segunda-feira, novembro 29, 2010

Duas coisas curiosas.

No blog da Rita Colaço, “Coreia do Norte” (1), encontrei esta senhora zangada da televisão norte-coreana a explicar como foi a Coreia do Sul a perpetrar uma provocação militar irresponsável e assim. Copiei a transcrição, em Inglês, no final do post. O que é curioso é que, mesmo sem perceber nada do que a senhora diz, dá para ver que é tudo treta só pela maneira de falar.



A outra curiosidade é, talvez, mais culpa da língua que da senhora. Ouvindo-a falar parecia uma gravação invertida. Por isso experimentei ver como ficava ao contrário. Fica na mesma:



Nota: quem não conseguir ver acima deste parágrafo um controlo para pôr o som a tocar pode descarregar o ficheiro (.ogg, 147kB) aqui, ou então instalar um browser de jeito como o Opera ou o Firefox.

Transcrição do discurso:

“The south Korean puppet group perpetrated such reckless military provocation as firing dozens of shells inside the territorial waters of the DPRK side around Yonphyong Islet in the West Sea of Korea from 13:00 on Nov. 23 despite the repeated warnings of the DPRK while staging the war maneuvers for a war of aggression on it codenamed Hoguk, escalating the tension on the Korean Peninsula.

The above-said military provocation is part of its sinister attempt to defend the brigandish “northern limit line,” while frequently infiltrating its naval warships into the territorial waters of the DPRK side under the pretext of “intercepting fishing boats.”

The revolutionary armed forces of the DPRK standing guard over the inviolable territorial waters of the country took such decisive military step as reacting to the military provocation of the puppet group with a prompt powerful physical strike.

It is a traditional mode of counter-action of the army of the DPRK to counter the firing of the provocateurs with merciless strikes.

Should the south Korean puppet group dare intrude into the territorial waters of the DPRK even 0.001 mm, the revolutionary armed forces of the DPRK will unhesitatingly continue taking merciless military counter-actions against it.

It should bear in mind the solemn warning of the revolutionary armed forces of the DPRK that they do not make an empty talk.

There is in the West Sea of Korea only the maritime military demarcation line set by the DPRK.”


1- coreiadonorte.wordpress.com

domingo, novembro 28, 2010

Treta da semana: telepadres.

No Encontro Nacional da Pastoral da Saúde, em Fátima, a ministra da saúde disse que «é preciso garantir a assistência espiritual nos tratamentos de saúde prestados em casa dos doentes»(1). O plano parece ser expandir o contingente eclesiástico que, pago pelo Estado, já há tempos prega nos hospitais públicos. Agora querem fundos adicionais para prestar este serviço ao domicílio.

O comunicado da AAP (2) aponta várias objecções a este plano da ministra Ana Jorge. Não é preciso assegurar nada disto porque religiões que venham bater à porta não é coisa que nos falte. Além disso, a assistência religiosa é uma vocação dos sacerdotes e faz parte da vivência do crente na sua comunidade. Não é nem terapia nem serviço para prestar contra reembolso pela ADSE. Finalmente, é um desperdício. Os ordenados que os serviços de saúde pagam aos padres dariam para ajudar muita gente a comprar os medicamentos de que precisam e que não conseguem pagar. A ministra deve garantir primeiro os medicamentos, e só depois se preocupar com o tal espírito que muitos dizem ter mas que ninguém vê.

Mas aqui, falando só por mim, gostava de acrescentar uma objecção importante. A assistência “espiritual” é uma mentira. Não é apenas uma questão das pessoas gostarem de ter lá o representante da sua religião. Não é assistência psicológica ou mero consolo emocional. Em geral, as pessoas sentem necessidade deste apoio porque as convenceram de que aquilo é verdade. Julgam, conforme lhes foi ensinado, que o padre, o rabino, o imã, o monge, ou o que lhes tenha calhado, sabe mesmo o que os deuses querem, tem poderes mágicos para perdoar pecados, dá impulso extra às orações e é mediador indispensável na negociação com as divindades.

Isto não é o mesmo que gostar de música clássica ou de ficção científica, ao contrário do que sugerem alguns que argumentam em favor de subsidiar os padres porque também se subsidia artes e espectáculos. A diferença é que gostar deste cantor ou daquela actriz não implica acreditar em mentiras. Não é o mesmo que acreditar em Shiva, ou que Maomé falava com o criador do universo ou que só a fé em Jesus nos pode salvar.

Este problema afecta toda a sociedade. Não temos leis no código penal punindo quem diga mal do Benfica ou da Madonna, mas “vilipendiar” religiões pode dar prisão. Não se deve troçar da religião das pessoas, segundo dizem. Só da sua afiliação política, crença na astrologia, convicção de que somos visitados por extraterrestres ou tudo o resto que não seja religioso. Alguns crentes religiosos têm a honestidade de afirmar que só a religião deles é verdadeira. Esses vemos logo que são presunçosos e prepotentes. Outros preferem dizer, condescendentes, que todas as religiões são igualmente válidas, cada uma à sua maneira. Só que não tão igualmente válidas que aceitem que os filhos escolham uma diferente da sua.

Isto tudo porque a experiência religiosa depende sempre de assumir como verdadeiros, e em exclusivo, os dogmas de uma religião específica. Ninguém é religioso genérico. É sempre de uma marca qualquer. A “assistência espiritual” é um eufemismo enganador para uma diversidade conflituosa de “assistências”: católicas, evangélicas, judaicas, muçulmanas e assim por diante, todas afirmando-se como a única virtuosa e verdadeira. O apoio estatal só incentiva esta divisão nefasta. Quer façam como agora, subsidiando apenas os católicos em detrimento dos outros, quer passem a contratar ministradores de tudo o que é religião, acabam por pagar a cada um para dizer que só ele tem razão e que os outros estão enganados.

Para mais, é pura superstição. As crenças acerca do Buda, de Maomé, de Moisés, de Jesus, de Xenu ou das placas de Mórmon são tão infundadas como o medo do dia 13 ou a confiança em amuletos. Não digo que o Estado deva reprimir estas crenças. Se alguém achar que a figa de ouro ajuda a curar uma infecção, que atribui a um mau olhado em vez de micróbios, os serviços de saúde devem limitar-se a dar a medicação e deixar a pessoa acreditar no que quiser. Mas o Estado também não deve incentivar estas parvoíces. Será um mau exemplo a ministra garantir que todos os pacientes tenham acesso gratuito a figas de ouro.

Uma objecção importante a esta medida é ser asneira incentivar estas tretas que tanto dividem qualquer sociedade. O que está em causa aqui não são apenas gostos pessoais ou sequer a fé de cada um, já de si fracas desculpas para gastar o parco orçamento do Serviço Nacional de Saúde. A crença religiosa é mais do que meramente pessoal. Quem adere a uma religião compromete-se não só a aceitar como verdade hipóteses sem qualquer fundamento, mas também a condenar como imoral a sua rejeição. Por exemplo, que o menino Jesus criou todo o universo e que quem não acreditar nisso merece uma eternidade no inferno. Não é racional investir os nossos impostos na propagação destas ideias.

1- Ecclesia, Ministra da Saúde quer assistência religiosa em casa dos doentes
2- Diário Ateísta, Serviço Nacional Religioso (SNR) Comunicado da AAP

Modelos incompatíveis.

A minha opinião de que não é consistente defender a teoria da evolução e, ao mesmo tempo, que Deus nos criou de propósito, suscitou a objecção de que Deus poderia ter feito tudo propositadamente de forma a parecer que evoluímos. Pode ser. Se Deus é omnipotente até pode ter criado o universo a semana passada, pondo nos nossos cérebros todas as memórias de um passado ilusório. Mas o problema permanece porque as hipóteses são incompatíveis. Se defendemos que tudo foi feito propositadamente mesmo que não pareça, então estamos a rejeitar a hipótese da evolução por processos naturais sem propósito.

O João Vasco defendeu que a teoria da evolução pode ser compatível com o criacionismo católico da mesma forma que modelar a moeda como uma variável aleatória é compatível quer com a moeda cair ao acaso quer com a trajectória da moeda ser determinada por detalhes que nos escapam, incerta mas determinística (1). Mas quem defenda que a moeda cai mesmo ao acaso não pode defender também que a trajectória da moeda está perfeitamente determinada pela posição inicial, impulso e colisões. Os modelos usam as mesmas equações, porque a probabilidade tanto pode representar acaso como incerteza. E podem descrever igualmente bem o mesmo conjunto de dados. Mas dizem coisas diferentes. Um diz que é por acaso, o outro diz que não. Por isso, são incompatíveis.

