem a crescer e multiplicar-se, lá se vai a nossa também.

1- Máxima, Ateus, uma raça em extinção
2- Biology of Religion, Atheists a dying breed as nature 'favours faithful' - Sunday Times Jan 02 2011 - Jonathan Leake - Full Draft Version

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Tomates.



Via 9gag

Bright.

O termo bright, para referir uma pessoa com «uma visão naturalista do mundo [...] livre de elementos sobrenaturais e místicos»(1), foi proposto em 2003 como um designador mais positivo para aqueles que costumavam ser apelidados de ateus, descrentes, incréus, agnósticos, desalmados, desdeusados ou o que calhasse. Infelizmente, há muita gente, como o Bernardo Motta, que percebe mal o termo. Ou faz por isso. «Alguns ateus, mais atrevidos, dão um salto em frente, e auto-intitulam-se "brights". A ideia aqui é simples: o ateu é o tipo inteligente. O crente é burro.»(2)

O termo bright foi pensado para substituir “ateu” mas não coincide com este, porque a categoria que “ateu” refere é confusa e faz pouco sentido. “Ateu” é uma invenção dos crentes, para quem o seu deus preferido é o mais-que-tudo e, por isso, quem não tenha um é uma espécie de estropiado espiritual. Mas olhando, de forma imparcial, para as diferenças entre alguém como eu e um muçulmano, evangélico, católico ou judeu, vemos que o padrão é sempre o mesmo. Quaisquer dois concordam que quase todas as crenças acerca dos deuses são falsas, e discordam apenas da verdade de uma fracção pequena do total. Por isso, distinguir crentes e ateus com base na opinião acerca dos deuses faz pouco sentido.

E engana, porque faz pensar que o ateu é alguém que parte do princípio de que não há deuses, tal como cada crente parte do princípio de que o seu deus existe e, com base nessa premissa, procura amá-lo, louvá-lo e ter relações sexuais apenas como e quando ele aprova. É outro erro. A minha convicção de que não há deuses é como a minha convicção de que não há fadas e de que a força da gravidade decai com o quadrado da distância. Não são premissas fundamentais. São conclusões às quais cheguei depois de ter ponderado, imparcialmente, as alternativas e os dados de que disponho.

É essa atitude que bright tenta capturar. A atitude de averiguar os factos às claras, à luz da razão e do conhecimento, em vez de baralhar tudo à sombra de esoterismos de bolso ou superstições bolorentas.

É verdade que há aqui uma conotação com inteligência. Mas não como o Bernardo julga. O crente vê a sua crença como parte da sua identidade, e o seu abandono como uma traição imperdoável. Para muitas religiões, a apostasia é pior que violar criancinhas. Literalmente. Mas para alguém como eu, crer, não crer, descrer, pensar duas vezes e afins são opiniões. Há umas mais ajuizadas do que outras, mas qualquer pessoa pode ter uma num dia e mudá-la no dia seguinte.

Por isso, a conotação de bright com inteligência não se refere ao que a pessoa é mas sim às suas atitudes em casos particulares. Por exemplo, se me dizem que o criador de todo o universo encarnou como homem na Palestina, há dois mil anos, para se deixar matar pelos romanos, perdoar-me pecados que eu nem cometi, e que agora se pode transformar bolachas no seu corpo sem que as bolachas deixem de ser bolachas, parece-me claro que a atitude mais sensata é duvidar. No mínimo.

Mas isto não quer dizer que quem enfie este barrete seja burro. Mesmo a pessoa mais inteligente já foi uma criança ingénua, e todos sentimos pressões sociais, emocionais e familiares. Além disso, a inteligência não é como a cor dos olhos ou os dedos dos pés. Tem dias. Às vezes não percebemos bem no que nos metemos, outras vezes vemos as coisas com mais clareza. Mais brightly, por assim dizer.

Dito isto, e apesar de achar que bright é um termo melhor que “ateu”, este último tem a vantagem de uma longa tradição e, seja como for, prefiro esclarecer as minhas ideias em vez de pavonear o rótulo. O que me importa é o que penso, e não a categoria onde me enfiam. E este é outro ponto importante que me separa de crentes como o Bernardo, cujo catolicismo determina as suas opiniões em vez destas determinarem o ismo em que se põe: «não há católicos progressistas. Nem há católicos conservadores. Há católicos. Ponto final. E depois há católicos com problemas de identidade (ah, se os há!).» É como mandar os bois seguir a carroça...

1- www.the-brights.net
2- Bernardo Motta, 22-2-2011, O ocaso do ateísmo filosófico
3- Bernadro Motta, 9-8-2009, Progressistas e Conservadores

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Epistemologia.

