sexta-feira, abril 30, 2010

Cravo e ferradura.

Segundo o Público, citando o diário espanhol El País, o ministro Mariano Gago terá dito «que a indústria cultural não deve ver a pirataria como um inimigo, “visto que foi uma fonte de progresso e de globalização”»(1). Não tendo à sua disposição os recursos do Marco Santos do blog Bitaites (2) – como um PC ligado à 'net, por exemplo – os jornalistas do Público não puderam confirmar o que o ministro teria dito. Por isso, mais tarde, saiu outra notícia desmentindo a primeira (3). A Exame Informática, no entanto, com jornalistas de investigação ao nível dos melhores bloggers, corrigiu finalmente a correcção (4).

A afirmação de Mariano Gago foi um pouco mal interpretada. Ele começa por mencionar que há uma lei civil que deve governar estas coisas, pelo que não está propriamente a defender que cada um faça o que quer. Mas explica que o problema já existia no tempo das fotocópias e que apenas mudou a escala, mudança essa também um factor de inovação e globalização que dá mais valor ao criador. Quando um músico pode distribuir a custo zero a sua música por todo o mundo, diz o ministro, o seu trabalho de criador ganha valor e, por isso, o “copyright” (ele faz as aspas com os dedos) fica protegido pela própria pirataria.

Esta ideia é correcta. A violação dos monopólios sobre a propriedade intelectual foi um motor de inovação em muitas ocasiões. Os primeiros cineastas escolheram Hollywood em parte pelo clima mas em parte por ficar demasiado longe de Nova Iorque para que Edison se pudesse valer do seu monopólio sobre essa tecnologia. Esses piratas criaram uma indústria enorme, lucrativa, e de grande impacto cultural que não teria arrancado se tivessem de pagar o que Edison exigia.

Sem a pirataria na Internet não haveria leitores de MP3, os discos rígidos seria muito inferiores e muito mais caros, não teríamos ligações de banda larga nem lojas de músicas, filmes e livros electrónicos. Nem haveria YouTube, Facebook, blogs e tantas outras inovações que mudaram a economia e a sociedade e que seriam impossíveis se todos se agarrassem aos direitos exclusivos de copiar o que produzem. É estranho ver um ministro que percebe alguma coisa do que diz mas, neste caso, Mariano Gago parece ter sido culpado desse (raro) pecado político.

Pecado que a ACAPOR prontamente denunciou, prometendo até processar o Estado «pela sua inacção e complacência perante a pirataria na Internet»(5). A associação dos alugadores de DVDs julga ser por causa da pirataria que pessoas com 100 canais de TV e video on demand já não saem à chuva para alugar filmes velhos. Recorre assim ao novo sistema de processar tudo e todos a ver se ganha clientes.

Corrigindo o erro do ministro, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior enviou para os jornais uma anedota a que chamaram comunicado. «O MCTES condena naturalmente toda a pirataria que retira aos produtores e autores a capacidade de prosseguirem a sua capacidade de criação.»

Pausa para efeito dramático...

«A pirataria transfere ilegitimamente para empresas distribuidoras o valor devido aos produtores e aos autores.»

Badom, bum! Gargalhadas e aplauso.

A solução, parece-me, é não comprar CDs nem DVDs. Como pago sempre o mesmo à Netcabo, se não uso a largura de banda que me vendem eles têm menos despesa e mais lucro. Por isso, para não lhes transferir ilegitimamente a riqueza alheia, tenho é de sacar, sacar, sacar. E nunca mais comprar nada porque a editora fica com a maior parte do dinheiro e não dá quase nada ao autor. Isso sim é pirataria.

Eu também sou contra a «pirataria que retira aos produtores e autores a capacidade de prosseguirem a sua capacidade de criação». Por mim acabava já com os monopólios que tiram aos autores direitos sobre as suas próprias obras. Mas, pelo mesmo raciocínio, tenho de ser a favor da pirataria que dá aos novos autores os meios e o material para começarem a sua actividade de criação. E como a inovação, por definição, está no futuro e não no passado, é a esses que tenho de dar prioridade. Se o preço de haver mais artistas, melhores artistas e mais arte é haver menos gente a encher os bolsos à custa deles, paciência. É um preço que estou disposto a pagar, por muito que me irrite os choradinhos da ACAPOR.

1- Público, Mariano Gago diz que pirataria é "fonte de progresso"
2- Bitaites, O que Mariano Gago realmente disse
3- Público, Mariano Gago desmente que tenha dito que pirataria é “fonte de progresso”.
4- Exame Informática, Mariano Gago disse mesmo que "pirataria é fonte de progresso" (vídeo)
5- Público, Clubes de vídeo vão processar o Estado por “inacção” contra a pirataria

Pope song.

Julgo que muitos católicos vão achar ofensiva esta canção do Tim Minchin. Mas a ofensa não é gratuita. O Tim Minchin tem o condão de ofender de forma pedagógica, por isso convido-os a suspender a indignação por dois minutos para ouvirem a mensagem.

Se vos indigna que se diga isto de alguém, não devia indignar-vos ainda mais que se encubra a violação de crianças?



Via Pharyngula.

Adenda: para quem quiser ajuda com a letra, estão algumas transcrições aqui no fórum do Angry(feet).

Segunda adenda: acrescento este vídeo, mais sério mas que também vale a pena ver. Obrigado à Rosário Andrade pelo link.

quinta-feira, abril 29, 2010

Treta da semana: &#$%! de tolerância.

Generoso com o que não é seu, o nosso amado governo cedeu aos pedidos da Igreja Católica e deu tolerância de ponto para o dia 13 e tarde do dia 11 aqui em Lisboa. Uns dizem que está bem porque o governo é o patrão dos funcionários públicos, pode dar-lhes folga quando quiser. Mas não é verdade. O patrão dos funcionários públicos são os restantes cidadãos. O meu compromisso profissional, em última análise, é para com os alunos, os funcionários da faculdade, os familiares dos alunos e até a sociedade como um todo, mais do que para com qualquer político que calhe estar no poleiro. E certamente mais do que para com a Igreja Católica ou o Papa.

Outros dizem que está bem porque só falta quem quer. Bela treta. Uma faculdade precisa de muita gente para funcionar e, não sendo possível garantir os serviços essenciais, a FCT terá de encerrar na tarde de dia 11 e todo o dia 13. Podemos compensar estas aulas nos dias 7 e 8 de Junho, fora do período previsto para as aulas. Aos dois ou três alunos que aparecerem nessa altura. Mas entretanto tenho uma turma de 200 alunos dos quais 60 ficam com uma aula prática a menos e os oito dias que tinha para dar um bloco de bioinformática ficam reduzidos a seis e meio. Os feriados já são uma chatice, mas esses sabemos quando calham e dá para planear tudo com antecedência. Surpresas destas obrigam a uma ginástica danada com prazos de entrega de fichas e trabalhos, planeamento das aulas e da matéria e, por muitas voltas que se dê, acabam sempre por prejudicar os alunos.

Nem percebo para quem é esta tolerância de ponto, anunciada em cima do acontecimento. Os fieis mais devotos com certeza já marcaram um ou dois dias de férias, ou combinaram trocas com colegas, logo que souberam da visita. Quem quisesse mesmo ver o Papa não ia desistir por não ter tolerância de ponto. Por isso, ou isto é um bónus injustificável para quem vai só por curiosidade, se não lhe custar um dia de férias ou, pior ainda, é um truque para a Igreja Católica empolar o número de adeptos juntando os curiosos à estatística. Como a formiga que, a meio da corrida com o elefante, olhou para trás e exclamou “olha a poeirada que estamos a fazer!”

Mas desta vez o desabafo não é contra os católicos. Nem sequer contra os bispos que pressionaram o governo. São homens como quaisquer outros e não se ficam pelo dedo se podem ter o braço. O que me chateia é a falta de espinha deste governo, supostamente laico. Porque não tenho nada contra quem quer ver o Papa. Não tenho nada contra, nem a favor, nem nada que ver com isso. E esse é o ponto fundamental. Não é coisa que me diga respeito. Se alguém quer ver um alemão vir do Vaticano fingir que transubstancia hóstias por mim está à vontade. Peça um dia de férias, saia mais cedo, chegue mais tarde, faça como quiser. Mas não me meta ao barulho. A tolerância religiosa devia incluir a tolerância por quem não quer largar tudo para ir à missa.

quarta-feira, abril 28, 2010

Milagre?