Podemos imaginar um terceiro modelo que só descreve os lançamentos da moeda, com essas equações, e se abstém de dizer se a moeda cai por acaso ou de forma determinística. No entanto, o problema permanece. Este modelo não é compatível com os outros porque não faz sentido considerar dois destes três modelos como igualmente correctos. Ou dizemos que o lançamento aleatório, ou dizemos que não é, ou nos abstemos de dizer se é ou não é. Só é consistente optar por uma destas posições. Além disto, este modelo agnóstico tem o defeito adicional de não explicar nada. Descreve os resultado com as mesmas equações que os outros usam mas não diz porque hão de ser aquelas equações em vez de outras quaisquer.

Qualquer modelo criacionista para a origem da nossa espécie é incompatível com o modelo que a teoria da evolução nos dá porque o criacionismo assume que surgimos de propósito enquanto a teoria assume o contrário. Nem mesmo despojando o modelo evolucionista do seu poder explicativo, reduzindo-o apenas às equações e à descrição dos dados, se consegue resolver este problema. Tal como o modelo agnóstico da moeda, o modelo agnóstico da evolução, que se abstém de dizer se foi deus ou o acaso, é inconsistente com a afirmação de um propósito divino para a nossa origem. Ou se adopta um modelo, ou se adopta o outro. Não faz sentido defender ambos como igualmente correctos.

Ironicamente, o problema é ainda mais profundo. Os modelos evolucionistas, para qualquer espécie, descrevem os dados daquela maneira porque são instâncias particulares da teoria da evolução. Uma teoria é um esquema genérico, instanciado em modelos específicos, que unifica esses modelos diferentes sob a mesma explicação. A teoria da evolução permite derivar, do mesmo conjunto de premissas básicas, todos os modelos da origem natural das espécies. Numa população de replicadores cujas características herdadas afectam o sucesso reprodutivo, que sofrem mutações e que competem por recursos limitados, sem a acção de um ser inteligente é inevitável que a evolução decorra como esta teoria descreve. Isto justifica que se descreva o processo com estes modelos em vez de outros quaisquer porque, sem deuses, só pode ser mesmo assim.

Os criacionismos não têm qualquer teoria. Cada variante do criacionismo diz simplesmente que um deus criou o universo e ajusta o seu modelo à sua fé, ao seu livro sagrado ou tradição. Não há uma teoria subjacente que unifique vários modelos e que os justifique com premissas mais fundamentais. Criacionistas evangélicos e muçulmanos rejeitam quase tudo o que tenha que ver com evolução. Os católicos não vão tão longe, dizendo aceitar as equações e algumas explicações evolutivas. Mas todos insistem que a nossa espécie surgiu de propósito. Isto obriga a rejeitar, em cada modelo evolutivo, tudo o que justifica descrever assim esse processo, e obriga a rejeitar a explicação que unifica todos os modelos evolutivos. Ou seja, qualquer forma de criacionismo obriga a rejeitar a teoria da evolução, porque essa só se aplica a processos cegos, sem capacidade de prever ou planear resultados futuros.

A ironia está em os religiosos alegarem preocupar-se com as questões últimas mas, perante uma explicação que esclarece cabalmente a nossa origem e a origem das outras espécies, rejeitá-la em troca dos mistérios insondáveis da sua fé. Além do criacionismo ser incompatível com o conhecimento científico moderno, por rejeitar o fundamento científico de todos estes modelos, esta atitude de preferir mistérios em vez de explicações testáveis é incompatível com a própria procura de conhecimento. O que não admira porque, afinal, o papel principal das religiões é o de criar uma ilusão de autoridade e não o de tentar perceber seja o que for.

1- Comentários em Evolução: a hipótese nula.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Moda.

Reparei agora que ainda não tinha neste blog um post sobre moda. Ora aqui vai, para colmatar esta grave lacuna.

quarta-feira, novembro 24, 2010

Porque fiz greve.

Por um lado, acho mal que o Estado altere unilateralmente o contrato de trabalho de uma data de gente, reduzindo os ordenados sem o acordo dos visados. Mas, por outro, a forma como o fez até seria justa, tirando apenas aos que ganham mais, se não fossem as excepções à CGD e afins (1). Por um lado, sou contra o aumento de impostos como o IVA, um castigo adicional aos mais aflitos. Mas, por outro, sou a favor do aumento do IRS. É preciso dinheiro para pagar as dívidas do Estado, e os impostos são a fonte mais justa para isso.

E se, por um lado, sou contra que cortem em coisas como serviços de saúde, segurança social e educação, só para não aumentarem os impostos de quem os pode pagar, por outro lado sei que a greve não adianta de nada. A maior parte dos eleitores já comprou a camisola do seu partido e não quer perder o investimento. Nas próximas eleições, os do PS vão votar no PS, os do PSD no PSD, e ninguém vai querer saber das asneiras que fizeram. Os indecisos chegam apenas para não se saber qual deles vai ficar à frente, mas os ratos vão acabar governados ou pelo gato branco ou pelo gato preto.

A razão pela qual fiz greve é que não há Metro, nem comboios, nem uma data de outros transportes. Além de ter de ir de véspera para a faculdade, mesmo assim não adiantava porque não ia ter alunos. E se, por um lado, tenho pena que o direito à greve não inclua o direito de não a fazer, por outro lado compreendo que não se pode ter tudo.

Assim, manifesto-me solidário com os meus colegas da função pública, e com todos os portugueses, contribuindo este dia de ordenado (e subsídio de refeição) para a redução do défice nacional.

1- Jornal de Negócios, PS aprova excepção aos cortes salariais à medida da Caixa e BdP

terça-feira, novembro 23, 2010

Heurísticas.

O post de Domingo suscitou alguma discussão (1). Várias pessoas apontaram uma, ou ambas, de duas razões para condenar a NATO por causa do Afeganistão: que as intenções dos americanos não são louváveis e que não se deve interferir nos assuntos internos de outros países. São heurísticas úteis que, em muitos casos, conduzem à solução correcta mesmo sem se perceber os detalhes do problema. Muitas vezes é verdade que más intenções dão maus resultados, e muitas vezes é sensato não interferir nos outros países. Quando se tem sintomas de gripe, também é boa ideia comer uma sopa quente e ir cedo para a cama. Resulta quase sempre.

Mas há problemas que não se resolvem com sopinha. O Afeganistão, por exemplo. A heurística das intenções serve quando alguém nos oferece boleia ou nos quer vender um carro. Uma operação militar internacional envolve tanta gente que as intenções deste ou daquele deixam de ser um bom indicador, mesmo que as consigamos descortinar correctamente. O princípio da não-ingerência, e da soberania dos Estados, surgiu quando um Estado era o rei e os seus súbditos, e esse possessivo era muito mais literal do que agora julgamos aceitável. Hoje damos mais importância às pessoas do que às nacionalidades. Ou, pelo menos, devíamos dar.

A regra de preferir a paz em vez da guerra também não se aplica porque, excepto em detalhes técnicos irrelevantes, o Afeganistão estará em guerra com a NATO ou sem a NATO. O problema da guerra é o sofrimento, a violência, a morte e o desrespeito pelos direitos mais fundamentais. São tudo coisas que os Taliban fazem bem sozinhos.

Com o Afeganistão estas heurísticas não servem. E não faz sentido invocar como fundamento o princípio da não ingerência, a paz, a soberania desse (suposto) país e coisas afins porque nada disso é fundamental. Essas regras derivam de considerações mais fundamentais como, por exemplo, a liberdade de cada um ser feliz à sua maneira. São heurísticas úteis porque, muitas vezes, contribuem para esse fim. Mas são só os meios. Não são o fim.

O Afeganistão só se endireita, no mínimo, daqui a uma geração. É preciso que os miúdos de agora cresçam com uma noção de que têm direitos, de que não devem ser as metralhadoras a mandar, de que o governo só é legítimo se for eleito, de que há valor na educação, na igualdade e mais uma data de coisas que são óbvias para nós mas novidade naquele sítio dominado por costumes tribais e fundamentalismo religioso. Só quando essa geração crescer e substituir as de agora é que começará a fazer sentido a soberania, a auto-determinação e afins. Até lá é preciso visar o fundamental em vez das regras gerais que daí se derivam. Entretanto, a região vai ser controlada pela força das armas. Não há outra opção. A questão é apenas de quem as vai empunhar, se a NATO e a ONU durante uma década ou duas, ou se os Taliban durante o tempo que durarem, seguidos eventualmente de mais malucos da mesma estirpe.

Há muitos que, no descanso de quem está longe, dizem ser os soldados da NATO ainda piores que os Taliban. Bem, na verdade, não o dizem claramente, talvez com medo do ridículo. Mas chamam-lhes invasores, acusam o Ocidente de impor a democracia*, alegam que os soldados matam muita gente e deixam implícito que mais valia os Taliban. Discordo.

Os soldados da NATO cresceram onde se respeita os direitos das pessoas e onde, por isso, se vive bem melhor que no Afeganistão. Em situações de combate é fácil esquecer esses direitos mas, mesmo assim, estou confiante de que os soldados portugueses, por exemplo, têm muito mais respeito pelos direitos das pessoas do que têm os Taliban.