Eu penso que a melhor forma de avaliar a verdade de uma alegação é considerando os dados apresentados a seu favor, a consistência destes com os restantes dados de que disponho, e o mérito relativo de ambas as hipóteses: a alegação ser verdade, ou não ser. No entanto, tenho encontrado muita gente que discorda desta abordagem.

Uns acham que o testemunho é muito importante, mesmo que não seja substanciado por dados objectivos. Outros dão prioridade à crença, à fé, à perseverança. Acredita e será verdade, e essas coisas. Outros ainda alegam que é verdade quando não se prova que é falso, quando há muitos que também acreditam, quando era bom se fosse verdade e outras heurísticas de mérito duvidoso.

A todos esses dedico este testemunho, visualmente documentado e que muita gente pela Internet fora provavelmente acredita ser verdade. Sigam os vossos métodos epistemológicos preferidos, treinem com afinco e convicção, tenham pensamentos positivos e fé que baste. Boa sorte.


Via Facebook

domingo, fevereiro 20, 2011

Treta da semana: a assinatura.

Ontem vieram cá uns vendedores bater à porta. A primeira coisa que digo, e ontem foi até sem abrir a porta, é que não estou interessado. Como ontem, quase sempre perguntam como sei que não estou interessado se ainda não me disseram o que era, ao que respondo que não estou sequer interessado em perder tempo a saber o que é. Para alguns, esta insinuação subtil da minha indisponibilidade basta para perceberem que não estou interessado. Infelizmente, os de ontem pensaram que era para voltarem mais tarde.

À segunda volta, abri a porta e disse que não estava interessado em comprar nada que me fosse vendido à porta. É uma heurística muito útil. Em primeiro lugar, porque qualquer empresa que mande gente bater-me à porta para vender coisas é uma empresa que não cumpre os meus requisitos mínimos de respeito pelas pessoas. E, em segundo lugar, porque não é boa prática comprar algo sem saber primeiro se é útil, se vale o preço e o que a concorrência oferece, ouvindo apenas a opinião do vendedor. Para os vendedores não perderem tempo comigo (e eu não perder tempo com eles), deixo isso claro logo à partida.

Mas estes eram espertos. Um deles, pelo menos. Disse que não, que não vinha vender nada e que não me estava a fazer favor nenhum. Duh, pensei, isso sei eu. Mas provavelmente queria dizer que não me estava a pedir favor nenhum, ou algo do género. Explicou que a fibra óptica que estava instalada no prédio já era nossa, dos condóminos, e que precisava apenas de uma assinatura minha a autorizar que a “passassem para minha casa”. Achei estranho que não fosse a administração do condomínio a avisar disto, ou sequer a deixar um papel à entrada do prédio. Por isso fiz mais umas perguntas e, às tantas, ele assegurou-me que não tinha de pagar nada nos primeiros cinco meses.

Espera lá. Então depois tenho de pagar? Sim, mas tem desconto, e sai mais barato do que o serviço que tem agora. Saca do panfleto da Optimus e começa a desbobinar todas as “vantagens”. Porra, pensei eu, grande aldrabão. Disse-lhe que afinal estava mesmo a vender, que eu não queria comprar nada e despachei-o. Vem então com uma das invenções mais imbecis do marketing moderno. Estende a mão para me cumprimentar*.

Nós apertamos a mesma mão que usamos para tapar a boca quando espirramos ou tossimos, e para cumprir certas tarefas de cariz fisiológico e de higiene pessoal. Como, em geral, as pessoas lavam as mãos regularmente e a maioria dos microorganismos não resiste muito tempo nas mãos secas, apertar a mão a um colega ou amigo é um risco insignificante. Em geral. Mas este senhor anda a correr os prédios todos da zona e a esfregar a palma da mão nas de centenas de pessoas. Algumas engripadas, outras que estavam na casa de banho quando ele bateu à porta e sabe-se mais o quê. Nunca sei o que é melhor: se explicar que aquilo não é boa ideia e passar por mal educado; se inventar que a minha religião não me permite apertar a mão a ninguém; ou se dar um “passou-bem” rapidinho e ir logo lavar as mãos.

O truque da assinatura provavelmente é ilegal. Assumindo que se conseguia provar qualquer coisa em tribunal, claro. E toda a filosofia deste tipo de venda, desta arte de impingir coisas a quem não as quer, é errada. Uma transacção comercial deve ser voluntária e em benefício de ambas as partes. Não deve ser um tropeção por ter o barrete a tapar os olhos. Mas não é a lei que deve resolver isto. O que resolvia este problema era um hábito enraizado, como o que nos compele a cumprimentar quem nos estende a mão. Devíamos ter todos o reflexo condicionado de bater a porta na cara de quem nos quisesse vender qualquer coisa.

* Parece-me que isto agora é sistema. Deve ser uma treta qualquer da programação neurolinguística ou afins. Treta da semana: telechatos.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

Custo e benefício.