O Marcos Sabino conta no seu blog a história de Tracey Hermanstorfer, uma mulher de 37 anos que sofreu uma paragem cardíaca durante o parto. Tanto ela como o recém-nascido foram dados como mortos mas pouco depois estavam vivos. E isto no dia 24 de Dezembro, o tal dia arbitrariamente escolhido para cristianizar a celebração pagã do solstício de inverno. Milagre, segundo o feliz casal. Escreve então o Marcos: «Mas eu apostava que os ateus que frequentam este blogue não partilham da mesma opinião. Aliás, tenho para mim que eles TÊM A CERTEZA que isto não foi um milagre. Como é que eles sabem isso? Ora, porque ELES SABEM que milagres não acontecem.»(1)

Não é assim tão simples.

A alegada paragem cardíaca desta mulher de 37 anos e do seu recém nascido são difíceis de explicar, bem como a subsequente recuperação a que chamaram milagrosa. Pode ter sido erro médico, uma ocorrência natural rara ou o mero empolar de um acontecimento mundano. Em 1506, no Mosteiro de São Domingos em Lisboa, durante uma missa os fieis viram um milagre. O rosto de Cristo estava iluminado. Um cristão-novo, judeu convertido, apontou que era apenas o reflexo do sol e foi espancado até à morte pela multidão. Que não se ficou por ali (2). Aqui e hoje os religiosos são mais comedidos mas, ainda assim, o episódio ilustra bem a pressão emocional para ver o mundano como milagroso.

E nem sei bem o que é um milagre. Em 2004, Miklos Feher morreu de ataque cardíaco durante um jogo de futebol. Apesar da dificuldade em explicar como um jovem desportista pode ter uma carreira assim sem ninguém notar um problema tão grave, não vejo chamarem a isto um milagre. Dizem que é azar e que nenhum deus tem culpa do ataque cardíaco nem de se esquecer de reanimar o rapaz. E nem é que os milagres sejam só coisas boas. O clérigo iraniano Hojatoleslam Kazem Sedighi ganhou fama ao diagnosticar a causa dos terremotos como sendo a roupa provocante das mulheres. Ao contrário do criacionismo, esta é uma teoria que não me importava que tivessem ensinado nas escolas por onde andei, desde que devidamente ilustrada com exemplos. Mas, para este clérigo, um milagre é o deus dele abanar a Terra furioso com os decotes das moças. É difícil de perceber quer pelo que destoa dos milagres do Marcos quer pela perspectiva privilegiada que, das Alturas, se tem sobre estes, digamos, assuntos. Talvez não o motive a fúria mas a vontade de abanar.

A experiência proposta pela Jen McCreigh não foi um milagre mas é o tipo de coisa que pode dar um resultado digno de admiração. A Jen propôs que as mulheres combinassem os efeitos dos seus decotes e vestidos mais ousados para criar um boobquake. Um mamamoto, em português (3).

Voltando ao assunto inicial, a minha resposta ao Marcos depende do que ele quer dizer com “milagre”. Se um milagre é algo que nos causa espanto e assombro então existem de certeza. Outro dia ia telefonar à minha mulher, escolhi o número dela no telemóvel e, quando estava a carregar no botão, o aparelho começou a tocar. Sem tempo de parar o dedo, em vez de ligar atendi. Era ela. Foi espantoso. Mas, ditam as probabilidades, em cada milhão de coisas que nos acontece há, em média, uma daquelas que só acontece uma vez num milhão.

Mas discordo da conclusão que a recuperação da Tracey Hermanstorfer, a morte do Miklos Feher ou os terremotos são causados pelo filho do carpinteiro. Para estabelecer uma relação causal é preciso mais que aquele “sei lá” em que qualquer milagre assenta. Apesar da diversidade da categoria, um requisito comum para qualquer milagre parece ser a ignorância acerca da causa. E se ignoramos a causa não podemos dizer que sabemos ser por causa deste ou daquele deus. Se não sabemos, não sabemos.

E, acima de tudo, rejeito a atitude. Quando não compreendo algo deixo em aberto a possibilidade de, pelo menos, tentar compreender. Mas classificar algo de milagre é declarar-se derrotado logo à partida. É dizer não só “não sei” mas também “nunca poderei saber”. E isso não adianta de nada. O queixo caído e o olhar de espanto são um bom ponto de partida para descobertas e inovação. Mas só se arregaçarmos as mangas e deitarmos mãos ao trabalho, não se ficarmos de joelhos a louvar amigos imaginários.

1- Marcos Sabino, Mae e filho mortos regressam à vida.
2- Wikipedia, Massacre de Lisboa de 1506
3- Blag Hag, In the name of science, I offer my boobs. E ver aqui o resultado da experiência.

segunda-feira, abril 26, 2010

Probabilidades.

Um saco tem 100 berlindes, 20 dos quais azuis. Dizemos que há 20% de probabilidade de retirar um berlinde azul do saco por duas razões. Primeiro, assumimos que o berlinde é retirado ao acaso, num processo que se fosse repetido podia dar um resultado diferente. Ou seja, a cor do berlinde que sai é uma variável aleatória. E 20% pela frequência dos berlindes azuis na população. É isso que queremos dizer com probabilidade neste caso: a frequência na população de um valor que uma variável aleatória pode tomar.

A população pode não ser o conjunto dos berlindes. Se retirarmos um berlinde ao acaso, anotarmos a cor e o repusermos no saco, a população que estamos a considerar é o conjunto infinito de vezes que podemos tirar e repor berlindes no saco, e a probabilidade de 20% quer dizer que conforme nos aproximarmos de infinitas amostragens mais próximo de 20% será a fracção de vezes que saiu um berlinde azul. Em dez vezes pode sair um, nenhum ou cinco, mas em dez milhões de vezes a proporção vai andar muito perto dos 20%. Em infinitas é 20% certos.

E se tirarmos cada berlinde sem o repor no saco a probabilidade de sair azul vai depender das cores que saíram antes. Se o primeiro era azul a frequência de azuis no saco diminui e é menos provável sair outro azul a seguir. Eventualmente, se saem todos os azuis deixa de ser possível que saia azul novamente. Sair azul deixa de ser uma variável aleatória.

Imaginemos agora que nos dão um saco com um berlinde e nos perguntam qual a probabilidade de, retirando esse berlinde ao acaso, sair um berlinde azul. Se a pergunta fosse a probabilidade de sobrar um berlinde azul depois de retirar 99 dos 100 berlindes era fácil. Se vinte são azuis a probabilidade do último ser azul é 20%. Porque se enchermos o saco, retirarmos 99 ao acaso, anotarmos a cor do último e repetirmos isto infinitas vezes, veremos que em 20% dos casos o último berlinde é azul. Neste caso a cor do último é uma variável aleatória e as probabilidades são dadas pela fracção de vezes em que calha cada cor na população de infinitas repetições desta experiência.

Mas se a experiência que nos propõem começa logo com um berlinde no saco, aquele berlinde em particular, por muitas vezes que se repita o resultado será sempre o mesmo. Se esse berlinde for azul sai sempre azul. E se não for azul nunca vai sair azul. A cor desse berlinde não é uma variável aleatória e não faz sentido atribuir-lhe uma probabilidade neste caso em que é sempre o mesmo berlinde em todas as repetições da experiência.

Esta seca de post vem a propósito da contestação do João e do João Vasco à minha tese que não se pode falar da probabilidade de uma moeda ser equilibrada quando testamos essa moeda em particular (1). A hipótese da moeda ser equilibrada permite calcular a probabilidade de obter certos resultados. Por exemplo, 0.1% de probabilidade de sair dez caras em dez lançamentos. O que quer dizer que se repetirmos infinitas vezes a experiência de lançar dez vezes a moeda esperamos que só em 0.1% das vezes saiam dez caras.

Mas a moeda ser ou não equilibrada é como o saco com um berlinde. Ou é, e será em todas as repetições da experiência, ou não é e não será em nenhuma. Neste sentido de probabilidade só se pode calcular a probabilidade dos resultados assumindo a hipótese, não a probabilidade da hipótese. A hipótese não é uma variável aleatória; é sempre a mesma. Assim, para testar uma hipótese escolhe-se um limite (a confiança) para a probabilidade dos resultados abaixo do qual rejeitamos a hipótese. Mais correctamente, rejeitamos todas as hipóteses que atribuam aos resultados uma probabilidade inferior à confiança e aceitamos todas as outras. É daqui que vem a margem de erro. No entanto, esse nível de confiança é subjectivo e arbitrário. Se é 5%, 1% ou 10% temos de ser nós a escolher.