Além disso, as tropas da NATO têm a quem responder. As suas acções não são tão transparentes como deveriam ser, mas quem os comanda tem eleitores a quem prestar contas e os soldados e oficiais estão sujeitos a leis de conduta e a castigos se as violarem. Os Taliban fazem o que querem sem dar satisfações a ninguém.

Finalmente, as tropas da NATO querem estabilizar o país para sair de lá. Esses soldados não foram conquistar território. Não querem ficar lá a mandar em vilas e camponeses. Os Taliban, pelo contrário, querem-se instalar no poder pelo máximo de tempo que conseguirem.

A presença militar é apenas uma das condições necessárias para transformar o Afeganistão num país e dar ao seu povo um governo legítimo. Há muito mais a fazer, vai demorar muito tempo até haver resultados (2) e há sempre o perigo de que a oposição do eleitorado obrigue a deixar o trabalho a meio, perdendo-se qualquer proveito. Mas a escolha não é entre paz e guerra. É apenas se será a NATO contra os Taliban ou os Taliban contra pessoas desarmadas. E parece-me que só pode julgar que a segunda opção é a melhor quem pensar no problema de forma abstracta, guiando-se por essas heurísticas que generalizam ignorando os detalhes. Porque quem tiver em mente o que são os Taliban e se imaginar a criar filhos, filhas, netos e netas sob o seu poder tem certamente a opinião contrária.

* Não me perguntem o que é impor a democracia, que também não percebo. As pessoas têm o direito de eleger quem os governa, de se exprimir livremente, de se associar, de propor mudanças, pedir explicações aos governantes e assim por diante. E têm esses direitos seja qual for o regime. A democracia é apenas o único que não os viola. Não se impõe a democracia. O máximo que se pode fazer é impedir candidatos a ditador de violar estes direitos.

1- Aqui no blog, no FriendFeed e um pouco no FaceBook com o Miguel Caetano.
2- BBC, West cannot defeat al-Qaeda, says UK forces chief

domingo, novembro 21, 2010

Treta da semana: contra a NATO, pela paz.

Concordo que esta cimeira fez pouco sentido. Não vieram decidir nada, que certamente já estava tudo negociado. Podiam ter feito a coisa por vídeo-conferência e poupado imenso dinheiro. E há aqui tretas à farta. Os blindados que, como as uvas que a raposa queria, afinal já não eram importantes. Fechar as fronteiras para nos proteger de quem traga roupa preta. Mais engraçado ainda (no sentido de triste), o Sócrates todo inchado com o “prestígio” que isto traz a Portugal. Parecia um tipo todo orgulhoso por ser administrador do condomínio. Mas essas são fáceis. Hoje apetece-me abanar o vespeiro, talvez por causa da gripe. A treta desta semana é o disparate de ser contra a NATO porque se é pela paz, contra a guerra e chavões afins.

Ser contra a guerra não é nada de especial. A guerra é horrível. É como ser contra a amputação. Eu também sou contra matar gente ou cortar braços e pernas às pessoas. Mas às vezes tem de ser. Se há bandos armados a aterrorizar populações, governos a organizar genocídios ou regimes que torturam, raptam e matam, as opções eficazes são limitadas. Protestar com cartazes à frente das embaixadas alivia a consciência mas, no fundo, são problemas que só se resolvem amputando o que está gangrenado.

Admito que é fácil apontar erros, desgraças e atrocidades a qualquer participante de qualquer guerra. Ao contrário da amputação, com médicos e equipamento cirúrgico, a guerra faz-se com jovens armados de bombas e metralhadoras. Quem já se afasta dos seus vinte e poucos sabe que não é essa a melhor idade para andar com armas. Só que os soldados são mais eficazes quando têm glúteos e bíceps desenvolvidos mas o córtex pré-frontal ainda em formação, e não é de esperar que se passe a restringir o treino militar apenas a candidatos com filhos e mais de quarenta anos mesmo que isso resolvesse muitos dos problemas da guerra.

Para um treinador de bancada tudo é fácil. Evita-se o massacre de Srebrenica convidando o Mladić para uma partida de futebol com os bósnios ou dando-lhe a conhecer a doçaria regional. E o problema dos Taliban resolvia-se sozinho porque, obviamente, ninguém voltaria a votar neles. Mas, na realidade, o pacifismo só é viável quando a paz é uma opção. Se uma milícia se organiza para matar centenas de milhares de pessoas não basta cantar slogans contra a guerra. Como falha grave a apontar à NATO, à ONU e à comunidade internacional proponho, em vez da intervenção na Bósnia ou no Afeganistão, o “pacifismo” com que encolheram os ombros ao Ruanda. Se algo justifica ter exércitos é intervir quando uma data de pessoas se andam a matar umas às outras. E por pessoas quero dizer da nossa espécie, e não apenas do meu país, da minha língua ou da minha cor. Não me convence a desculpa de que não temos nada com isso porque são outros povos e costumes.

É o caso das tropas portuguesas no Afeganistão, poucas centenas de voluntários que ajudam a proteger pessoas, dão assistência médica e treinam polícias. Segundo a petição online (1), têm de sair de lá por causa da «deterioração da segurança» e porque «a situação humanitária é catastrófica». Mas isto não é culpa das tropas portuguesas e não há indícios da situação melhorar deixando os Taliban voltar ao poder. Dizem também «Que a resolução dos problemas do Afeganistão depende essencialmente do seu próprio povo», ignorando que povo do Afeganistão se divide em dois grupos. Uma minoria com armas e que manda, e uma maioria que ou obedece ou leva tiros, e que nada pode fazer para mudar isto sem ajuda.

Como acontecia na Europa antes da NATO. O Tratado do Atlântico Norte foi assinado em 1949 em resposta à ocupação da Europa de Leste pela União Soviética, e foi fundamental para evitar a terceira guerra mundial. A Europa que agora conhecemos como sítio pacato e civilizado esteve quase sempre em guerra até meados do século XX. Na Crimeia em 1854, depois entre a Áustria e a Prússia, a França e a Prússia, a Rússia e a Turquia, a Sérvia e a Bulgária e a Grécia e a Turquia só até ao fim desse século. Depois a Itália e a Turquia em 1911, os Balcãs em 1912, a primeira guerra mundial, várias guerras civis e entre países da Europa de Leste, a Grécia e a Turquia novamente e, finalmente, a segunda guerra mundial (2).

O tratado do Atlântico Norte acabou com as guerras entre os países signatários, travou a invasão soviética, e sem a brutalidade com que a URSS interveio na RDA, Polónia, Hungria e Checoslováquia. A organização militar associada à NATO, e as suas intervenções depois da guerra da Coreia, têm certamente defeitos e várias motivações menos nobres. Mas dizer ser pela paz e contra o Tratado do Atlântico Norte é ridículo.

Esta aversão irracional que a esquerda têm a este tratado incomoda-me porque sou bastante de esquerda. Por razões práticas e por razões éticas, acho fundamental que haja uma boa redistribuição da riqueza e um estado social forte para que a democracia e o mercado livre funcionem e perdurem. Mas já é hora de largar a foice, o martelo e as restantes ideologias bacocas. Se querem apontar defeitos à NATO leiam o tratado (3) e digam o que há lá de mal. Se discordam das intervenções da NATO e da ONU fundamentem devidamente essas objecções. Por exemplo, expliquem como é que a vida seria melhor no Afeganistão controlado pelos Taliban, que até a musica proibiam. E deixem-se dessa treta de que os soldados de um país nunca podem ajudar as vítimas dos outros. Quando há pessoas a serem mortas, torturadas, escravizadas e violadas, o que importa não é o que se escreve no BI ou se desenha num mapa.

1- PETIÇÃO PELA SAÍDA IMEDIATA DAS TROPAS PORTUGUESAS DO AFEGANISTÃO
2- Wikipedia, List of conflicts in Europe
3- NATO, The North Atlantic Treaty

Editado a 22-11, para indicar que é depois e não desde a guerra da Coreia. Obrigado ao Ricardo Alves por revelar a ambiguidade da frase como estava.

sexta-feira, novembro 19, 2010

Mais intolerância.

Eis mais um acto de intolerância e repressão da parte de ateus fundamentalistas e agressivos. Agora no Canadá. É incrível este ataque vil e gratuito aos fiéis seguidores do Bigfoot.



Via Jugular.

quinta-feira, novembro 18, 2010

Eu, a Web, e praga dos condensadores.