Neste vídeo o Neil Gaiman conta como descobriu que deixar as pessoas descarregar ficheiros não lhe tira as vendas. Pelo contrário (1).



Nos livros isto é fácil de perceber. As pessoas gostam de ter o livro e, comparado com os esforço e tempo que um livro exige, o preço, em geral, é pouco relevante. Quem investe na leitura de um livro investe facilmente mais 10€, se os tiver. E, se não tiver, também não é um cliente perdido.

Com músicas e CDs é diferente, porque o CD é pouco prático e boa parte da música serve apenas para o ouvinte estar menos aborrecido na paragem do autocarro. Como há muita música a servir de pastilha elástica, mascada sem grande apreço, a borla substitui a compra em muitos destes casos. Por isso a Internet deu um grande golpe na parte do mercado da música que vivia de modas e publicidade.

No entanto, na música também há quem aprecie, invista o seu tempo e ouça a sério, como quem lê um livro e não como quem se distrai da fila que tem pela frente. Esses também têm gosto em comprar as edições limitadas, bilhetes de concertos, e em financiar os projectos dos seus músicos preferidos. Esse mercado, que me parece ser o mais legítimo, é imune ao alegado problema das borlas.

A razão para isto é que, nestas coisas, a economia funciona de forma invulgar. O normal é o pagamento ser um custo que só é compensado pela aquisição de um bem ou serviço. Pagamos por não termos outro remédio, se quisermos comer batatas ou que nos cortem o cabelo. Se fosse de borla era melhor. Mas com a arte, e a criatividade em geral, o pagamento não é necessariamente um custo. Pode valer por si por ser uma forma de contribuir para, e de participar em, algo que admiramos. Nesse caso, quanto mais fácil o acesso e a distribuição mais pessoas vão querer quererão participar e mais dinheiro os criadores irão ganhar. Como o Neil Gaiman descobriu, para sua surpresa.

E, já agora, é por isso que eu dei dinheiro para a Document Foundation. Uso o LibreOffice de borla e, seja como for, nunca tenho vontade de pagar por “autorização” para usar software. Mas admiro o que esta gente está a fazer e gostava de participar. Ao que parece, não sou só eu. Eles publicaram na quarta feira o pedido de cinquenta mil euros para legalizar a Document Foundation (2), e deram um prazo inicial até dia 21 de Março. Passados só dois dias já vão com quase 18,000€. Não porque as pessoas sejam obrigadas a pagar, mas porque têm a oportunidade de o fazer.

Fica aqui o link para quem quiser participar também:

challenge.documentfoundation.org

1- Via In This Twilight
2- The Document Foundtion Blog, LibreOffice Community starts 50,000 Euro challenge for setting-up its foundation

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

Amor ou voyeur?

O Miguel Panão publicou um artigo no site da agência Ecclesia, intitulado “Onde está Deus?”, no qual aborda o problema do mal. Referindo as chuvas na Madeira e o terremoto no Chile, escreve que «são muitas as questões que se colocam relativamente a estes desastres naturais e às suas consequências para a natureza e a vida humana, mas as duas que mais ressoam no íntimo do coração humano talvez sejam: Porquê? Onde está Deus?»(1)

Pessoalmente, essas perguntas não me ressoam em órgão nenhum. Esses fenómenos são uma conjunção complexa de efeitos climáticos ou de movimentos de placas continentais, sem nada que ver com personagens fictícios da mitologia ou literatura. O que me “ressoa” no íntimo, mais no fígado que no coração, é o ponto a que chega a apologética do tal deus que dizem ser amor.

Primeiro, porque sou da opinião – chamem-lhe crença, se quiserem – de que as palavras servem para expressar o pensamento e não para o substituir. «Se tudo no mundo está em relação com tudo, cada coisa com cada coisa, não será isso expressão de uma marca deixada por Deus-Trindade, um Deus relação e, por isso, não será esta marca a relacionalidade?» Não, nem por isso...

Em segundo lugar, preocupa-me a desumanização deste personagem. Quando inventamos seres extraordinários, fazêmo-lo para mostrar algo de humano. De sobre-humano. É como projectar os nossos anseios num ecrã gigante. O Hulk fica incrivelmente forte quando se irrita; Odin era um grande guerreiro, um chefe sábio e um poeta; e até Javé tinha as suas virtudes, nos bons velhos tempos. Tinha mau feitio, nenhum sentido de humor e era um chefe tramado. Mas, pelo menos, com ele ninguém fazia farinha. Para uma tribo pequenina entalada entre o Egipto e a Pérsia, não era virtude de deitar fora.