Uma alternativa é a probabilidade no sentido bayesiano. Numa análise bayesiana começa-se por atribuir uma probabilidade inicial à hipótese e depois calcular a probabilidade posterior dessa hipótese considerando os dados*. Mas o sentido de “probabilidade” aqui é diferente. A probabilidade de sair um berlinde azul ou da moeda calhar coroa é a frequência com que a variável aleatória toma esses valores na população. Em contraste, a probabilidade bayesiana é uma medida da confiança subjectiva** que, à partida, depositamos numa hipótese. A parte objectiva da análise bayesiana vem depois, na forma como alteramos essa estimativa à luz dos dados.

Ao João e ao João Vasco, possivelmente os únicos a chegar a este parágrafo, reitero que não podem dizer que a probabilidade de ser equilibrada a moeda que calhou dez vezes cara é a probabilidade de sair dez vezes cara se a moeda for equilibrada. O sentido frequentista da probabilidade dos lançamentos não se aplica à hipótese da moeda ser equilibrada. E a probabilidade “da hipótese”, no sentido bayesiano, não é da hipótese em si mas da confiança que inicialmente depositamos nela, e essa pode ser qualquer coisa***.

*Podem ver como na wikipedia, senão isto fica um testamento em vez de um post.
**Há muita gente a tentar encontrar uma forma objectiva de calcular as probabilidades iniciais. Se um dia conseguirem e se eu perceber como o fizeram, prometo que escrevo um post a corrigir isto.
***Excepto 0 e 1, senão fica tudo engatado e não há Bayes que nos valha. É o tal problema das certezas absolutas...

1- Comentários em A hipótese nula.

sábado, abril 24, 2010

Os católicos mais terríveis.

Há uns tempos li um post do Bernardo Motta sobre «O impagável movimento "Nós Somos Igreja"», que publicara «um comunicado vampiresco, que se aproveita das vítimas de abusos sexuais dentro da Igreja para promover, mais uma vez, a sua "agenda" anticatólica […] Quem são estes tipos? Quem é esta gente? E quem acreditará nestes mentirosos?»(1) Realmente, fiquei curioso para saber que grupo tão terrível seria este e que coisas hediondas faria. Talvez se dedicassem a encobrir pedófilos ou fossem amigos do bispo de Tenerife, segundo o qual há crianças de 13 anos que querem ser abusadas e que nos provocam se não tivermos cuidado, os malandros (2).

Afinal não era bem isso. O que este grupo pede é:

«Uma Igreja de irmãos e irmãs que reconheça a igualdade de todos os baptizados, incluindo a inclusão do Povo de Deus na eleição dos bispos nas suas igrejas locais.
Direitos iguais para homens e mulheres, incluindo a admissão de mulheres em todos os ministérios da Igreja.
Liberdade de escolha por uma vida de celibato ou de matrimónio para todos os que se dediquem ao serviço da igreja.
Uma atitude positiva acerca da sexualidade e o reconhecimento da consciência pessoal nas decisões.
Uma mensagem de alegria e não de condenação, incluindo diálogo, liberdade de pensamento e de expressão. Sem anátemas nem exclusões como meios de resolver problemas, especialmente quando aplicados a teólogos.»
(3)

E gostei da pérola de raciocínio com que o Bernardo desmontou o argumento destes “manhosos”. Este movimento propõe a revogação do celibato obrigatório porque «Mesmo que não haja uma relação causal simples entre o celibato obrigatório e a violência sexual, a lei do celibato obrigatório é uma expressão visível da hostilidade de uma igreja masculina contra a sexualidade e as mulheres.»(4) Segundo o Bernardo, isto «Ofende a razão: [...] se um celibatário é, por definição, quem se abstém de sexo, como seria o celibato sacerdotal culpado pelos abusos sexuais?»

Fabuloso. Reprimir a sexualidade dos jovens no seminário, encher-lhes a cabeça com a ideia de que tudo o que é sexual é pecado enquanto atingem a maturidade e depois proibir-lhes qualquer relação sexual para o resto da vida não pode trazer problemas porque o dicionário diz que um celibatário não viola crianças. Está definido, está resolvido. Quem não percebe isto também não deve compreender como o Deus que é um é três ao mesmo tempo. É a Lógica elementar da Verdade Revelada.

Perante estes que se dizem católicos mas que se atrevem a usar os dois dedos de testa que o seu deus lhes terá dado, remata assim o Bernardo:

«Viva o Papa!
Abaixo estes miseráveis auto-proclamados católicos!»


Confesso que isto me preocupa.

1- Espectadores, Nós somos (outra) Igreja.
2- Tipically Spanish, Bishop of Tenerife blames child abuse on the children
3- International Movement We Are Church, Manifesto
4- IMWAC, Press release, March 2010 (pdf)

sexta-feira, abril 23, 2010

Os direitos do autor.

Desde 1923 que os livreiros em Espanha celebram o dia do livro a 23 de Abril, o dia da morte de Cervantes. Por coincidência, é também a 23 de Abril que se celebra o nascimento e morte de Shakespeare e vários outros autores. Por isso em 1995 a UNESCO declarou este dia o dia mundial do livro e do copyright(1). O que é infeliz porque o direito de cópia não tem muito a ver com o livro; o que devia contar era a autoria e não a reprodução.

Mas vou aproveitar que em português este dia se chama o Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor (2), fingir que por direitos do autor se referem aos direitos do autor e não aos monopólios legais sobre a reprodução e distribuição de maços de papel e rodelas de plástico, e apresentar a minha modesta proposta para estes direitos.

O autor tem o direito inalienável de ser reconhecido como o criador da sua obra, de a manter privada até que deseje divulgá-la publicamente e de a distribuir sempre que quiser e como quiser. Ninguém lhe poderá tirar o direito de distribuir e divulgar as suas obras.

O autor tem o direito de acesso a toda a cultura e a todas as obras que outros autores tenham tornado públicas. Ninguém lhe poderá privar desse direito, tirando-lhe o que precisa para criar, nem com a desculpa que cobrar pelo acesso dá para ganhar mais uns trocos.

O autor tem o direito de só trabalhar se lhe apetecer ou se alguém se comprometer a pagar-lhe pelo seu trabalho. Há que combater os monopólios comerciais que, pelo controlo dos meios de distribuição, possam obrigar o autor a trabalhar em troca da promessa vaga de uma parte de eventuais vendas menos despesas. Como qualquer pessoa que trabalha, o autor tem o direito de saber quanto vai ganhar pelo seu trabalho e de decidir se aceita a oferta ou não.

E, por último, qualquer pessoa tem o direito de ser autor, de contribuir com as suas ideias para as ideias dos outros e de incentivar a criatividade de todos partilhando livremente todas as obras cujos autores decidiram tornar públicas.

1- Wikipedia, World Book and Copyright Day.
2- Sixhat Pirate Parts, Dia mundial do livro (electrónico?) Via Paula Simões

Treta da semana: o teste.

Um teste do professor Paulo Otero, da Faculdade de Direito de Lisboa, tem sido muito criticado desde que uma aluna, a Raquel Rodrigues, denunciou e divulgou o enunciado. Também me parece estranho dar doze valores a uma pergunta sobre casamento com outras espécies de vertebrados quando a nossa constituição só fala sobre direitos dos animais da nossa espécie. Não sendo evidente como isto possa testar conhecimentos de direito constitucional, fica a suspeita que a avaliação vá depender de quão bem cada aluno engraxe os preconceitos do professor. Por isso concordo com essa crítica. Parece um mau teste e é bom que o Conselho Pedagógico daquela faculdade se pronuncie sobre esta avaliação.

E aproveito para louvar o que a Raquel Rodrigues fez. Não digo isto só por o pai dela ser maior que eu; é muito mais cómodo e seguro para um aluno ficar calado nestas situações, mas ela teve a coragem apontar o problema. E o problema da falta de abertura nas universidades públicas. Os portugueses pagam a funcionários como eu e o Paulo Otero para prepararmos aulas, exercícios, material de estudo e explicar a matéria. O produto desse trabalho tem valor para qualquer pessoa que queira aprender, mesmo que não seja estudante universitário. E devia estar acessível a todos porque são todos a pagá-lo. Além disso, essa abertura contribuiria também para a confiança pública nas nossas instituições de ensino, para informar os jovens que querem ingressar no ensino superior e, quem sabe, até reduzir a frequência de argoladas como esta. Com a tecnologia que temos é triste que a única informação acerca de uma disciplina seja, muitas vezes, uma folha digitalizada com o resumo do programa.