Há uns dias a minha televisão deixou de funcionar. Começou por fazer muitos clicks antes de ligar e acabou por ser só clicks em vez de imagem ou som. Foi uma chatice porque é a televisão que está ligada ao PC dos jogos. Estragou-se a placa de alimentação. Estes LCD da Samsung usam uns condensadores electrolíticos feitos para aguentar 10V, ligados em linhas de 12V e 13V. O que provavelmente estaria dentro da tolerância dos condensadores se não fossem de lotes defeituosos fabricados em Taiwan entre 1999 e 2007. Alguém lá decidiu aldrabar no electrólito e o resultado foram condensadores que acumulam hidrogénio até rebentar. A imagem abaixo mostra os quatro culpados, indicados com as setas. O da direita estava só inchado, mas os outros três já tinham vazado algum electrólito.

puf

Substituir a placa de alimentação por uma em segunda mão custaria mais de 100€ e acabaria por ter o mesmo problema outra vez. E mandar arranjar televisores fora da garantia também não sai barato. Por isso decidi arranjá-lo eu. Os condensadores novos custaram 3€, a soldadura demorou quinze minutos e agora já tenho a televisão a funcionar. Mas o engraçado é que, ao contrário do que esta história sugere, eu não tenho experiência nenhuma nestas coisas. Sozinho, não faria sequer ideia do que se passava com o televisor. Todo isto encontrei na Web.

Pesquisando pelo modelo e pelos sintomas fui ter a fóruns onde outros já tinham relatado este problema, daí a páginas explicando como o resolver (1), ao artigo na Wikipedia sobre a praga dos condensadores (2) e depois ao YouTube para ver como os substituir (3). No total gastei 13€ porque comprei o ferro de soldar, a solda, o antioxidante e um alicate. E oito condensadores, com medo de estragar uns quantos na soldadura. Mas correu tudo bem à primeira. Depois de ver como se faz, foi surpreendentemente fácil.

É esta a revolução que a Internet trouxe. Muita informação que dantes servia para ganhar dinheiro, por ser de acesso restrito, agora deixou de ser negócio. Passou a ser cultura. Algo que, por ser partilhado, tem ainda mais valor do que quando tinha preço. E isto é verdade tanto para a reparação de televisores como para músicas e filmes. A facilidade de acesso à informação permite fazermos por nós muitas coisas que dantes tínhamos de pagar a outros para fazer, seja cópias seja reparações.

Uns dirão que copiar músicas e filmes é diferente por uma questão de autoria e protecção da criatividade. É treta. Eu não inventei os componentes electrónicos nem o circuito que fotografei. Mas por ter carregado no botão da máquina fotográfica a lei consagra-me autor da fotografia e dá-me direitos exclusivos sobre essa representação digital. No entanto, se fosse a representação digital de um arranjo de notas musicais em vez de um circuito electrónico, a mesma lei condenava-me por usurpação de uma “propriedade” abstracta. Isto reflecte apenas interesses comerciais e não tem nada que ver com criatividade ou autoria.

Outros admitem que o problema é o dinheiro mas alegam ser imoral aproveitar informação gratuita para privar a editora daquilo que ganharia com a venda do CD. Mas isso não pode ser mais imoral do que privar a Samsung do dinheiro que ganharia com o arranjo da minha televisão. É verdade que as músicas que a editora vende têm autores, mas os televisores da Samsung também. A única diferença é que os engenheiros têm ordenado enquanto os músicos ganham à cópia, e esse problema é culpa do copyright.

Finalmente, há quem ponha de parte estas coisas da autoria e moralidade para defender um equilíbrio pragmático entre os interesses das empresas e os direitos das pessoas, propondo restringir apenas a informação cuja partilha cause prejuízos indevidos. É o sistema que temos, e não funciona porque os abusos são inevitáveis. A codificação digital é arbitrária. Sejam canções ou instruções para substituir condensadores, pode-se codificar usando os números que se quiser. Por isso não há critérios objectivos para distinguir bytes legais de bytes ilegais. Esta subjectividade de critérios cria um conflito desigual entre empresas, que têm dinheiro para pagar advogados e políticos, e os cidadãos que não têm tanta facilidade em se defender no tribunal. Em vez de ser um conjunto de regras claras e iguais para todos, esta lei é um jogo para ver quem tem o advogado mais caro. Os resultados, inevitavelmente, são os que se vê.

E nem sequer faz sentido procurar um equilíbrio entre valores tão diferentes. Do lado da partilha livre de informação temos não só a liberdade de expressão mas também a possibilidade de qualquer pessoa fazer e experimentar coisas que há poucos anos nem consideraria possíveis. Do outro lado, pelas restrições, há somente a vantagem duvidosa de inflacionar alguns bens e serviços como CDs e a reparação de televisores. A solução mais razoável, quer pelos valores em causa quer pela elegância da implementação, é usar a lei apenas para garantir os direitos pessoais e deixar que o mercado resolva por si os problemas comerciais.

1- Earth Info, Samsung TV makes a strange clicking sound, por exemplo.
2- Wikipedia, Capacitor plague
3- YouTube, Replacing Capacitors Demo.

terça-feira, novembro 16, 2010

Evolução: a hipótese nula.

O Alfredo Dinis pediu-me que explicasse «como deveria ser a evolução para que fosse compatível com a existência de um Deus criador.»(1) Não pode. É como a erosão e a escultura. Se a rocha tomou aquela forma pela acção intencional do escultor então não foi pelo efeito cego da chuva e do vento. São explicações diferentes, e mesmo que o escultor tenha poderes especiais e controle a chuva e o vento, o resultado será uma escultura e não o que entendemos por erosão. A evolução e a criação também são processos diferentes.

Para compreender a disposição da terra e pedras no solo podemos considerar a geologia da região, a forma como a água escorre pelos declives e deixa sulcos ou como o vento leva a areia fina e deixa as pedras maiores. Muitos aspectos são previsíveis devido a padrões que podemos perceber nestes processos naturais. E outros aspectos consideramos aleatórios por não os poder inferir dos mecanismos que conhecemos. Aquele seixo calhou ali como podia ter calhado um pouco ao lado, e esta pedra em cima da outra podia ter ficado por baixo.

A teoria da evolução dá-nos modelos deste tipo. Percebemos porque é que a inteligência só surgiu animais multicelulares. Seres unicelulares não conseguem a complexidade do sistema nervoso e plantas e fungos não têm neurónios. Mas os vertebrados terem todos a retina virada para o lado errado parece ter sido um acidente, uma mutação menos afortunada num antepassado distante. Não se explica pela presença de um esqueleto interno.

Se encontramos pedras em forma de ponta de seta precisamos de uma explicação diferente. A erosão pela chuva ou o azar não dão um modelo adequado. Explicamos essas pedras pela acção dos caçadores que ali viviam e que as esculpiram para caçar animais. Confirmamos a hipótese procurando vestígios de acampamentos, ossadas dos animais caçados e assim por diante. O mesmo para o milho transgénico, que não pode ser explicado pela teoria da evolução mas sim pela acção propositada de quem clonou os genes de outros organismos e os inseriu no milho, deixando no genoma vestígios dos vectores de clonagem e outros marcadores.

As teorias da evolução e da erosão dos solos são o que em estatística se chama a hipótese nula. Assumindo aquelas distribuições de probabilidade para o que não conseguimos prever, sujeitas às restrições impostas pelos processos que conhecemos, prevemos o que se deve observar. Se as pedras ou as espécies estiverem de acordo com essas previsões então não se justifica concluir que surgiram de outra maneira. Só algo como o milho híbrido ou as pontas de seta é que exige outra explicação. Nesses casos, as teorias da evolução e da erosão não servem porque não são compatíveis com actos inteligentes. Nem podem vir a ser, pois visam explicitamente descrever o que acontece na ausência de inteligência.

Portanto, a teoria da evolução que temos desenvolvido nos últimos dois séculos será sempre incompatível com a criação inteligente. Nos casos em que haja manipulação inteligente de espécies precisamos de outras explicações. Além disso, para obter essas outras explicações temos de assumir algo acerca da inteligência em causa. Quais os seus objectivos, quais os processos que usou e que vestígios haverá disso para que se possa fundamentar a explicação.

Há uns tempos ensinei aos meus filhos um feitiço poderosíssimo que faz com que todo o universo seja exactamente como é. Sem formação em teologia, riram-se logo do disparate. Mas a «a existência de um Deus criador» que o Alfredo propõe sofre do mesmo problema. Se o universo for como é porque eu fiz o feitiço, ou porque Deus o fez, então as explicações que temos estão erradas. E como estas alegações não implicam nada acerca do que podemos observar, não dão qualquer informação ou explicação. A hipótese de uma criação inteligente e propositada só faz sentido se implicar algo diferente da hipótese nula.

O criacionismo evangélico diz que todas as pedras e grãos de pó foram criados de propósito por Deus. O criacionismo católico aceita a evolução e a erosão para quase tudo mas insiste que a nossa espécie, um seixo equivalente aos outros, está cá porque esse Deus quer. Deixo em aberto se um disparate será maior que o outro mas, seja como for, ambos são incompatíveis com as teorias que temos. Se estas hipóteses forem verdade precisamos de outras explicações. Que não podemos encontrar porque estas hipóteses não dizem nada acerca do que se possa observar.

