sexta-feira, novembro 05, 2010

Uma questão ética.

O Miguel lamentou que a discussão sobre os direitos de autor se tenha tornado «uma questão ideológica», e alegou que o meu «objectivo é defender o modelo stallmaniano de "Propriedade (intelectual) é crime!", justificando a revogação dos artigos 23 e 27 (2) da Declaração Universal dos Direitos Humanos [DUDH], proibindo os autores de terem o direito de estipularem como devem ser utilizados os bens e serviços que prestam»(1). O problema aqui não é de ideologia, mas de preconceito. De engavetar o outro num ismo qualquer e ficar a bater na gaveta em vez de o ouvir.

Se a DUDH fosse apenas «Toda pessoa tem direito à protecção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor», eu rejeitava-a por ser tendenciosa e eticamente irrelevante. Eticamente, temos de considerar o conjunto dos direitos; considerar um direito isolado dos outros é aldrabice. No entanto, a DUDH como um todo é um bom ponto de referência, enumerando muitos direitos com os quais concordo. Por exemplo, que «Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.» É por ignorar os outros direitos que o Miguel diz defender «a liberdade do autor de licenciar o seu conteúdo como muito bem lhe apetecer», algo tão inaceitável que, estou convencido, nem o Miguel aceita.

Por exemplo, se eu publicar um livro e o quiser licenciar apenas a brancos, católicos ou mulheres, nem o Miguel nem a sociedade me reconhecem essa “liberdade”. Porque os outros têm o direito de não serem discriminados desta forma, um direito mais importante do que as minhas manias ou negócio. É um exemplo extremo, admito, mas estabelece claramente que não podemos assumir essa “liberdade” sem considerar os direitos dos outros, demonstrando que o problema não é só o direito do autor mas sim os direitos de todos.

Também é falsa a acusação, tortuosa, de que eu quero «[proibir] os autores de terem o direito de estipularem». Por mim, o autor pode estipular o que quiser. Eu tenho o direito, pela minha liberdade de expressão, de exigir de quem leia este post 50€ por cada vez que espirre. Não vejo justificação para me proibir de o exigir. No entanto, também defendo que nem a ASAE nem os tribunais percam tempo a fazer cumprir tais exigências, nem que alguém tenha a sua privacidade limitada só porque me deu para “licenciar” assim o meu conteúdo. E este é outro ponto importante: não se trata de proibir exigências ao autor mas de decidir que exigências a sociedade deve impor aos outros só porque o autor quer.

A questão ética, se não amputarmos dela todos os direitos menos um, é decidir em que casos a protecção dos direitos do autor justifica restringir os direitos dos outros. Há casos em que justifica. Para proteger a privacidade do autor, o direito de ser reconhecido como tal ou de não lhe imputarem algo que não criou ou que repudia. E, também, o direito de beneficiar da exploração comercial das sua obras. Por exemplo, o pintor receber uma fracção do preço de venda sempre que um dos quadros que pintou mudar de dono. Noutros casos não se justifica. Proibir a leitura de livros emprestados, o autor poder impedir que um livro que publicou esteja disponível em bibliotecas públicas, ou ser preciso pagar licença para cantar no duche. Mesmo que essas medidas aumentassem os lucros, o papel da lei é proteger os direitos de todos e não o negócio de alguns.

A minha proposta não é original. Segue a linha do que se tem feito desde o papel e instrumentos musicais até às cassetes e CD. Regular o comércio para que o autor beneficie da venda das suas obras, mas sem restringir direitos pessoais fora do âmbito comercial. Sem sacrificar direitos mais importantes, como o direito de acesso à cultura, a liberdade de expressão e comunicação ou a privacidade. Que é, em muitos casos, o que já se faz. Por exemplo, as discotecas pagam uma taxa pelo uso comercial da música. Nem é preciso autorização dos artistas, mas é preciso pagar para usar música nesse negócio. Em contraste, numa festa em casa nem taxa é preciso pagar, porque mesmo que muita gente oiça a música isso não é negócio.

Eu não quero proibir o DRM, nem obrigar a que todo o software seja de código aberto, nem forçar as editoras a dar livros ou discos de graça. Mas também não quero que proíbam todas as pessoas de desactivar o DRM, modificar o software que quiserem ou partilhar gratuitamente filmes, livros ou músicas. É plausível que a partilha gratuita reduza o preço de venda destas obras, ou que os autores tenham de cobrar pelo seu trabalho em vez de pelo acesso ao que criaram. Mas isso não é relevante, porque ter mais lucro ou este modelo de negócio não são direitos pelos quais valha a pena sacrificar o acesso à cultura, a liberdade de expressão e a privacidade.

Entre o lucro de uns e os direitos de todos, a escolha ética parece-me clara. E é irrelevante se isto me engaveta num ismo qualquer, se é ideológico ou “stallmaniano”. O que importa é que quem defende o contrário explique como a diferença no lucro de venda de algumas “obras artísticas” justifica restringir estes direitos a todos que não participem no comércio dessas obras. Se tentarem explicar isto, a conversa avança. Se continuarem a bater na gaveta é que não saímos do sítio.

1- Luís Miguel Sequeira, comentário em A perversidade é outra.

2 comentários:

  1. Entre o lucro de uns e os direitos de todos, a escolha ética parece-me clara.
    Pois acontece o mesmo com os bancos norte-americanos e a bancarrota dos bancos islandeses, irlandeses e outros que virão.
    A ética é irrelevante, a sustentação dos previlégios económicos, sociais, etc, das élites e dos estados industrializados sobrepõe-se a tudo.
    E é irrelevante se isto me engaveta num ismo qualquer
    infelizmente esse é um dos suportes de um sistema
    por em causa direitos fundamentados na lei
    é como atacar a classe que é guardiã dessa lei
    que depende da diversificação de causas e a defesa desses direitos

    gera judicialmente biliões

    e com isto tiro férias...

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  2. Acho que a única questão ética que se pode colocar é a de coisas como esta.

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