Mas a treta que me preocupa mais é a confusão entre, por um lado, o mau gosto do professor e a má qualidade do teste e, por outro, a discriminação dos homossexuais e a violação dos seus direitos fundamentais. Escreveu a Raquel que «O que acontece é que o Sr. Professor parece ter-se esquecido do art. 13º e do princípio da igualdade; e com certeza que não pensou no que sentiria um gay ou uma lésbica que se visse confrontado com a obrigatoriedade de fazer este teste. […] Esta atitude repulsiva não só é discriminatória em relação a todas as pessoas LGBT como obriga os alunos a tomarem uma posição em relação ao tema que irá influenciar a sua nota.»(1)

Se os alunos forem avaliados em função da sua sexualidade então há discriminação, mas penso não haver dados que confirmem ser esse o caso. E as duas alíneas da pergunta pediam para argumentar a favor e contra a constitucionalidade da poligamia e do casamento com animais de outras espécies. Não exigiam manifestar qualquer posição acerca do casamento homossexual. Por isso, se bem que concorde com a Raquel que o enunciado é de mau gosto, devo apontar que não indica por si qualquer discriminação ou violação de direitos que não o direito do aluno a ter testes que façam sentido.

O que me preocupa aqui é que, nas palavras da própria Raquel e na opinião ecoada em muitos outros sítios, o que se aponta como mais grave é a ofensa e não a qualidade pedagógica do teste. «Até podia ter apresentado o mesmo caso prático sem, no entanto, referir que o diploma era “em complemento à lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo”, mas a comparação foi obviamente propositada e consciente.»(1) Certamente que foi. Mas não será esse também um direito?

Admito que se ao Paulo Otero repugna o casamento entre homossexuais e tem vontade de o denegrir não é apropriado que o faça num teste de forma tão forçada. Mas se o fizer em detrimento do seu desempenho enquanto professor a única coisa que viola é o seu compromisso profissional. Deu mal a matéria que podia ter dado bem. Não viola direitos fundamentais de ninguém. A menos que se defenda um direito fundamental de nunca sermos expostos a nada que nos ofenda. E isso é que me preocupa.

Se vão repreender um professor, um jornalista, um blogger ou qualquer pessoa só porque alguém se diz ofendido lembrem-se que tudo pode ofender. Há quem se ofenda com a oposição ao casamento homossexual e há quem se ofenda com a lei que o permite. Há quem se ofenda quando dois homens se beijam e quem se ofenda quando um homem beija uma mulher. Há quem se ofenda com preservativos, imagens de Maomé ou até mini-saias – e se há coisa menos ofensiva que uma mini-saia não sei o que possa ser.

Por isso critiquem o professor pela má pergunta no teste. Critiquem todos os professores. Muitos avisos nas páginas das minhas disciplinas sou eu a agradecer a alunos que apontaram erros nas páginas, no processamento dos trabalhos ou nos enunciados. E exijam um ensino público mais aberto e transparente, pois são vocês que o pagam e têm o direito de ver o que se passa lá dentro. A crítica franca e o acesso à informação são fundamentais para a qualidade do ensino e para a qualidade da sociedade em geral.

Mas isto só é possível se prescindirmos todos de exigir satisfações sempre que ficamos melindrados ou ofendidos. Tramar o homem só porque alguém se ofendeu é treta.

(1)- Random Precision, Um teste (in)constitucional.

quinta-feira, abril 22, 2010

A hipótese nula.

Se em dez lançamentos uma moeda calha sempre cara alguns farão as contas por alto e dirão que a probabilidade de ser equilibrada é apenas de um em mil. As contas estão bem. Cada lançamento de uma moeda equilibrada tem uma chance em duas de calhar cara e dois elevado a dez dá aproximadamente mil. Mas a conclusão está errada porque a hipótese da moeda ser equilibrada não é uma variável aleatória. Não estamos a adivinhar ao acaso tentando acertar à sorte mas sim a procurar uma descrição correcta da moeda testando, moldando e rejeitando hipóteses para ficar com as mais adequadas aos dados de que dispomos. Por isso o correcto é dizer que este resultado é improvável se a hipótese for verdadeira e concluir daí que a hipótese não é plausível. Mas não faz sentido atribuir uma probabilidade à verdade da hipótese.

E esta distinção não é mero pedantismo académico porque confundir a verdade da hipótese com uma variável aleatória induz erros mais sérios. Por exemplo, muita gente justifica hipóteses infundadas com “até pode ser” ou, na versão mais comum, “ninguém prova o contrário”. Isto equivale a ver o esforço para compreender a realidade como uma lotaria onde só a sorte distingue certo e errado. Cada hipótese é uma cautela que se guarda, a ver se sai. A par deste erro está também o relativismo na ideia de que uma hipótese pode ser verdade para uns e falsa para outros.

Com isto defende-se que há vida depois da morte porque não se prova o contrário, que a reencarnação é verdade para budistas e a ressurreição é verdade para cristãos e que andam por aí extraterrestres a mutilar vacas porque, sei lá, até pode ser verdade. Como acertar é questão de sorte, até estar tudo provado em definitivo todas as hipóteses são equivalentes. E como nunca se prova nada sem restar possibilidade de dúvidas sobra sempre muito espaço onde enfiar disparates.

Isto é um erro grave porque as hipóteses não são todas equivalentes. Logo à partida, é mais simples – e preferível – assumir que a moeda é equilibrada, que não existem deuses, que não há vida depois da morte e que a posição de Júpiter não influencia a vida sexual. Há quem contraponha que é tão simples assumir a existência de um deus como assumir que não há deus nenhum porque o deus é algo fundamental e simples. Ou que assumir que há vida depois da morte é o mesmo que assumir que não há porque são ambas hipóteses acerca da vida depois da morte. É o erro de confundir a hipótese com a coisa que a hipótese descreve. Confundir hipóteses com moedas.

Uma moeda perfeitamente equilibrada não é coisa simples. Diria mesmo que é praticamente impossível criar uma moeda sem qualquer defeito e que tenha exactamente a mesma probabilidade de calhar cara ou coroa em todos os lançamentos. Mas a hipótese da moeda ser perfeitamente equilibrada é a hipótese mais simples porque não tem parâmetros adicionais por determinar. Se assumirmos que a moeda é perfeitamente equilibrada podemos calcular a probabilidade de qualquer resultado. Sabemos o que esperar da moeda. Mas se assumirmos que a moeda é torta ou desequilibrada ficamos com um parâmetro livre e sem ideia do que possa acontecer. É muito desequilibrada? Pouco? Mais caras? Mais coroas?

Partir da hipótese nula é sempre preferível porque, se descreve adequadamente os dados, descreve-os sem postular parâmetros desnecessários acerca dos quais nada sabemos. E se não descrever adequadamente os dados é mais fácil descobrir o erro com esta hipótese do que com qualquer outra. Se temos uma moeda torta eventualmente descobriremos que não se comporta como esperamos de uma moeda equilibrada. Mas se temos uma moeda equilibrada e partimos da hipótese que está torta podemos sempre ajustar o parâmetro extra de acordo com os dados que tivermos e nunca descobrir que partimos da hipótese errada.

Isto acontece com a astrologia, as medicinas alternativas, a vida depois da morte, a virgindade de Maria e toda a treta em geral. São hipóteses que acrescentam incógnitas para descrever algo que é perfeitamente compatível com a hipótese nula, que descarta esses parâmetros desnecessários. Se a nossa mente depende do corpo sabemos exactamente o que acontece quando morremos. Desaparece tudo; personalidade, memória, desejos, pensamento, cognição. Assumir que algo sobrevive é postular um parâmetro desnecessário e indeterminado, visto que os dados nada dizem acerca de que partes da mente podem sobreviver à morte do corpo nem sequer sugerem que algo sobreviva. Por isso não é racional optar por essa hipótese. E o mesmo acontece para as hipóteses de existirem deuses, efeitos astrológicos, milagres e assim por diante. Todas estas multiplicam desnecessariamente as incógnitas e geram descrições vagas e impossíveis de testar.