O Alfredo perguntou também se será por falta de inteligência que os criacionistas católicos dizem não haver conflito entre criação e evolução. Penso que não. Afinal, os criacionistas evangélicos também dizem que a sua interpretação da Bíblia não cria conflitos com os dados que temos, o que é obviamente falso. Julgo que o Alfredo não explicará isto por falta de inteligência dos evangélicos, quanto mais não seja porque é uma pessoa educada. O problema, parece-me, está na fé. Quem decide aceitar uma proposição por confiança perde a capacidade de corrigir erros que só o cepticismo pode dar. Inteligente ou não, condena-se a ter de defender um disparate.

1- Comentário em ECR 2: Evolução

domingo, novembro 14, 2010

Treta da semana: preço, valor e custo.

No site do MAPiNET, uma notícia alega que «O valor dos conteúdos piratas na Internet, em Espanha, alcançou, no primeiro semestre de 2010, os 5212 milhões de euros, quatro vezes mais do que os conteúdos legais»(1). O meu primo Miguel, a propósito da nossa conversa sobre o copyright, escreveu que o trabalho de criação artística «leva tempo, e, logo, tem um custo — tem valor» e que, por isso, o autor tem direito a uma contrapartida monetária (2). São dois exemplos de uma confusão entre conceitos diferentes e que, com ou sem intenção, cria a ilusão de um problema onde ele não existe.

O dinheiro que trocamos por algo não é o valor dessa coisa. É o preço, e é fácil ver que não pode ser igual ao valor. Se compro iogurte por um euro é porque o iogurte que comprei vale mais, para mim, do que o euro que paguei. Se valesse o mesmo não me dava ao trabalho de ir à loja comprá-lo. E se o merceeiro me vende o iogurte é porque, para ele, o euro que recebe vale mais. O próprio dinheiro tem um valor diferentes para pessoas diferentes. Um euro não vale o mesmo para ricos e pobres. Além disso, o preço só reflecte estas diferenças de valor numa transacção comercial. No restaurante pago pelo almoço, mas em casa de um amigo não saco da carteira no fim da refeição. Se quero retribuir convido-o a almoçar em minha casa ou levo a sobremesa.

Os tais «5212 milhões de euros» de «conteúdos piratas na Internet, em Espanha» são treta, mesmo ignorando a argolada da “Internet em Espanha”. Esse número não tem sentido porque é um preço atribuído a coisas que são partilhadas sem fins comerciais. Os valores envolvidos são o gozo de ver, ouvir e partilhar, e ninguém paga milhões de euros por ficheiros descarregados do Rapidshare ou partilhados em torrents.

O que eles querem dizer é que este poderia ser o preço se controlassem exclusivamente a cópia e se a procura permitisse um mercado cinco vezes maior. Ou seja, é pura ficção. Mas ilustra um problema com os preços. O preço é uma medida justa da transacção apenas se as partes interessadas negociarem em igualdade de circunstâncias. Nesse caso, o preço fica no equilíbrio dos diferentes valores que os intervenientes atribuem ao que se transacciona. Mas quanto mais vantagem tiver uma das partes mais injusto será o preço, pois ficará mais distante desse equilíbrio. Os camponeses que colhem o café na Colômbia ganham uma miséria, não porque dêem pouco valor ao dinheiro ou porque o seu café não preste mas porque não têm outra possibilidade senão a de aceitar um mau negócio.

É isto que querem o MAPiNET e companhia. O negócio com o merceeiro é entre iguais. Ele não me pode tirar o dinheiro nem eu posso roubar o iogurte, mas se compro o iogurte posso fazer mais iogurte em casa copiando-o as vezes que quiser. Basta leite morno, e quem quiser vender iogurte tem de competir com isto. O copyright, como o temos hoje, serve para desequilibrar a negociação, proibindo uma das partes de copiar, para que a outra possa ditar os preços como entender.

O que me traz à outra confusão. O meu primo Miguel defende que a cópia tem de ter um preço porque a obra tem um custo. Isto confunde custo com valor e preço. Não é por algo custar a fazer que tem automaticamente valor, e nem tudo o que tem valor tem de ser transaccionado por um preço. Pior ainda, confunde cópia com criação. A criação da obra pode ter custo e, conforme a obra, pode ter valor. Também pode não ter, pelo que, se algum preço tiver, será aquele que o criador negociar com os interessados em troca do seu trabalho de criar a obra. É uma forma justa de decidir se vale a pena pagar esse trabalho ao autor. Justa não só por não depender de proibições como também por se decidir antes do autor ter o trabalho.

Há quem, como o MAPiNET, que defende que a partilha de ficheiros é um problema económico, inventando milhões de euros onde nem cêntimos há. Há outros, como o meu primo, que alegam tratar-se de um problema moral, como se partilhar informação fosse algum pecado. E há aqueles que dizem ser um problema legal porque as proibições são demasiado fracas (3). Mas o “problema”, que nem problema é, é que a cópia deixou de ter custos ou valor, e só à força de proibições absurdas é que consegue ter preço. Isto só parece um problema porque o autor esteve tanto tempo na sombra do distribuidor que a maioria julga só se poder pagar pela cópia e não pela criação da obra. Mas esta é a única solução razoável. O autor decide quanto quer pelo seu trabalho, o público decide quanto quer pagar pela obra e entre eles que se entendam. O resto é treta.

1- MAPiNET, Conteúdos ilegais valem quatro vezes mais que os legais em Espanha
2- Luís Miguel Sequeira, A perversidade da eliminação da propriedade intelectual
3- «Lutámos e conseguimos alterar a Lei da Rádio […] chegou o momento de alargar esta questão à Internet», afirma o João Gil, mostrando que a solução é obrigar, pela força da lei, as pessoas a gramar o que lhes dá jeito a eles. Público, Artistas reuniram-se para debater pirataria e tentar alterar a lei, via o FriendFeed da Paula Simões

sexta-feira, novembro 12, 2010

ECR 2: Evolução.

O décimo sétimo capítulo do livro Educação, Ciência e Religião (ECR) responde afirmativamente à pergunta «Pode defender-se a teoria da evolução e, ao mesmo tempo, acreditar em Deus?»(1). É evidente que se pode defender qualquer coisa independentemente do que se acredita. Basta ignorar qualquer inconsistência que daí advenha. Mas a forma como os autores respondem à pergunta revela uma compreensão imperfeita desta teoria que querem compatibilizar com a sua fé, alegando que «o nexo natural, causal e criativo dos eventos é, em si mesmo, a acção criativa de Deus. […] Uma imagem desta posição é pensar em Deus como um compositor, sendo a evolução a sua música, caracterizada por uma complexa beleza.»

Podemos calcular a distribuição de probabilidade para o número de vezes que uma moeda calha coroa em cem lançamentos, ou outras estatísticas do género, porque podemos modelar a complexidade das colisões entre a moeda, o dedo que a empurra, as moléculas do ar e a mesa considerando tudo isto como um processo aleatório. Mas só se assumirmos que o resultado não é determinado por algum ser inteligente a agir sobre a moeda. Se assim for, então o cálculo de probabilidades deixa de fazer sentido. Não poderemos tratar o resultado como uma variável aleatória, nem assumir que os lançamentos são independentes, nem nada do que precisamos para este modelo probabilístico.

Por isso, se perguntarmos a um matemático qual o resultado esperado, e o intervalo de 95% de confiança, para cem lançamentos da moeda assumindo que «o nexo natural, causal» desses lançamentos é «a acção criativa de Deus», a única resposta possível é “sei lá”. Não há forma de modelar isso.

Com a evolução temos o mesmo problema. Se assumirmos que factores como mutações, a segregação dos genes na meiose e o sucesso reprodutivo dos organismos resultam de processos naturais complexos mas sem inteligência, então podemos modelá-los como variáveis aleatórias inferindo das frequências observadas as suas probabilidades. Os modelos da genética de populações são mais complexos que o da moeda mas assentam nos mesmos princípios. E, tal como o da moeda, estarão completamente errados se a evolução for guiada por um ser inteligente. A teoria da evolução é incompatível com esse “Deus compositor”, da mesma forma, e pelas mesmas razões, que a distribuição binomial não serve para descrever o processo de escolher deliberadamente um dos lados da moeda.

Por isso, é inevitável o conflito entre a teoria da evolução e qualquer forma de criacionismo inteligente, mesmo que seja o criacionismo light dos católicos. Partindo do pressuposto que a evolução é um processo natural incapaz de pensar ou antecipar resultados futuros, a teoria da evolução consegue descrever a origem das espécies com muito mais detalhe e rigor do que qualquer alternativa. O que justifica rejeitar a hipótese de haver propósito ou inteligência na evolução, tal como se rejeita que a moeda seja controlada por extraterrestres quando se comporta exactamente como esperado de uma moeda a cair na mesa.

