O post de Domingo suscitou alguma discussão (1). Várias pessoas apontaram uma, ou ambas, de duas razões para condenar a NATO por causa do Afeganistão: que as intenções dos americanos não são louváveis e que não se deve interferir nos assuntos internos de outros países. São heurísticas úteis que, em muitos casos, conduzem à solução correcta mesmo sem se perceber os detalhes do problema. Muitas vezes é verdade que más intenções dão maus resultados, e muitas vezes é sensato não interferir nos outros países. Quando se tem sintomas de gripe, também é boa ideia comer uma sopa quente e ir cedo para a cama. Resulta quase sempre.
Mas há problemas que não se resolvem com sopinha. O Afeganistão, por exemplo. A heurística das intenções serve quando alguém nos oferece boleia ou nos quer vender um carro. Uma operação militar internacional envolve tanta gente que as intenções deste ou daquele deixam de ser um bom indicador, mesmo que as consigamos descortinar correctamente. O princípio da não-ingerência, e da soberania dos Estados, surgiu quando um Estado era o rei e os seus súbditos, e esse possessivo era muito mais literal do que agora julgamos aceitável. Hoje damos mais importância às pessoas do que às nacionalidades. Ou, pelo menos, devíamos dar.
A regra de preferir a paz em vez da guerra também não se aplica porque, excepto em detalhes técnicos irrelevantes, o Afeganistão estará em guerra com a NATO ou sem a NATO. O problema da guerra é o sofrimento, a violência, a morte e o desrespeito pelos direitos mais fundamentais. São tudo coisas que os Taliban fazem bem sozinhos.
Com o Afeganistão estas heurísticas não servem. E não faz sentido invocar como fundamento o princípio da não ingerência, a paz, a soberania desse (suposto) país e coisas afins porque nada disso é fundamental. Essas regras derivam de considerações mais fundamentais como, por exemplo, a liberdade de cada um ser feliz à sua maneira. São heurísticas úteis porque, muitas vezes, contribuem para esse fim. Mas são só os meios. Não são o fim.
O Afeganistão só se endireita, no mínimo, daqui a uma geração. É preciso que os miúdos de agora cresçam com uma noção de que têm direitos, de que não devem ser as metralhadoras a mandar, de que o governo só é legítimo se for eleito, de que há valor na educação, na igualdade e mais uma data de coisas que são óbvias para nós mas novidade naquele sítio dominado por costumes tribais e fundamentalismo religioso. Só quando essa geração crescer e substituir as de agora é que começará a fazer sentido a soberania, a auto-determinação e afins. Até lá é preciso visar o fundamental em vez das regras gerais que daí se derivam. Entretanto, a região vai ser controlada pela força das armas. Não há outra opção. A questão é apenas de quem as vai empunhar, se a NATO e a ONU durante uma década ou duas, ou se os Taliban durante o tempo que durarem, seguidos eventualmente de mais malucos da mesma estirpe.
Há muitos que, no descanso de quem está longe, dizem ser os soldados da NATO ainda piores que os Taliban. Bem, na verdade, não o dizem claramente, talvez com medo do ridículo. Mas chamam-lhes invasores, acusam o Ocidente de impor a democracia*, alegam que os soldados matam muita gente e deixam implícito que mais valia os Taliban. Discordo.
Os soldados da NATO cresceram onde se respeita os direitos das pessoas e onde, por isso, se vive bem melhor que no Afeganistão. Em situações de combate é fácil esquecer esses direitos mas, mesmo assim, estou confiante de que os soldados portugueses, por exemplo, têm muito mais respeito pelos direitos das pessoas do que têm os Taliban.
Além disso, as tropas da NATO têm a quem responder. As suas acções não são tão transparentes como deveriam ser, mas quem os comanda tem eleitores a quem prestar contas e os soldados e oficiais estão sujeitos a leis de conduta e a castigos se as violarem. Os Taliban fazem o que querem sem dar satisfações a ninguém.
Finalmente, as tropas da NATO querem estabilizar o país para sair de lá. Esses soldados não foram conquistar território. Não querem ficar lá a mandar em vilas e camponeses. Os Taliban, pelo contrário, querem-se instalar no poder pelo máximo de tempo que conseguirem.
A presença militar é apenas uma das condições necessárias para transformar o Afeganistão num país e dar ao seu povo um governo legítimo. Há muito mais a fazer, vai demorar muito tempo até haver resultados (2) e há sempre o perigo de que a oposição do eleitorado obrigue a deixar o trabalho a meio, perdendo-se qualquer proveito. Mas a escolha não é entre paz e guerra. É apenas se será a NATO contra os Taliban ou os Taliban contra pessoas desarmadas. E parece-me que só pode julgar que a segunda opção é a melhor quem pensar no problema de forma abstracta, guiando-se por essas heurísticas que generalizam ignorando os detalhes. Porque quem tiver em mente o que são os Taliban e se imaginar a criar filhos, filhas, netos e netas sob o seu poder tem certamente a opinião contrária.
* Não me perguntem o que é impor a democracia, que também não percebo. As pessoas têm o direito de eleger quem os governa, de se exprimir livremente, de se associar, de propor mudanças, pedir explicações aos governantes e assim por diante. E têm esses direitos seja qual for o regime. A democracia é apenas o único que não os viola. Não se impõe a democracia. O máximo que se pode fazer é impedir candidatos a ditador de violar estes direitos.
1- Aqui no blog, no FriendFeed e um pouco no FaceBook com o Miguel Caetano.
2- BBC, West cannot defeat al-Qaeda, says UK forces chief