A deificação de Jesus, e o cristianismo, já foi um tropeção. Compatibilizar a morte do profeta com a crença na sua divindade deu uma história deslavada de um cunning plan para nos salvar a todos morrendo na cruz. E agora vem esta solução para o problema do mal. Deus deixa as pessoas morrerem em terremotos e cheias porque «está com quem sofre, sente dor e morre». No seu blog, o Miguel elabora este ponto: «Onde está esse Deus omnipotente quando um inocente morre numa catástrofe natural? Deus está com esse inocente. Sofre com ele. Experimenta a morte e a finitude com ele.»(2)

Este deus fica a assistir enquanto alguém morre lentamente, soterrado nos escombros, sem sequer um “psst, escavem mais para este lado” aos que procuram sobreviventes. E nem é por querer castigar os pecadores, por ser tirano ou cruel, ou por exigir sacrifícios. Sempre houve deuses maus, mas até essa maldade seria mais humana, menos psicopata, do que ficar simplesmente a experimentar a morte e a finitude do outro.

E isto nem é o pior. O pior é a ideia de que este deus é Amor, com maiúscula e tudo. E, por implicação, que amar é ficar de braços cruzados a “experimentar” o sofrimento do outro. Quando o futebolista na barreira do livre leva uma bolada nas partes baixas, ninguém que as tenha se safa de sentir um pouco daquilo que o desgraçado sente. Mas amar é muito mais do que isso. É ajudar, tocar, partilhar e sentir por quem reconhecemos ser alguém como nós. Olhos nos olhos; nem de baixo para cima nem de cima para baixo.

Se esse deus existisse seria a coisa mais solitária do universo, sem ninguém que pudesse amar ou que o pudesse amar de volta. Nunca saberia o que é o amor. Até se compreendia essa atitude de ficar a olhar, a “experimentar” vicariamente o que os outros sentem. Mas mesmo que existisse tal coisa, seria um erro confundir a sua indiferença e passividade com aquilo que sentimos, e fazemos, quando amamos. Amor não é ficar impávido a ter pena dos coitadinhos.

1- Miguel Panão, Ecclesia, Onde está Deus?
2- Miguel Panão, O lugar de Deus perante um mal natural...

domingo, fevereiro 13, 2011

Treta da semana: Lei Sinde.

No passado dia 9, a Ley de Economía Sostenible (1) foi aprovada no Senado espanhol (2). Esta lei ilustra vários aspectos do copyright. Os fundadores dos Estados Unidos escreveram na sua constituição que o Congresso poderia conceder, aos autores e inventores, monopólios por tempo limitado com o propósito de «promover o progresso da ciência e das artes úteis» (3). Um objectivo nobre, mas que estava longe do que o copyright tinha sido até então, e também daquilo em que, na prática, depois se tornou.

Esta lei espanhola, também conhecida por Ley Sinde em honra da ministra da Cultura Ángeles González-Sinde, permite que o governo elimine sites e páginas da Web apenas pela recomendação de uma comissão do Ministério da Cultura, composta parcialmente por representantes das editoras. Isto não é para impedir que alguém distribua material coberto por copyright, porque para isso já existia legislação. É para apagar os sites onde as pessoas discutem onde se pode encontrar esse material. Ou seja, é censura (4).

O que não é de estranhar, vindo de onde vem. Antes da impressão por tipos móveis, os livros na Europa eram copiados manualmente por monges, e a Igreja Católica controlava o que podia ser copiado. Quando Gutenberg fez das dele, os padres entraram em pânico. Era terrível poder-se simplesmente copiar tudo o se quisesse. Na França, o uso da prensa de impressão chegou a ser punido com pena de morte (5).

O termo copyright surgiu mais tarde, em 1557, para designar o monopólio concedido à London Company of Stationers por Mary I, em troca de só permitirem a impressão dos livros que ela quisesse. O primeiro propósito do copyright, com esse nome, foi o de banir a literatura protestante para que os livros católicos dominassem a Inglaterra. O segundo propósito veio logo no ano seguinte, quando Elizabeth I subiu ao trono e usou o copyright para censurar os livros católicos e favorecer os protestantes.

Outro aspecto da lei Sinde é beneficiar apenas os distribuidores. Tirar páginas da Web não ajuda os autores, muitos dos quais se manifestaram contra esta lei. Ajuda apenas aqueles que fazem cópias. O que também não é novidade. Uma das razões que a Igreja Católica invocava contra a prensa de Gutenberg era que a facilidade de copiar livros ia arruinar os monges copistas. Quando o Parlamento britânico deixou expirar o copyright em 1695, os autores festejaram, libertos finalmente do poder censório da companhia de impressores. Foram os impressores – os copistas de então – quem foi chorar à porta do Parlamento alegando que sem copyright ninguém iria querer imprimir livros por já não ser um negócio lucrativo.