É certo que, para as religiões, a moeda cair por processos naturais não levanta qualquer problema. O problema está apenas na nossa origem, pela premissa alegadamente humilde de sermos a obra mais especial do criador do universo. Essa hipótese leva com um balde de água fria se, afinal, formos produto de bioquímica e selecção natural. Mas a ilusão de quem procura sentido para a sua vida no propósito de um ser imaginário é irrelevante para aferir estes factos. A verdade é que a melhor descrição que temos para a origem dos seres vivos que povoam agora a Terra depende de assumir que não há qualquer propósito ou inteligência na evolução.

Quem, por algum motivo pessoal, optar por um modelo de criação inteligente – muito pior porque, parafraseando o Ricky Gervais, não dá quaisquer detalhes (2) – adopta uma posição inconsistente com a teoria da evolução. Porque se assume «Deus como um compositor, sendo a evolução a sua música», então os modelos probabilísticos que a teoria da evolução gera não fazem qualquer sentido. Se a vida na Terra fosse uma criação inteligente, deliberada e propositada, seria incorrecto modelá-la da forma como a teoria da evolução o faz.

1- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010.
2- Como podem ver neste vídeo.

quarta-feira, novembro 10, 2010

OK, isso posso fazer.

Se funciona ou não, não sei. Talvez não consiga chegar aos 91 anos com essa vivacidade, por muito que me esforce. Mas, como se costuma dizer, não custa tentar.



E o mais engraçado é que foi na Fox News.

Via 9GAG, The best thing FOX NEWS has ever broadcast.

segunda-feira, novembro 08, 2010

Austeridade.

Ou porque é que acho que deviam aumentar os impostos em vez de cortar na acção social escolar.

The Watson Institute presents Mark Blyth on Austerity from The Global Conversation on Vimeo.


Obrigado pelo email com a ligação.

domingo, novembro 07, 2010

Treta da semana: anticlericalismo.

Ontem, em Santiago de Compostela, Joseph Ratzinger lamentou que «Tragicamente, sobretudo no século XIX, cresceu na Europa a convicção de que Deus é de certa forma um antagonista do homem e um inimigo da sua liberdade», afirmando que «a Europa tem de se abrir a Deus e aproximar-se dele sem receio». Avisou também da agressividade do anticlericalismo moderno, que disse parecer o que se vivia em Espanha na década de trinta (1).

A Guerra Civil Espanhola foi um confronto sangrento que matou quase um milhão de civis (2), entre os quais padres e freiras, vítimas como os outros. Talvez se tivessem safo melhor se a Igreja Católica não tivesse apoiado Franco de forma tão explícita e entusiástica (3). Ou talvez não, que guerras como essa não são eventos ordeiros e bem planeados. Mas, seja como for, esse “anticlericalismo” da guerra civil não tem nada que ver com o que se passa hoje.

O Joseph tenta assustar o seu rebanho dando ao ateísmo umas pinceladas de nazismo se está em Inglaterra e uns salpicos de guerra civil quando vai a Espanha. A ironia deve escapar aos muitos que já não sabem em que equipa jogava a Igreja dele. Tenta que, com medo do bicho papão, deixem de se pôr a pensar. É isso que o Joseph quer evitar porque, ao contrário desses conflitos de ódio cego e burrice, o ateísmo de hoje nasce da educação, da liberdade e da tolerância.

Quem cresça na Europa contacta com muitas culturas, ideologias e crenças, tendo de praticar desde cedo uma tolerância céptica, pois tem de aceitar a diversidade de opiniões sem poder adoptar mais que uma minoria. Beneficia também de um sistema educativo que, apesar dos defeitos, é o melhor de toda a história. Nunca a educação média foi tão boa como é agora. Isto é relevante porque aprender, compreender, e ter contacto com outras ideias torna as pessoas menos religiosas. É um antídoto poderoso contra a uniformização de crenças que qualquer religião quer impor, como se vê nas preocupações que os representantes religiosos manifestam acerca da educação. Quase sempre são por se ensinar às crianças algo que eles não querem que elas aprendam e, na educação religiosa, tem de ser cada um com a sua não vão as crianças ter ideias.

Além disso, somos livres de assumir a descrença. É uma liberdade ainda rara, da qual a maioria dos povos não beneficia. E é muito recente. Eu nunca senti qualquer constrangimento social, cultural ou institucional por ser ateu, mas a minha geração é a primeira com esta liberdade. Quando os meus pais eram novos não podiam dizer que a religião é treta sem arranjar sarilhos.

É por estas razões que, na Europa moderna, muita gente protesta quando se gasta milhões de euros com as magias de um senhor de vestido e sapatos Prada. Os protestos não são motivados pelo racismo nazi nem pelo ódio que levou nacionalistas e republicanos a matarem-se uns aos outros. Por um lado, muita gente não fica convencida que o Joseph fala mesmo com o criador do universo, ou que este, depois de ter feito milhares de milhões de galáxias, agora passa os dias preocupado com preservativos ou rezas. Para muitos, o Joseph Ratzinger faz o mesmo que a Maya ou o “professor” Bambo. Inventa umas coisas e convence umas pessoas mas não é nada que se deva levar a sério.

E, por outro lado, damos valor às liberdades que o Joseph e os seus companheiros querem reduzir. A «Europa tem de se abrir a Deus e aproximar-se dele sem receio» parece um pedido de tolerância, mas é o contrário. Cada europeu é que deve decidir por si a aproximação que julgar melhor e se é ao deus do Joseph ou a outro qualquer. E, apesar de dizerem haver só um deus com a qual todos se relacionam, não é isso que revelam nos actos. Por exemplo, no século VIII os muçulmanos construíram uma mesquita em Córdoba. A mesquita passou a catedral quando os cristãos a conquistaram, quinhentos anos mais tarde, e ficou conhecida até hoje por “mesquita-catedral”. Mas agora o bispo de Córdoba quer mudar a designação só para catedral para não “confundir” as pessoas e, apesar do deus ser supostamente o mesmo, os muçulmanos não podem rezar nesse santuário da sua religião (4).

Deus não é o inimigo da liberdade pela mesma razão que o Super-Homem também não é o seu defensor. Mas dá jeito a quem quer ganhar poder tirando liberdade aos outros. A gravidez da mulher violada ou o fim prolongado do doente terminal são problemas desagradáveis de considerar. A homossexualidade, o divórcio, a contracepção e as crenças dos outros exigem de quem discorda o esforço da tolerância. Quem diz vir a mando de um deus pode aproveitar-se destes preconceitos e cobardia moral para convencer as pessoas a desligar o cérebro e confiar. A ter fé, como costumam dizer. A ter fé no testemunho do Joseph e confiar que é ele quem melhor sabe que leis que devemos ter, com quem podemos casar e se podemos mudar de ideias depois. Porque lho disse o deus dele. Quem se puser a pensar tem mesmo de protestar contra isto.

1- Deutsche Welle, Pope urges Spain, Europe to open up to God
2- Wikipedia, Guerra Civil Española
3- Franco lutou contra “o ateísmo e o materialismo”, tendo sido descrito pelo Cardeal Gomá como sendo o “instrumento dos planos de Deus para a Pátria, como citou a Palmira neste post.
4- New York Times, Name Debate Echoes an Old Clash of Faiths. Obrigado pelo email com esta notícia.

sexta-feira, novembro 05, 2010

Uma questão ética.

O Miguel lamentou que a discussão sobre os direitos de autor se tenha tornado «uma questão ideológica», e alegou que o meu «objectivo é defender o modelo stallmaniano de "Propriedade (intelectual) é crime!", justificando a revogação dos artigos 23 e 27 (2) da Declaração Universal dos Direitos Humanos [DUDH], proibindo os autores de terem o direito de estipularem como devem ser utilizados os bens e serviços que prestam»(1). O problema aqui não é de ideologia, mas de preconceito. De engavetar o outro num ismo qualquer e ficar a bater na gaveta em vez de o ouvir.

Se a DUDH fosse apenas «Toda pessoa tem direito à protecção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor», eu rejeitava-a por ser tendenciosa e eticamente irrelevante. Eticamente, temos de considerar o conjunto dos direitos; considerar um direito isolado dos outros é aldrabice. No entanto, a DUDH como um todo é um bom ponto de referência, enumerando muitos direitos com os quais concordo. Por exemplo, que «Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.» É por ignorar os outros direitos que o Miguel diz defender «a liberdade do autor de licenciar o seu conteúdo como muito bem lhe apetecer», algo tão inaceitável que, estou convencido, nem o Miguel aceita.