Descrever a realidade não é um jogo de sorte. É como montar um puzzle. Não podemos escolher peças ao acaso mas sim dar preferência àquelas que, em cada momento, encaixam melhor no resto. E a menos que algo indique o contrário a hipótese nula é sempre a que está mais bem definida e que encaixa melhor.

quarta-feira, abril 21, 2010

Para os fumadores. E não só.



Obrigado ao Jairo Entrecosto pelo link para um vídeo do John Cleese que me levou a este. Já agora, recomendo também os anúncios da Compaq. Como estes:





terça-feira, abril 20, 2010

Há 19% de pais incestuosos.

Noticia assim o DN: «A percentagem de pais biológicos incestuosos é de 19%, segundo uma amostra de 131 casos analisados na Escola da Polícia Judiciária (PJ), em Loures»(1). A “notícia” não faz sentido nenhum, dá umas voltas incoerentes e nem sequer menciona que casos são aqueles. São “131 casos” e pronto. Mas o mais fabuloso é o raciocínio do jornalista, que da análise de 131 casos de polícia concluiu que um em cada cinco pais abusa sexualmente dos filhos.

E mais ninguém no jornal leu esta treta ou, pior ainda, ninguém percebeu a asneira.

1- DN, Há 19% de pais incestuosos, via Facebook e este do Vasco Barreto.

segunda-feira, abril 19, 2010

Equívocos, parte 6.

Continuando a sua série de equívocos acerca do ateísmo, o Alfredo Dinis foca a oposição do ateísmo à religião. «Os ateus nada têm a opor a que cada um acredite subjectivamente em deus e pratique em privado a sua religião. Opõem-se, porém, a todas as manifestações públicas da religião e à sua interferência na vida social, económica e política.»(1) O Alfredo diz que isto é um equívoco porque «se baseia numa ideia equivocada de ser humano que concebe como indivíduo fechado em si mesmo [...] Uma tal concepção de ser humano é bem triste, e conduz ao anonimato e à tristeza sobretudo nas cidades.» Pois, como nos outros equívocos até agora, é precisamente o contrário.

«Se partirmos do pressuposto de que o ser humano é estruturalmente aberto à relação», como escreve o Alfredo, percebemos que o diálogo, a crítica livre e a troca franca de ideias fazem parte do que é ser humano. Ser humano inclui participar activamente na comunidade. Não basta ficar-se por acreditar, aceitar ou, como gostam de dizer, “respeitar” as ideias dos outros. Essa participação passiva fica muito aquém daquilo que um humano consegue. Precisa também defender as suas ideias, aprender com as dos outros, ponderar opiniões, apontar erros e criticar aquilo do qual discorda. E é isto que caracteriza o tal “neo-ateísmo” cujo ateísmo é tão velho como a religião mas que, novidade, não fica escondido e calado, participando activamente na comunidade. O que há de novo no ateísmo é defender as suas ideias e exigir uma relação de diálogo racional em que cada posição deve ser justificada e não apenas aceite por “respeito” ou por obra e graça de um espírito supostamente santo.

O Alfredo sugere que os ateus são contra a manifestação pública da religião e que aceitam apenas a prática religiosa privada. Mas eu não defendo que os religiosos tenham de o ser às escondidas nem me oponho a que exprimam as suas crenças ou pratiquem a sua religião em público. O que se passa é um pouco mais complicado.

Eu acho que Zeus não existe e que é completamente inútil rezar a Zeus, independentemente de quantas pessoas o façam, e seja em público ou em privado. Mas se alguém me confessa a sua crença em Zeus numa conversa privada eu não a vou tornar pública só para criticar. Não é que adorar Zeus em privado seja menos disparatado. É apenas que se tiver algo a dizer acerca de uma conversa privada digo-o em privado também.

Em contraste, se houver uma procissão a Zeus pelas ruas de Lisboa e gastarem duzentos mil euros num altar para fazer missas, pedir favores e louvar esse deus então já é legítimo criticar isto publicamente. Mais que um direito, tenho até o dever moral de dizer a quem me quiser ouvir que isto é asneira. Esta crítica é legítima não só por o acto ser público mas precisamente porque não sou um “indivíduo fechado em mim mesmo”. Tal como o Alfredo Dinis, também me preocupo com os outros. E preocupa-me que as pessoas percam tempo e dinheiro a adorar deuses falsos.

Mas isto ainda não é oposição. Discordo que se gaste dinheiro com Zeus, ou em astrólogos, videntes e homeopatas. E critico quem se diga perito nestas coisas como se fossem mais que mera fantasia. Mas não me sinto no direito de me opor no sentido de colocar obstáculos ou criar impedimentos. Se alguém quer gastar dinheiro em disparates posso tentar explicar porque são disparates mas, desde que não seja o meu dinheiro, critico e argumento apenas na esperança de esclarecer e não tento impedir ninguém.

Um caso diferente é governantes do meu país decidirem pagar um altar a Zeus usando o dinheiro que é de todos e sem sequer prestar contas de quanto estão a gastar nisso. Ou o governo obrigar os empregadores a pagar um dia de trabalho a quem faltar ao emprego para ver o Alto Sacerdote de Zeus em visita a Portugal. A isso já me oponho. Admito que a minha oposição é fraca, pois há pouco que possa fazer dentro do que é aceitável na nossa sociedade. Mas posso dizer que me oponho e que votaria contra isto se quisessem saber da minha opinião. Por mim, que pagassem medicamentos a quem precisa em vez de escaparates para deuses.

É claro que o Alfredo dirá que o seu deus é totalmente diferente de Zeus ou de qualquer outro deus. Todos os crentes dizem isso. Até os muitos que acreditaram em Zeus, se ainda cá estivessem. Foi um deus muito popular no seu tempo, e fartaram-se de gastar dinheiro com ele também. Mas este é um aspecto do ateísmo que o Alfredo, como muitos crentes, parece ter dificuldade em entender. O ateísmo não é um movimento com um propósito, muito menos com o propósito de erradicar seja o que for. O ateísmo é a consequência de perceber que as religiões são superstições como as outras. Como qualquer superstição, as religiões têm algumas coisas engraçadas, outras até bem vistas, muitas ridículas e, em geral, estão fundamentalmente enganadas.

Não há aqui um equívoco de achar que os supersticiosos se devem isolar. Qualquer pessoa é livre de ter e exprimir superstições. No entanto, se por um lado cada um tem o direito de acreditar no que quiser, por outro lado tem também o dever de não prejudicar a comunidade com isso. De não esbanjar dinheiro público em altares nem prejudicar a economia por julgar que um homem é o representante oficial do criador do universo. É esse o meu critério. O privado critico em privado, o público critico em público, e só me oponho quando a crença se torna abuso.

1- Companhia dos Filósofos, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

sábado, abril 17, 2010

Treta da semana: A coisa pela crença.

Tenho estado fora de casa, com acesso à 'net apenas de vez em quando, o que me impede de participar nos comentários ao último post. Mas quero abordar um tema central da conversa, que é um problema recorrente e interessante. O Carlos Soares escreveu que «É desconcertante, para mim, que, sendo Deus tão irrelevante para os ateus, seja ao mesmo tempo uma obsessão para eles, não como objecto de conhecimento, mas como tema ou objecto de atenção.»(1)

O ponto crucial é que não é Deus, sinónimo de Jahvé ou Jesus, que me importa como ateu. Nem sequer é deus enquanto categoria genérica para a muita coisa, real ou imaginária, que por aí se adora como divino. O que me interessa são as crenças acerca dos deuses. Essas são reais, influentes, infundadas e muitas vezes nefastas. É esse o objecto da minha crítica. Se aponto ser disparate guiar a nossa vida pela posição de Júpiter no céu não estou a criticar Júpiter. Estou a criticar a crença nesse disparate. E se digo ser um erro acreditar que os padres sabem muito de Deus, ou acreditar que Deus condena o uso de preservativos, que ordenou que as mulheres obedeçam aos homens ou que criou a Terra em seis dias não estou a criticar Deus. Isso seria como criticar o Pai Natal por haver pessoas a pedir-lhe prendas. O que critico são as crenças.

Este problema não surge apenas nestes mal entendidos acerca do ateísmo, de julgar que a preocupação com as crendices aqui na Terra é uma preocupação com os deuses do Céu. Este problema afecta também a própria discussão acerca da existência desses deuses.