Finalmente, a democracia. A lei Sinde não surgiu pelo processo democrático normal em que as leis são criadas em representação dos cidadãos, e para o interesse de todos. Segue a tradição do copyright, que foi inventado numa altura em que “democracia” era apenas uma parvoíce que nem os gregos quiseram. Mas hoje em dia isto destoa. A lei Sinde lei resultou da pressão dos EUA sobre o governo espanhol, somada à dos aos lobbies da indústria da cópia, e não reflecte a vontade do eleitorado (6). É a regra nestas coisas.

O nosso Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC) é uma transposição de tratados internacionais negociados entre políticos e empresas, sem qualquer consulta pública. Por exemplo, na revisão ao CDADC de 2004 (7), o artigo 178º passou de proibir «A radiodifusão ou a comunicação ao público» de uma obra protegida e passou a proibir «A colocação à disposição do público». É uma diferença subtil, mas enquanto que na redacção antiga punia quem distribuísse a obra em meios de comunicação em massa, coisa que muito poucos podiam fazer, em 2004 passou a punir o simples acto de disponibilizar a obra, o que qualquer pessoa pode fazer num blog, no Facebook ou na sua página. Estas alterações, que mudaram por completo a relação entre esta lei e o cidadão comum, foram todas feitas sem se perguntar nada aos principais interessados. Que não são os autores nem os editores. Somos todos nós.

Adenda, 14-2-2011: o discurso de Álex de la Iglesia, ontem, na gala dos prémios Goya 2011. Presidente da Academia de las Artes y las Ciencias Cinematográficas de España, demitiu-se por discordar da lei Sinde. Também é agradável ver a cara da ministra da Cultura. Não só pela cara, que, admito, é agradável de ver, mas principalmente pelo esforço para não mostrar qualquer expressão. Obrigado ao Nelson Cruz pelo link para a página do Público espanhol com a notícia e a transcrição do discurso.




1- Wikipedia, Ley de Economía Sostenible
2- Minutodigital, 2011-2-9, Aprobada la ‘ley Sinde’ con la ayuda de PSOE, PP y CiU
3- Wikipedia, Copyright Clause
4- El Economista, Encuentro digital, David Bravo
5- O Rick Falkvinge tem uma série de posts sobre a história do copyright onde descreve estas coisas. Recomendo a série toda (mesmo antes dele a ter acabado...). Começa aqui: History of Copyright, part 1: Black Death.
6- El País, EE UU ejecutó un plan para conseguir una ley antidescargas
7- Anacom, Lei n.º 50/2004, de 24 de Agosto

sexta-feira, fevereiro 11, 2011

Como é que sabem?

O mês passado foi lançada uma aplicação para o iPhone para facilitar as confissões aos católicos. Tem menus fáceis de navegar, cobre os pecados mais frequentes e estipula as penitências apropriadas. Foi elaborada em colaboração como Padre Thomas Weinandy, do Secretariado para a Doutrina e Práticas Pastorais da Conferência de Bispos Católicos dos EUA, e teve o Imprimatur do Bispo Kevin Rhodes, da diocese de Fort Wayne. Segundo o National Catholic Register, já fazia falta uma aplicação séria para confissões electrónicas, contrapondo a «ofensiva aplicação Penance que saiu em Dezembro e que faz troça da Igreja»(1). O abençoado programa «providencia um exame de consciência personalizado, protegido por uma palavra passe, e um guia passo-a-passo para o Sacramento».

Infelizmente, e apesar de dizerem abraçar os novos meios de comunicação, o Vaticano torceu o nariz. Segundo o porta-voz Federico Lombardi, «é essencial perceber que os ritos de penitência exigem um diálogo pessoal entre penitentes e confessor. Este não pode ser substituído por um programa de computador.»(2)

A dúvida que isto me suscita é como conseguiram determinar que o padre é um confessor mais eficaz que o computador. Presumivelmente, quem absolve os pecados é Deus, e não o padre. E, segundo dizem, Deus sabe o que vai no coração de cada pessoa. Por isso, se alguém declara os seus pecados, os expõe à sua consciência e se arrepende deles com sinceridade, Deus devia ser capaz de perdoar mesmo pelo iPhone. Jesus, por exemplo, nunca rezava com padres, e contam que veio cá ensinar as pessoas a falar com Deus. Também não me parece que a Bíblia seja clara acerca do papel do iPhone nas confissões, e duvido ter havido tempo para o Vaticano executar um estudo de eficácia confessional, devidamente controlado e com uma amostra representativa de pecadores, para apurar as vantagens e desvantagens do iPhone.

Mais uma vez, parece que tudo converge no factor comum a estas tretas. Não é a fé, nem a religião, nem tão pouco a “espiritualidade”, o que quer que isso seja. É algo muito mais terra-a-terra. É o tacho.

1- NCRegister, First iPhone App to Receive an Imprimatur
2- Daily Mail, You can't confess to your iPhone: Vatican bans £1.19 app for Catholics. Via Boing Boing

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

Uma questão de ganância.