Por exemplo, se eu publicar um livro e o quiser licenciar apenas a brancos, católicos ou mulheres, nem o Miguel nem a sociedade me reconhecem essa “liberdade”. Porque os outros têm o direito de não serem discriminados desta forma, um direito mais importante do que as minhas manias ou negócio. É um exemplo extremo, admito, mas estabelece claramente que não podemos assumir essa “liberdade” sem considerar os direitos dos outros, demonstrando que o problema não é só o direito do autor mas sim os direitos de todos.

Também é falsa a acusação, tortuosa, de que eu quero «[proibir] os autores de terem o direito de estipularem». Por mim, o autor pode estipular o que quiser. Eu tenho o direito, pela minha liberdade de expressão, de exigir de quem leia este post 50€ por cada vez que espirre. Não vejo justificação para me proibir de o exigir. No entanto, também defendo que nem a ASAE nem os tribunais percam tempo a fazer cumprir tais exigências, nem que alguém tenha a sua privacidade limitada só porque me deu para “licenciar” assim o meu conteúdo. E este é outro ponto importante: não se trata de proibir exigências ao autor mas de decidir que exigências a sociedade deve impor aos outros só porque o autor quer.

A questão ética, se não amputarmos dela todos os direitos menos um, é decidir em que casos a protecção dos direitos do autor justifica restringir os direitos dos outros. Há casos em que justifica. Para proteger a privacidade do autor, o direito de ser reconhecido como tal ou de não lhe imputarem algo que não criou ou que repudia. E, também, o direito de beneficiar da exploração comercial das sua obras. Por exemplo, o pintor receber uma fracção do preço de venda sempre que um dos quadros que pintou mudar de dono. Noutros casos não se justifica. Proibir a leitura de livros emprestados, o autor poder impedir que um livro que publicou esteja disponível em bibliotecas públicas, ou ser preciso pagar licença para cantar no duche. Mesmo que essas medidas aumentassem os lucros, o papel da lei é proteger os direitos de todos e não o negócio de alguns.

A minha proposta não é original. Segue a linha do que se tem feito desde o papel e instrumentos musicais até às cassetes e CD. Regular o comércio para que o autor beneficie da venda das suas obras, mas sem restringir direitos pessoais fora do âmbito comercial. Sem sacrificar direitos mais importantes, como o direito de acesso à cultura, a liberdade de expressão e comunicação ou a privacidade. Que é, em muitos casos, o que já se faz. Por exemplo, as discotecas pagam uma taxa pelo uso comercial da música. Nem é preciso autorização dos artistas, mas é preciso pagar para usar música nesse negócio. Em contraste, numa festa em casa nem taxa é preciso pagar, porque mesmo que muita gente oiça a música isso não é negócio.

Eu não quero proibir o DRM, nem obrigar a que todo o software seja de código aberto, nem forçar as editoras a dar livros ou discos de graça. Mas também não quero que proíbam todas as pessoas de desactivar o DRM, modificar o software que quiserem ou partilhar gratuitamente filmes, livros ou músicas. É plausível que a partilha gratuita reduza o preço de venda destas obras, ou que os autores tenham de cobrar pelo seu trabalho em vez de pelo acesso ao que criaram. Mas isso não é relevante, porque ter mais lucro ou este modelo de negócio não são direitos pelos quais valha a pena sacrificar o acesso à cultura, a liberdade de expressão e a privacidade.

Entre o lucro de uns e os direitos de todos, a escolha ética parece-me clara. E é irrelevante se isto me engaveta num ismo qualquer, se é ideológico ou “stallmaniano”. O que importa é que quem defende o contrário explique como a diferença no lucro de venda de algumas “obras artísticas” justifica restringir estes direitos a todos que não participem no comércio dessas obras. Se tentarem explicar isto, a conversa avança. Se continuarem a bater na gaveta é que não saímos do sítio.

1- Luís Miguel Sequeira, comentário em A perversidade é outra.

quinta-feira, novembro 04, 2010

In nomine RIAA.

Estou de acordo com o Vaticano. Não é um ponto teologicamente relevante mas, vendo bem as coisas, acaba por ser mais importante do que saber se a hóstia se transubstancia, quantos anjos se podem sentar num alfinete ou se o preservativo é pecado. Uma delegação da Santa Sé à World Intellectual Property Organization criticou o excesso de zelo com que empresas e governos perseguem quem viola o copyright, salientando que este tipo de legislação devia servir o bem comum (1).

Um exemplo saliente deste problema é o que fizeram à Jammie Thomas. Levada a tribunal por ter em partilha 24 músicas, e sem evidências de que alguém as tenha descarregado dela, foi primeiro condenada a pagar $222.000. Na repetição do julgamento – o primeiro foi anulado porque o juiz, incorrectamente, disse ser ilegal disponibilizar os ficheiros mesmo que ninguém os descarregasse – acabou por ser condenada a pagar $1.920.000, apesar de, em teoria, não poder ser culpada só por disponibilizar os ficheiros. No entanto, o juiz que presidiu ao segundo julgamento reduziu o montante para $54.000, por considerar que dois milhões de dólares por 24 músicas era injusto. Ontem saiu o veredicto do recurso. Agora dizem que vai ter de pagar $1.500.000. Dá $62.000 por cada canção cujo valor de mercado é de menos de um dólar (2).

A Jammie Thomas não é só um exemplo do excesso de zelo por parte dos lobbies e advogados. Sugere também haver aqui um papel para a Santa Sé. É que estes processos já começam a entrar no âmbito da teologia. Não chegaram ainda ao castigo eterno nem a culpar pessoas pelas músicas que Adão descarregou, mas já falta pouco. Mãe solteira e desempregada, a Jamie Thomas vai precisar de uns séculos no purgatório para conseguir pagar esta dívida.

1- Zeropaid, Vatican Criticizes Rich Countries’ “Excessive Zeal” for Copyright Enforcement
2- Zeropaid, Jammie Thomas Round 3: $1.5 Million for Illegally Sharing 24 Songs. Agradeço ao sxzoeyjbrhg pela notícia, e também a quem me enviou a ligação por email.

quarta-feira, novembro 03, 2010

A perversidade é outra.

O meu primo Miguel não concorda com «a abolição da propriedade intelectual», alegando haver «uma série de perversidades relativamente à questão dos direitos de autor que normalmente conduzem a falácias» (1). O que menciona já eu abordei aqui várias vezes. Não me importo de escrever sobre isto de novo. É um dos botões que tenho que dá sempre post quando o carregam. E não exijo, nem sequer à família, a pachorra de ler mais de duzentos posts sobre o assunto. Mas isto ilustra um aspecto importante. O autor publica para comunicar mas a comunicação também custa à audiência. Se bem que escrever dê mais trabalho do que ler, mesmo num blog destes é provável que, em conjunto, os leitores trabalhem significativamente mais que o autor. O autor, para o ser, depende muito mais da sua audiência do que sugere a metáfora de “produtor e consumidores”. Mas adiante.

O Miguel reconhece que, hoje, a distribuição é muito barata e que a cópia está ao alcance de todos, mas critica «a estratégia dos grupos anti-direitos de autor (a esmagadora maioria dos quais compostos por pessoas que não vivem do seu trabalho enquanto criadores artísticos)». Além da falácia ad hominem, porque esse aspecto é tão irrelevante como a maioria das pessoas que opõe a acumulação de pensões não beneficiar de várias, o Miguel também ataca um espantalho. Não oponho os direitos de autor. Oponho a concessão de monopólios sobre a distribuição, em especial se aplicados fora do âmbito comercial.

E faço-o, em parte, porque vivo de um trabalho criativo e porque quero proteger os direitos dos autores. Os meus e, no fundo, os de todos, porque o autor não é um mutante nem vem de Krypton. Defendo o direito do autor distribuir e divulgar a sua obra sempre que quiser, direito que não pode ser garantido se a lei conceder estes monopólios (2). Defendo o direito de acesso à cultura e o direito de participar nesse projecto colectivo (3). Defendo o direito de ser remunerado como um profissional (4) em vez de ter de vender direitos em troca de remuneração incerta (5), coisa que nunca foi especialmente benéfica para o autor, nem mesmo quando a cópia tinha de ser subsidiada (6).

É verdade que sou contra que o Estado subsidie a distribuição concedendo monopólios comerciais. Em tempos pode ter sido necessário mas agora é tão barato distribuir que não vale o custo desse mecanismo legal. Mas, acima de tudo, oponho que se estenda à vida pessoal estes monopólios que, até agora, nunca foram acerca do que cada um fazia em sua casa, nem do que líamos ou ouvíamos nem da informação que partilhávamos. Mesmo depois de começar a era digital a lei manteve-os circunscritos ao âmbito comercial (7). E sou contra que se perverta o alegado incentivo à criatividade transformando-o em censura, proibindo todas as descrições de certas coisas, sob qualquer forma e para qualquer fim, só para beneficiar o negócio de alguns (8).