Para decidir que algo existe é preciso hipóteses concretas acerca dessa entidade e indícios que justifiquem preferir essas hipóteses a quaisquer alternativas. Só assim se justifica crer que algo existe. Cremos que existem átomos porque temos hipóteses concretas acerca dos átomos e evidências que essas hipóteses estão mais correctas que as alternativas. Cremos que não existem dragões não porque se possa provar que não existem mas porque não há fundamento para as hipóteses que os descrevem. Nem que voam, nem que bafejam fogo, nem que comem princesas.

Quando o Jairo Entrecosto escreve que «Deus não é uma hipótese entre outras, é um princípio absoluto», além de enunciar mais uma hipótese entre outras, confunde também a hipótese com a coisa que esta refere. Dizer que Deus é um princípio absoluto é como dizer que o Pai Natal é um princípio absoluto. Estas afirmações não colam a Deus ou ao Pai Natal a propriedade de ser um princípio absoluto, resolvendo por magia o problema da sua existência, promovendo-os a princípio absoluto para existirem descansadamente imunes à crítica.

Dizer que Deus ou o Pai Natal são um princípio absoluto apenas exprime mais uma hipótese a acrescentar ao conjunto de hipóteses que descrevem estes seres e cuja verdade se tem de aferir para decidir se estes seres, como descritos, existem ou não.

Assim, respondendo ao Carlos, quando critico o criacionismo não estou a preocupar-me com a criação da Terra em seis dias, nem com o Dilúvio nem com o trabalhão que Noé teve para manter o barco limpo. Estou a preocupar-me apenas em corrigir um disparate. O mesmo se passa quando critico o catolicismo ou a crença num deus pessoal.

Escreve o Carlos que «A Ciência não é e nunca será, porque não pode ser, militante. Mas constata-se que abundam os que, arrogando-se de estatuto científico, militam pelas suas crenças.»(1) A ciência é uma ferramenta excelente para determinar que hipóteses são verdadeiras e que hipóteses são falsas. É a melhor e mais fiável que já inventámos. Justifica-se por isso que a ciência seja o fundamento de quem milita pela verdade. Seja para criticar astrólogos, apontar perigos nas medicinas alternativas ou defender que o criacionismo é treta. E quando afirmo que o Deus católico não existe estou a fazer precisamente o mesmo. A avaliar as hipóteses que alegam descrever essa coisa e a rejeitá-las por falta de fundamento.

E, respondendo ao Jairo, saliento que o termo “o Rato Mickey que existe mesmo de verdade verdadinha” será contraditório se “Rato Mickey” se referir a algo que não existe. Mas isso apenas implica que a expressão é contraditória. Não obriga a realidade a fazer aparecer um Rato Mickey só para me poupar ao embaraço da segunda parte da minha expressão contradizer a primeira. O mesmo se passa nos argumentos ontológicos. É verdade que se Deus não existir as expressões que usam para o descrever serão logicamente inconsistentes. Mas isso não é novidade, nem razão para espanto, nem prova mais que a nossa capacidade para inventar crenças contraditórias.

E, respondendo a ambos, o que discuto são crenças e hipóteses. Não preciso ter alguma obsessão por Zeus para rejeitar como falsa a hipótese das trovoadas serem por culpa de um homem de toga, nem a crença do Jairo que o seu deus é uma “necessidade lógica” me convence que esse deus tem mais existência que o Rato Mickey.

1 – Comentários em Convergência

terça-feira, abril 13, 2010

Convergência.

Muitos alegam que rejeito deuses, alminhas, vida depois da morte e afins apenas por assumir que não existem tais coisas. Como assumo que o universo é só matéria e natural, acusam, tenho de concluir que não há deuses. E se assumisse que o Senhor Jesus é o nosso Salvador ou coisa que o valha chegaria a uma conclusão diferente. Assumir a premissa certa salva a alma e dá paraíso. Como temos de partir de algum sítio, dizem-me, temos de assumir algumas premissas fundamentais que determinam tudo o resto.

Isto está só meio certo. É verdade que temos de partir de alguma premissa. Mas não é preciso ficar-lhe colados para sempre. Nem devemos, porque isso rouba-nos a capacidade de corrigir erros. À partida, tanto posso assumir que o chumbo é mais denso que a água como assumir que é menos denso. Porque, à partida, ainda não tenho dados que indiquem qual hipótese é mais plausível. E se escolhi a errada, quando vejo o chumbo afundar-se posso agarrar-me com toda a força à minha premissa dizendo que a água é impura, que o chumbo afundar não quer dizer nada, que não está no nível certo da realidade ou que é tudo obra do diabo.

Mas é melhor encarar todas as premissas como opiniões provisórias a rever conforme os dados que obtenha. Melhor porque não vicio a conclusão com algum erro nos primeiros passos, que são sempre os mais incertos. Se começar pela hipótese errada – e acontece muitas vezes – paciência. Posso corrigi-la mais tarde e mudar para algo mais plausível. E posso fazê-lo as vezes que for preciso.

Quem assume como certeza absoluta que Jesus é um deus, que Krishna existe, que o deus uno é três, que a Terra foi criada há dez mil anos ou que Maomé é o maior dos profetas vai ficar sempre na sua. Não importa que indícios encontre do contrário. Pode sempre dizer que são um teste à sua fé, inventar uma desculpa qualquer ou alegar uma compreensão daquelas tão profundas que ninguém percebe. O cérebro humano tem uma capacidade excepcional para moldar as suas crenças aos preconceitos. Muita gente até é capaz de ver uma criança a morrer de cancro e ainda acreditar que há um deus omnipotente que nos ama a todos. Ao pé disso, acreditar que o chumbo flutua não é nada.

Mas o cérebro humano tem também a capacidade excepcional de vencer preconceitos e adaptar crenças às evidências. “Enganei-me” custa a admitir a princípio mas, como tudo, é uma questão de hábito. E quem gosta de perceber as coisas habitua-se depressa. Porque cada erro traz uma oportunidade para o corrigir e quem não a agarra fica sem perceber nada.

É claro que se perde as certezas absolutas. Mas é um preço baixo, que as certezas absolutas são mera ilusão. E se bem que não possa rejeitar em definitivo a hipótese de estar sozinho no universo, de vocês todos serem também ilusórios ou outro problema existencial igualmente profundo, consola-me essas hipóteses serem tão inúteis e, na prática, tão irrelevantes que as posso mandar para o fim da fila e não me preocupar com elas enquanto não explorar as alternativas.

Por isto declaro-me inocente da teimosia de que me acusam. Não tenho hipóteses sagradas acerca dos factos. Os factos são o que forem. Não se vergam à minha vontade só por me pôr de joelhos e juntar as palminhas. E também não preciso de certezas absolutas. Não tenho a certeza absoluta de estar acordado, que tudo o resto exista ou até de eu próprio existir. Se calhar Descartes enganou-se e lá por haver um pensamento não quer dizer que tenha de haver um eu a pensá-lo. É possível.

Mas não é plausível. Por isso o bicho papão da incerteza não me assusta. Sei que se olhar de frente para as várias hipóteses e as confrontar com os dados posso ir descobrindo como as coisas são. Mais vale uma ideia provisória e cautelosa que possa ir aproximando da realidade do que deixar-me entalar na ilusão da Verdade Revelada™.

Um bónus agradável é saber que chego às mesmas conclusões a que chegaria se tivesse partido de premissas diferentes. Sabendo o que sei e julgando as hipóteses pelos seus méritos, seria ateu ainda que tivesse crescido muçulmano, budista ou judeu. É uma grade diferença entre quem tem religião e quem é ateu. Os religiosos são puxados, cada um para o seu lado, pelas convicções que lhes impingem desde infância. Os rituais, os sacerdotes, os preceitos, mandamentos, proibições e obrigações que os deuses, sabe-se lá porquê, se entretêm a impor aos seus fiéis.

Em contraste, os ateus chegam à mesma conclusão, e cada um por si. Cada um parte de premissas diferentes, percorre caminhos diferentes e tem uma maneira diferente de ser ateu. São pessoas diferentes. Mas todos tiveram um momento em que notaram que isto das religiões não bate certo. Um momento de “espera lá...” a partir do qual passaram a ver as várias alternativas e a procurar as mais plausíveis. E a hipótese mais plausível é que essa história dos deuses, anjinhos e companhia é tudo treta.

domingo, abril 11, 2010

Facebookado.