O João Teixeira, presidente da Associação Fonográfica Portuguesa (1), escreveu no Público uma «Carta aberta à ministra da Cultura sobre os efeitos da pirataria na Internet no estrangulamento da música portuguesa»(2). Ironicamente, a carta só está aberta a quem pagar uma assinatura do Público ou tiver pouco respeito pela “propriedade” intelectual.

Outra ironia, dupla, é o João Teixeira querer que Portugal proteja a sua «indústria cultural» para «defender a sua Cultura». É irónico, por um lado, porque a maior parte da indústria que a AFP representa são empresas estrangeiras e, pelas estatísticas da AFP, menos de um terço da música que vendem é nacional. E é também irónico porque o termo “indústria cultural”, hoje muito na berra, vem de um termo depreciativo da crítica literária e social que designa o fabrico em massa da “cultura” de consumo popular (2). A indústria cultural está para a cultura como a pastilha elástica está para a gastronomia.

Como é inevitável nestas coisas, o João Teixeira queixa-se do «roubo online» pelo qual se viola «direitos de propriedade intelectual». É uma inversão curiosa de conceitos. O roubo é o acto de privar alguém daquilo que é seu, e os direitos de propriedade são o que nos protege de quem nos quer privar do que é nosso. Mas, no copyright, é o contrário. Chamam roubo ao acto de partilhar a informação, que não priva ninguém de nada que seja seu, e chamam direitos de propriedade a mecanismos legais para privar as pessoas dessa informação.

Mas a tese principal do João Teixeira é ainda pior. Defende o João que a necessidade de «implementar soluções legislativas que restrinjam fortemente a disponibilização ilegal de obras» é uma «Questão de bom senso» para proteger «autores, compositores, artistas, músicos e outros». Isto parte da falsa premissa de que os criadores de música precisam de protecção legal. É verdade que a venda de cópias está em queda, mas quem compõe, toca e canta ganha cada vez mais dinheiro porque outros rendimentos, como o dos espectáculos, têm aumentado substancialmente. Este aumento não só compensa a queda das vendas de CDs, no volume total, como até beneficia os artistas porque a venda dos CDs é o que lhes dá a menor percentagem (4). E o problema dos CDs não é legal. É um problema tecnológico e cultural.

O fonograma, como objecto de posse e transacção comercial, é uma coisa tão ultrapassada como a grafonola. Haverá sempre quem goste de ter discos ou coleccionar CDs, porque gosta desses objectos em si, mas como mero suporte para música esta tecnologia está desactualizada. E a tecnologia que pôs a cópia ao alcance de todos tornou a música novamente em cultura.

Antes da industrialização da cópia ninguém comprava canções nem tinha músicas. Ouvia, aprendia, compunha, tocava e partilhava, mas não tinha. Só quando a cópia se tornou um negócio de fábricas e empresas é que grande parte da música, e de outros bens culturais, se transformou em coisa que se compra, vende e tem. Tudo atributos estranhos à cultura. Agora esse hábito de ter músicas vai voltando a desaparecer. Se quero mostrar uma música aos meus filhos não vou ao armário procurar o CD*. Vou ao Google. Quanto mais acessível algo está, menos necessidade sentimos de o “ter” como propriedade. E isso é que é cultura, aquilo a que todos podem aceder sem que ninguém seja dono.

Os monopólios que a associação dos fonogramas exige não são para proteger a criatividade, nem os artistas nem a nossa cultura. São para se meterem entre cada artista e o seu público, para dificultarem o acesso à cultura e para nos proibir de fazer cópias – que é tudo o que eles fazem – para cobrarem dezenas de euros por cada copy e paste. Isto não é bom senso. É apenas o choradinho de quem quer vender uma coisa que já não serve para nada.

* Tenho uma data deles, mas do tempo em que este negócio não me metia tanto nojo.

1- www.afp.org.pt
2- Público, 7-2-2011, Caderno, Opinião. Obrigado a quem me enviou o email com a notícia.
3- Wikipedia, Culture industry
4- TorrentFreak, Artists Make More Money in File-Sharing Age Than Before It

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Treta da semana (passada): Marketing de rede.

Há muita gente que tenta ganhar dinheiro com esquemas em pirâmide. Pela natureza destes esquemas, a grande maioria acaba por só perder. Em traços largos, num esquema destes paga-se para entrar e depois cobra-se parte da jóia àqueles que se convida, aos que esses convidam, e assim por vários níveis. Isto é ilegal porque o sistema não é sustentável. Apenas se ganha dinheiro enquanto a pirâmide crescer exponencialmente, o que nunca pode durar muito.