Argumentando a favor da “propriedade intelectual”, o Miguel invoca «que lá porque não esteja legalmente a “roubar” um autor quando lhe duplico o seu conteúdo sem sua permissão, estou a comportar-me de uma forma eticamente repreensível: estou a dizer que me estou nas tintas para o trabalho que ele fez ao criar um objecto artístico, e, porque a lei mo permite, estou a aproveitar-me indevidamente do seu trabalho para meu benefício pessoal, sem me sentir obrigado a fornecer qualquer contrapartida.» Não é uma boa justificação.

“Propriedade intelectual” é um termo vago, e enganador, que abrange tudo desde segredos industriais a marcas registadas, e de patentes a licenças para tocar música em discotecas. O que está em causa é uma pequena parte disso. São questões como a Sony mandar prender quem abra a Playstation que comprou, a Microsoft processar quem instala o Windows sem autorização ou a RIAA multar quem partilha ficheiros. Ou seja, a questão de se pagar os lucros das empresas à custa dos direitos das pessoas.

Neste argumento, o Miguel diz ser eticamente repreensível “estar-se nas tintas” para o trabalho de um artista. Isso é ridículo. Qualquer um pode fazer uma treta e chamar-lhe arte. Felizmente, todos temos o direito de o ignorar. E é obviamente falso que usufruir, por si só, traga a obrigação de pagar. Basta pensar como seria cada vez que alguém experimentasse uma receita nova, aprendesse uma palavra ou a jogar um jogo. Isto é condenar como imoral o fundamento da nossa civilização e da natureza humana. A educação, a ciência, a linguagem, a cultura e até os valores morais que o Miguel invoca e que adquiriu sem pagar por eles. O malandro.

A obrigação de pagar vem de um compromisso e não do usufruto em si (9). É por isso que pago ao electricista mas não ao colega que me conta uma anedota. É por isso que cobro pelas aulas que dou mas não pelos posts que escrevo. A remuneração faz parte de uma transacção voluntária acordada entre as partes envolvidas. Cobrar sem acordo mútuo só nos impostos, e isso é outra coisa.

Por agora fico por aqui, para o Miguel poder ler os posts que indico abaixo antes de continuarmos. E, porque respeito o direito ao contraditório, recomendo também o manifesto do MAPiLET.

1- Luís Miguel Sequeira, A perversidade da eliminação da propriedade intelectual
2- Direitos e propriedade.
3- Direito de acesso
4- Novos modelos de financiamento
5- Salário é isso?
6- Quem lucra
7-DAT
8- Revolução
9- Premissas implícitas

Editado a 4-11 para corrigir uma gralha perversa. Obrigado ao Barba Rija pelo aviso.

terça-feira, novembro 02, 2010

Uma questão de perspectiva.

Parece que está tudo encaminhado para me reduzirem o ordenado. Paciência. Parece que tem mesmo de ser, a falta desses dez por cento não é grande desgraça e resta-me sempre o gozo de ter um trabalho interessante. Há muita gente que tem de aguentar bem pior.



Nem consigo imaginar o que será fazer isto horas a fio, todos os dias, durante anos...

Via BoingBoing

segunda-feira, novembro 01, 2010

O plágio, o roubo e a treta do costume.

O Twitter baralha-me, com aquelas rajadas de comentários de 140 caracteres. O máximo que consigo é o Friendfeed, e mesmo esse tem dias. Mas, por via do Friendfeed, fui dar a uma troca de impressões interessante no Twitter (1). Alguém do blog 31 da Sarrafada publicou o tweet «Bom dia! Faz hoje 72 anos que Orson Wells usou a rádio como nunca tinha sido usada antes», seguido do URL de um vídeo (2). Pouco depois, o Ricardo Martins publicou no Tumblr o mesmo vídeo com a frase «Faz hoje 72 anos que Orson Wells usou a rádio como nunca tinha sido usada antes.», atribuindo originalmente a fonte ao YouTube (3).

A reacção do interlocutor do 31 da Sarrafada foi que «Está mal está que o conteúdo não é teu», «E que tal alterares agora o post para reflectir a fonte?», «tens que perceber que não podes usar conteúdos de outros sem lhes dar o devido crédito», «A frase está lá complet[a], é plágio» e «não gostamos que nos roubem conteúdos». É curioso que ambos colocaram o mesmo vídeo sem mencionar os autores, e que estava correcta a atribuição original do Ricardo Martins, que indicava o YouTube como fonte do vídeo. Foi de lá que os do 31 da Sarrafada também o tiraram. Mas isto é apenas um detalhe. A maior treta é outra.

Não gostam que lhes roubem conteúdos. Mas roubar é privar a vítima daquilo que é seu. Se me tiram a camisola é roubo, seja para a usar, vender, queimar ou enterrar. É roubo porque fico sem a minha camisola. E para me roubar o “conteúdo” que é este texto só apagando os ficheiros do servidor. Por isso os únicos roubos de conteúdos na Internet são a censura ou a violação da privacidade. A cópia do que o autor publicou não rouba nada a ninguém.

E se bem que seja de bom tom dar crédito a quem fez o que usamos, tem de haver um limite, quanto mais não seja por razões práticas. Não podemos, em cada post, agradecer a todos desde Turing aos programadores do Blogger. Por isso, também o 31 da Sarrafada publica um comentário breve e um vídeo sobre o Orson Welles sem referir as pessoas que tiveram o trabalho de fazer a reportagem. E, quando o Ricardo Martins republica o mesmo vídeo, é razoável que refira a fonte do vídeo em vez da fonte da pequena frase que o acompanha. Se alguma falha há a apontar é não ter corrigido o nome do Sr. Welles.

Depois, diz que é plágio. O plágio é a fraude de se fazer passar por autor daquilo que se copiou. O aluno que copia do colega num exame comete plágio porque tenta fazer crer ao professor que escreveu por si aquilo que copiou do outro. Mas se a autoria é óbvia ou irrelevante não se põe o problema de enganar alguém com isso. É o que acontece sempre que o 31 da Sarrafada publica um vídeo do YouTube, comenta uma notícia digitalizada de um jornal (4) ou ilustra um post com uma fotografia sem identificar os autores (5). Ou se eu disser que o quadrado da hipotenusa é a soma dos quadrados dos catetos. Ou ler algures que “Hoje é o 58º aniversário da bomba de hidrogénio” e escrever aqui que hoje é o 58º aniversário da bomba de hidrogénio. Há muitos casos em que a cópia não é fraudulenta, e equivaler o plágio à cópia banaliza-o ao ponto de o tornar inevitável.

O que me traz à treta principal. «Pode-se usar tudo e mais alguma [coisa] desde que se tenha a autorização do autor», escreve no seguimento da conversa o interlocutor do 31 da Sarrafada. É comum esta ideia de que “o autor” pode publicar o que quiser onde quiser e ainda assim reter o controlo total sobre o que “criou”. É comum, mas ridícula. Isto não funciona.

Se deixo o meu livro no banco do jardim não é razoável queixar-me, no fim de semana seguinte, que entretanto mo levaram. É roubo. Era o meu livro e não tinham direito de o levar. Mas não posso exigir que sejam os outros a tratar de tudo. Eu também tenho de zelar pelas minhas coisas, se as quero preservar. E se é assim com o roubo de verdade, ainda mais é com a cópia do que publico. Eu tenho o direito de que não me levem os livros e de não deixar que copiem as conversas que tenho com a minha mulher ou as fotografias que tiro aos meus filhos. E exerço esse direito guardando os livros em casa e não disponibilizando essas coisas na Internet. Mas se ponho este texto num servidor programado para dar uma cópia a quem lá se ligar, então já dei a autorização que tinha a dar.

É importante que se perceba isto porque se está a exigir direitos incompatíveis. Por um lado, queremos ter liberdade de expressão, ter o direito de criticar, partilhar, aprender, comentar e transformar a informação que recebemos. O direito de participar na nossa cultura. Mas, por outro lado, há muitos a defender que qualquer espirrinho lhes deve dar o poder de exigir, regular ou proibir todos os outros de fazer o mesmo. Isto assim não funciona. O resultado, inevitável, é esta inconsistência ridícula de publicar um vídeo sem referir os autores e depois parir uma vaca só porque alguém copia um tweet mal escrito de 140 caracteres.

1- Entre a Paula Simões, o 31 da Sarrafada e o Ricardo Martins, algures durante a manhã do dia 30, se alguém quiser tentar desenterrar a conversa.
2- YouTube, War Of The Worlds radio spoof by Orson Wells
3- Ricardo Martins, Faz hoje 72 anos que Orson Wells usou a rádio como nunca tinha sido usada antes.
4- 31 da Sarrafada, #Austeridade 448: Viaturas da Presidência do Conselho de Ministros
5- 31 da Sarrafada, Legenda Precisa-se! Os vencedores