Ontem facebooquei-me. Cedi finalmente à pressão de vários emails que tenho recebido de pessoas que querem ser minhas amigas. Algumas até pensava que já eram. E assim que comecei o registo no site descobri a fonte de tantos pedidos. Uma das primeiras coisas que o Facebook pede é o endereço de email e a password. A password! Para ir vasculhar a lista de endereços e mandar “convites” a toda a gente com quem me tenha correspondido.

Mesmo confiando que só vão fazer isso a proposta é desconfortável. É como pedirem a chave de casa para vir copiar os endereços que tenho na agenda (1). E é presumir que toda a gente na minha lista de endereços queira receber convites para o Facebook. Bem, nisto admito que faz efeito. Tantos recebi que lá acedi, quanto mais não seja para evitar o SPAM...

Mas a password do email não se dá. Nem sem mais nem menos, nem em casos extremos nem nunca. Porque esta password não serve só para nos autenticarmos ao servidor de email. Serve para nos identificarmos a quem receba um email nosso, ou que julga ser nosso. E serve para todos os sites onde tivermos outras passwords e que tenham aquele botão para quem perdeu a sua. O botão é prático. Se perdemos a senha eles enviam uma nova por email. Mas para isso funcionar não podemos dar a senha do email. Isto é um péssimo exemplo porque a maior parte da nossa segurança depende do que fazemos e não da tecnologia em si.

Mas depois da má impressão inicial e de rejeitar enfaticamente este pedido, fui calorosamente recebido por dezenas de amigos. Alguns deles até conheço. Com medo de ofender alguém aceitei tudo, mas não sei se era suposto. Dei uma volta nas opções de segurança e desliguei permissões de uma data de coisas, a maioria que nem sei o que é. Se alguém depois se queixar que não consegue ver o meu este ou aquele logo tento perceber se há algum problema nisso. E, felizmente, já descobri como esconder todas as mensagens de quem me quer dar milho para galinhas, gasolina ou carrinhas blindadas. Talvez um dia destes ainda tente perceber que jogos são esses, mas só depois de experimentar o Twitter.

Só que não será para já. Primeiro ainda tenho de descobrir como desligar o chat.

(Ah... já descobri...)

1- O Jeff Atwood tem no Coding Horror um post interessante sobre estas coisas: Please Give Us Your Email Password

sábado, abril 10, 2010

Abafadores.

Quando era miúdo, os abafadores eram uns berlindes grandes que “abafavam” os mais pequenos. Os donos dos abafadores podiam ficar com os berlindes mais pequenos dos outros miúdos, se lhes acertassem. Com algumas complicações em função do número e cores de riscas que cada berlinde tinha, se era “bandeira portuguesa” e mais umas coisas. Já não me lembro bem. Mas o detalhe não importa, até porque as regras iam mudando de sítio para sítio e ano para ano. O curioso é que ninguém questionava a sua legitimidade. Eram as regras e pronto. Só que, de vez em quando, um miúdo mais espertalhão ou influente “lembrava-se” de uma cláusula que o favorecia, fazendo assim crescer o corpo de legislação sobre os berlindes e resultando numa grande diversidade de métodos.

O argumentário religioso é assim. O Mats criticou a minha conclusão de que não tenho alma porque «Para termos informação sobre o mundo imaterial […] temos que ter acesso a uma Fonte de Informação Autoritária sobre o dito mundo material. O ateísmo religioso não tem nenhuma [...] mas o Cristianismo tem: a Bíblia.» É um abafador. Dá-se com a Bíblia no argumento do outro e puf, fica-se com razão. Magia. Milagre.

Treta.

O Miguel Panão sugeriu-me que não perdesse tempo com a religião ingénua de quem leva a Bíblia à letra. Mas, além de tão nefasta como as variantes refinadas, a teologia mascavada do Mats revela os mesmos erros que as outras disfarçam. O João Silveira diz ter uma relação real com o seu deus porque «Foi Ele que me fez»(2). O Miguel Panão afirma «Deus age naquilo que é intrínseco (from within) ao mundo e não a partir do exterior como se de um espectador se tratasse. Deus está mais próximo dos processos naturais, de cada ser, de nós, do que nós em relação a nós próprios». O Miguel sabe isto com a firme certeza de quem sabe que um berlinde com três riscas não pode ser abafado. São as regras. É assim.

Estas brincadeiras são úteis quando somos pequenos. Dão uma ideia da estrutura do conhecimento numa idade em que é difícil perceber como se sabe as coisas, em que aprendemos pelo que nos diz quem tem autoridade e em que o faz-de-conta é tão real como o resto. Mas tem de haver o cuidado de ensinar que a autoridade não é o fundamento do que sabemos, que é precisamente o contrário, e que os factos não se podem inventar a gosto. Senão, mesmo em adultos, fica gente a pensar que basta assumir uma coisa para que ela seja verdade.

1- Mats, num post de título A incapacidade moral do ateu de aceitar que tem uma alma. Não consegui perceber o que o título quer dizer. Que sou incapaz de ser moral? Ou que é imoral da minha parte não fazer algo do qual sou incapaz?
2- Comentário em E como saber que não tenho cornos.
3- Comentário em Como sei que não tenho asas.

sexta-feira, abril 09, 2010

Segredo profissional e abuso.

Há dias escrevi que as críticas à Igreja Católica não se devem apenas à pedofilia, que é difícil de prevenir por completo. Devem-se principalmente ao secretismo que permitiu alguns padres fazer carreira da violação de menores (1). A Joaninha contrapôs que os padres guardarem segredo é análogo ao sigilo profissional que a lei reconhece noutras profissões, como médicos e advogados. Eu discordo.

O artigo 5º da Concordata diz simplesmente que «Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério»(2). O artigo 6º do código deontológico dos advogados diz que «Os advogados não podem ser inquiridos ou revelar factos que constituam segredo profissional e de que tiverem tido conhecimento no exercício das suas funções»(3), ênfase minha. Os factos que constituem segredo profissional são apenas aqueles que dizem respeito aos clientes dos advogados, como estipula o artigo anterior. Mas no caso dos padres a lei abrange todo o ministério que, neste contexto, é o ofício do padre (4). E é por isso que na Igreja Católica os padres encobriram os crimes dos colegas. Em nenhum outro ofício se permite fazer isto ao abrigo da lei.

Outro problema é que o sigilo profissional se justifica pela «defesa da liberdade e da segurança das relações íntimas, profissionais, determinadas pela necessidade ou quase necessidade de recorrer ao auxílio dos que exercem uma profissão [...] O segredo profissional não é, assim, protegido em razão de um interesse puramente particular ou mesmo de classe [mas] em virtude de um interesse geral ou publico [...] por respeitar, com efeito, à totalidade dos cidadãos.»(5) Como o processo jurídico exige a aplicação e conhecimento das leis, é do interesse público que os advogados guardem segredo acerca dos seus clientes. Senão ninguém podia sequer informar-se da legalidade dos seus actos. E isto aplica-se a detalhes da saúde das pessoas, da contabilidade, crédito e assim porque todos podemos ter necessidade de recorrer a estes profissionais e de lhes revelar detalhes da nossa vida privada.

Em contraste, não concedemos sigilo profissional a astrólogos, videntes ou empregados de bar. Há quem lhes confie detalhes privados, é certo, mas não há nisso necessidade nem interesse público. Conta quem quer. E essa é a situação dos sacerdotes. O sigilo neste oficio só interessa aos religiosos praticantes que se queiram confessar. São uma minoria dos portugueses e, seja como for, é algo que cada um faz só se quiser, não havendo qualquer necessidade prática.

E porque o dever de reserva deriva de um interesse público, noutras profissões que não a de advogado não se justifica permitir o encobrimento de crimes. Os pareceres da Procuradoria Geral da República a respeito do sigilo profissional dos médicos, por exemplo, sempre afirmaram que o sigilo abrange apenas detalhes da saúde do paciente e não eventuais crimes que este tenha cometido. Mesmo que se justificasse reconhecer aos padres um sigilo profissional, o que não traz benefício público para “a totalidade dos cidadãos”, ainda assim não deviam poder encobrir crimes. E, para mais, crimes cometidos por outros padres.

O interesse público também justifica o disposto na alínea 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal: «O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado [...] pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada [...], nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante»(6). Isto parece-me razoável, excepto talvez no segredo entre cliente e advogado, porque esse é essencial para garantir a justiça do processo judicial e não devia poder ser levantado só porque o tribunal decide. No entanto, o único sigilo que não é violável nem por decisão do tribunal superior é este mencionado na alínea 4 do mesmo artigo: «O disposto no número anterior não se aplica ao segredo religioso.»