O marketing de rede, ou marketing multi-nível, está entre um esquema de pirâmide e as vendas directas. Num sistema de vendas directas o produtor recruta vendedores, que também podem ser consumidores, para ajudar a distribuir o seu produto. Cada vendedor ganha uma comissão pelas vendas mas lida directamente com o fornecedor. Economicamente, se o objectivo é vender o produto, não faz sentido aumentar a cadeia de intermediários entre o produtor e o consumidor final para além do que for estritamente necessário para distribuir o produto. Caso contrário, o preço final aumenta e o produto torna-se menos competitivo*.

O marketing de rede faz o contrário, incentivando cada “vendedor” a recrutar mais “vendedores” em vez de vender ao cliente final. As aspas são porque a tendência é para ninguém vender nada e ganhar dinheiro principalmente pelo recrutamento de novos elementos da pirâmide. A Network World Alliance (1) dá um exemplo de como isto funciona. Para entrar paga-se 9.90€ e tem de se fazer uma encomenda mínima de 35€. Parte disso vai para a pessoa que recruta, a outra que a recrutou e assim por diante. Depois ganha-se ou pela venda do colostro e do sumo de açaí, cujo volume de vendas desconheço mas suspeito que não seja nada de especial, ou então por caçar mais vítimas que paguem 44.90€ pelo privilégio de ficar com o dinheiro dos seguintes.

Os praticantes desta arte defendem que não é um esquema em pirâmide. Na verdade, do ponto de vista legal é difícil condenar a prática porque inclui vendas, mesmo que só em teoria. Na prática, nem por isso. Segundo o Rui Ludovino, auto-intitulado “guru” do marketing de rede (2), a inscrição para “vendedor” do sumo XANGO (3) no Brasil «custa 34€, tem que ser realizada com cartão de credito, e nao se compra sumo porque nao dá para enviar o sumo para o Brasil enquanto nao tiver aprovado pela Anvisa.»(4) O que não faz mal porque ninguém quer saber do sumo para nada. O que interessa é arranjar "vendedores", mesmo que não haja nada para vender.

O Rui Ludovino tem também um vídeo onde tenta explicar com humor porque é que o marketing de rede não é um esquema em pirâmide. Infelizmente, falha ambos os objectivos. O argumento é que as hierarquias das empresas também são em pirâmide, mas a grande diferença é que estas não precisam do crescimento exponencial de vendedores para manter o negócio (5).



Antes de concluir, queria pedir desculpa ao Rui Ludovino por o mencionar assim só de passagem. Os sites dele mereciam um ou dois posts, no mínimo. Infelizmente, ando com pouco tempo. Mas não resisto a recomendar o vídeo com os segredos dele. Não tanto pelo vídeo, porque o segredo é apenas que quer que lhe paguemos 47€ por mais vídeos, mas pelo aviso no fim da página: «É extremamente proibido a duplicação ou publicação não autorizada de quaisquer dos materiais deste site»(6). Espero que a proibição não se aplique à proibição também. É que fazer coisas proibidas, ainda vá, mas quando são extremamente proibidas tento evitar.

Concluo então com a recomendação da Federal Trade Commission, dos EUA: «Evite os planos de marketing multi-nível que pagam comissões pelo recrutamento de novos distribuidores. Na verdade são esquemas ilegais em pirâmide»(7).

* Uma lição elementar que a ACAPOR, entre outros, se recusa a aprender...

1- NWA International, Informação Geral
2- http://www.ruiludovino.com
3- XANGO, XANGO Juice
4- Rui Ludovino, XanGo – Para quem se quer inscrever no Brasil
5- Rui Ludovino, A Minha Noiva Pediu-me Uma Centena De Vezes Para Não Lhe Enviar Isto….
6- ignicaomarketing.comVideo super ultra secreto (pelo qual não precisam dar o email para spam porque eu já fiz isso e, uma vez tendo o link, não é preciso dar para esse peditório).
7- FTC, Lotions and Potions: The Bottom Line About Multilevel Marketing Plans

sábado, fevereiro 05, 2011

ECR 3: Ética, religião e ciência.

O quinto capítulo do livro Educação, Ciência e Religião (ECR) pergunta «Qual o papel das questões éticas na relação entre a ciência e a religião?»(1). A ideia base é consensual: considerações éticas podem abrandar o progresso científico porque a aquisição de conhecimento não é uma prioridade absoluta. É óbvio que a ética deve impor limites à actividade científica. No entanto, os autores desviam a resposta com algumas confusões.

No “aprofundamento” da resposta, uma adaptação de um texto do Miguel Panão, afirmam que «uma ética orientada para o valor fundamental da vida designa-se “bioética”.» Mas, normalmente, “uma ética” refere um sistema normativo, como o utilitarismo, o contratualismo ou o imperativo categórico de Kant, por exemplo. Nesse sentido, a bioética não é uma ética, porque o termo não designa um sistema normativo em particular; designa uma categoria de problemas éticos que surgem do uso de animais em experiências, da bio-tecnologia, do impacto sobre ambiente e questões afins. Desta confusão, defendem ser ilegítimo sacrificar embriões para curar doenças com células estaminais porque «Toda e qualquer vida vale, e esse valor é o mesmo em toda e qualquer circunstância.»

Esta premissa não é nada consensual, mesmo ignorando a restrição implícita – e problemática – de “vida” referir apenas alguns seres vivos, pois por certo não incluem as baratas ou os cogumelos nesta consideração. Criar um embrião num tubo de ensaio e depois sacrificá-lo para obter células estaminais mata esse ser humano. No entanto, se as alternativas são apenas nunca o ter criado ou deixá-lo morrer sem aproveitar as suas células, então a possibilidade de tratar alguém é um bem acrescido sem qualquer perda. Se o embrião pudesse crescer e estivesse a sacrificar a sua vida inteira justificava-se esta objecção. Mas se não tem qualquer hipótese de sobreviver e não há alternativa melhor, esta objecção não tem fundamento.

Acrescentam os autores que a sua “bioética” é necessária para «dignificar a vida humana na forma do embrião, assim como dar sentido ao sofrimento humano». Esta afirmação nem sequer errada consegue estar, porque, para isso, tinha de dizer alguma coisa. “Dignificar” esse embrião é apenas um eufemismo para nunca o criar, opção que nem serve os interesses dele nem de mais ninguém. E se bem que "dar sentido ao sofrimento" soa bem a quem está confortável na vida, não serve de nada para quem sofre. Quem sofre merece alívio em vez da promessa de um vago “sentido” para o seu sofrimento.

O problema fundamental, na raiz destas confusões, é uma percepção incorrecta da relação entre a religião, a ética e a ciência. Nas “primeiras pistas”, os autores escrevem: «Se entendermos a ciência como uma actividade avulsa […] então talvez a religião atrase a ciência. A ética coloca no cenário do desenvolvimento científico argumentos [que] podem desacelerar a aquisição de conhecimento. Mas os argumentos do lado da ética promovem o ser humano no seu todo». Ou seja, apresentam a ética como algo que vem da religião e impõe normas à ciência. A segunda parte está correcta. Como qualquer actividade, a ciência deve ser praticada em conformidade com a ética. Mas a primeira parte está ao contrário.

Cada religião tenta impor regras a todos os aspectos da nossa vida, desde o que se pode comer e que dias são feriados até regras morais acerca de quem deve casar com quem, peregrinar a Meca ou até acreditar que três é um e um são três. Em todos os casos, o fundamento último destas regras é que um deus muito poderoso mandou que assim fosse. Isto não tem nada que ver com a ética, porque a ética não se constitui com base nas ordens do mais forte. É precisamente o contrário. A ética é aquele fundamento de valores pelos quais se julgam todos, até o deus mais poderoso. Se um deus omnipotente arrasou Sodoma e Gomorra por discordar das preferências sexuais dos seus habitantes, torturou Jó por uma aposta ou deu dores de parto a todas as mulheres só porque uma comeu o fruto errado, a ética é aquilo que lhe aponta o dedo e o condena como malvado, cruel e imoral. Não importa que ele seja o Grande Chefe.

Respondendo à pergunta deste capítulo, o papel da ética é dar à religião e à ciência um fundamento normativo comum, ditando a ambas o que é legítimo fazerem. É aquilo que nos diz que não devemos torturar animais ou pessoas, quer seja para obter dados experimentais, quer seja para celebrar rituais religiosos. É aquilo que condena como desonesto o cientista que diga saber que há vida em Marte sem ter evidências disso. E é aquilo que condena como desonesto o padre que diga saber que há vida depois da morte sem ter evidências disso.

Uma grande diferença entre a religião e a ciência é que todos exigem que a ciência se guie pela ética e condenam quem viole a ética em nome da ciência. E é assim que deve ser. Mas muitos aplaudem, e muitos outros ficam indiferentes, quando as religiões atropelam a ética ou fingem que cada uma pode inventar a sua. E isso não devia ser assim.

1- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010, pp 47-56.

terça-feira, fevereiro 01, 2011

Al Jazeera.

Não é grande novidade, mas o canal Al Jazeera está a fazer um trabalho extraordinário na cobertura dos protestos no Egipto. Têm um feed de video ao vivo e actualizações constantes (este link é para 1 de Fevereiro; é melhor consultar a página dos blogs para outros dias). E um repositório de vídeos disponibilizados sob um licença de Creative Commons.

Já agora, o Guardian também é uma boa fonte para quem estiver interessado nisto.

Por cá, a notícia em foco é que o Carlos Castro continua assassinado. Ao que parece, continuará em foco até que a situação se altere.