Qualquer segredo profissional pode ser quebrado por ordem do tribunal se este julgar que há um interesse preponderante nisso. Excepto quando um sacerdote oculta crimes. Até há pouco tempo isto aplicava-se apenas aos padres católicos, pela Concordata. Agora a Lei da Liberdade Religiosa tem uma cláusula idêntica (7), o que dá aos sacerdotes de algumas religiões seleccionadas o direito legal de encobrir os colegas que violem crianças. Outra asneira. Em vez de uma lei de liberdade religiosa que desse a todos igual liberdade de seguir qualquer religião desde que respeitassem a lei, inventaram uma coisa que dá a algumas religiões, escolhidas entre os amigos da comissão, o privilégio legal de obstruir a justiça sempre que lhes dê jeito.

Isto não é segredo profissional. Não é análogo ao que se passa noutras profissões. Não há razão para isentar os padres de denunciar ou de depor acerca dos crimes de outros padres nem para desculpar quando os encobrem. A Joaninha diz que isto se compreende pelo peso histórico da Igreja Católica. Compreender, compreendo. Mas não concordo. As décadas de abusos de alguns pedófilos de carreira na Igreja Católica teriam sido evitadas se em vez de conceder privilégios absurdos se punisse com os criminosos também os cúmplices que os encobriram.

1- As perguntas do Henrique Raposo
2- ARL, Concordata de 2004
3-Saudinha.com Codigo Deontológico Advogados
4- Priberam, Diccionário de Língua Portuguesa, ministério
5- Procuradoria Geral da República, Pareceres sobre sigilo médico
6- AACS, Código de Processo Penal
7 U.C.P, Lei da Liberdade Religiosa

quinta-feira, abril 08, 2010

Treta da semana: Para o que vale, é caro...

A facilidade de partilhar e copiar informação digital levou a indústria de cobrança cultural à beira do precipício. E ontem à noite o governo Inglês deu um grande passo em frente, fazendo passar no Parlamento a sua proposta de Lei da Economia Digital, assim praticamente aprovada.

Esta proposta tem sido controversa tanto pelos efeitos, como permitir o corte do acesso à Internet, facilitar a censura e banir redes Wi-Fi abertas, como pelo processo de aprovação. O Parlamento inglês está prestes a ser dissolvido, tendo sido já anunciadas as eleições gerais, e nesta altura há menos escrutínio e participação nas actividades legislativas. Dos 650 membros do Parlamento só 236 votaram ontem, e poucas dezenas participaram no debate que durou apenas duas horas. A fotografia da sessão, publicada no Guardian, mostra bem o interesse dos legisladores (1):

Multidão

Entre outras coisas, esta lei contempla a criação de regulamentos que permitam bloquear «uma localização na Internet que o tribunal julgue ter sido, estar a ser ou poder vir a ser usada para, ou em ligação com, uma actividade que viole direitos de cópia.» Ou seja, tudo. Seria de esperar uma linguagem mais rigorosa e específica dos legisladores. É claro, neste caso têm desculpa, porque foram as discográficas que escreveram a lei (2)...

Este sistema de restrições e monopólios que os distribuidores têm imposto está totalmente desligado da nossa cultura. No quotidiano não vemos a troca de ideias e informação como transacções de propriedade. Contratamos um explicador para explicar e não para licenciar o uso de uma matéria. Não pagamos por uma anedota que nos contam, por uma receita ou por cada jogada de Xadrez. Desde a mais tenra infância que copiamos tudo, da língua à forma de vestir, chamamos-lhe aprender e até dizemos aos nossos filhos que é algo de grande valor.

Porque é. Foi essa vontade de copiar ideias, informação e criações, e a vontade de as partilhar com os outros, que nos fez inventar a linguagem e que nos deu toda a civilização. A proibição da partilha e tratar ideias como propriedade são restrições desumanas, tão estranhas que nem os governos e organizações que empurram esta legislação a respeitam.

Em Espanha, o canal de TV VEO 7 reuniu dados mostrando que em praticamente todos os ministérios e organismos do governo havia computadores a partilhar ficheiros. Incluindo no Ministério da Cultura, que está a preparar a legislação pedida pelas editoras (3). Os dois maiores partidos do Reino Unido, um que propôs e o outro que deixou aprovar a proposta da Lei da Economia Digital, usaram para a campanha eleitoral uma imagem da BBC sem autorização dos detentores dos direitos (4). Sarkozy implementou na França a legislação mais restritiva da Europa (até agora), mas usou nos vídeos da campanha eleitoral uma música de uma banda Canadiana sem a devida autorização. E depois ofereceu 1€ (um euro, está bem escrito) como “recompensa simbólica” para a banda retirar o processo que tinham movido contra o partido (5). A própria HADOPI, a autoridade francesa que fiscaliza as violações de copyright, usou no seu logótipo um tipo de fonte sem autorização do criador (6), e a Sony BMG foi apanhada a usar software pirateado (7).

Em pouco mais de um século passou-se da concessão de um monopólio de 14 anos sobre a venda de material impresso a um copyright de uma vida e várias décadas, que cobre tudo e que acrescenta restrições ao uso, à transformação, à distribuição e ao acesso. Julgo que isto só foi possível porque passou despercebido. E porque nunca votámos isto, nem em programas eleitorais nem em referendos. Foi tudo decidido em acordos internacionais, em salas fechadas, entre representantes de empresas com bolsos cheios e representantes de governos com bolsos para encher. E, ainda hoje, uma grande parte do eleitorado não se rala porque não lhes faz diferença. Na prática, esta avalanche de leis tem tido pouco impacto.

Até agora. Leis como esta já vão fazer diferença a muita gente que, mais cedo ou mais tarde, há de votar em partidos que deixem de criminalizar e punir o que todos fazemos. E que temos o direito de fazer. O direito de usufruir, partilhar e participar na cultura em que vivemos. Por isso, a longo prazo, o pior talvez nem seja o atropelo destes direitos. Talvez o efeito mais nefasto disto seja a imagem que dá do processo legislativo.

Uma geração vai crescer com a ideia que as leis não têm nada que ver com certo e errado, que servem apenas os interesses de quem tem dinheiro e que os legisladores não representam os eleitores. Mais do que o custo de fiscalizar, restringir os nossos direitos e intrometerem-se na nossa vida privada, estas tentativas de salvar pela lei um negócio sem futuro estão a minar a pouca confiança que ainda temos no nosso sistema político. Vai sair caro, este subsidio à venda de Spice Girls e Tonis Carreiras.

Via TorrentFreak, e obrigado ao leitor que me enviou um email com a notícia.

1- Guardian, Digital Economy bill: liveblogging the crucial third reading
2- Cory Doctorow, Guardian, Is the music industry trying to write the digital economy bill?
3- TorrentFreak, Piracy Rampant Among Spanish Government Officials
4- The Russian Photos Blog, UK Digital Economy Bill Turns To Ashes, via ZeroPaid
5- CBC News, MGMT 'insulted' by €1 offer from Sarkozy's party, via ZeroPaid.
6- ZeroPaid, French “Three-Strikes” Agency Logo Violates Copyright
7- ZeroPaid, Sony BMG Sued for Software Piracy – Assets Seized

quarta-feira, abril 07, 2010

E como saber que não tenho cornos.

Numa jogada a que já me habituei nestas discussões, o Nuno Gaspar evitou o problema objectivo de saber se existem deuses, almas e afins desviando a conversa com um «E como é que sabe que não tem um par de cornos, Ludwig?». Quando respondi que, se quiser saber, posso perguntar à minha mulher, o Nuno concluiu precipitadamente que «Ah! Vai ter de confiar. OK!»(1), numa analogia implícita com a sua fé num deus. Confia em Deus porque é o seu deus, tal como eu confio na minha mulher porque é a minha mulher. Mas isto não é análogo. É o oposto.

Se um dia me preocupar com os cornos, para saber se os tenho terei de fazer o mesmo que faço para saber qualquer outra coisa. Primeiro, conceber ideias acerca das várias possibilidades. Os tais modelos. E depois reunir dados que permitam testar a hipótese de cada modelo corresponder à realidade. Perguntar à minha mulher seria um passo importante. Essa resposta, ou a forma dela responder, seria informativa. E podia ver os registos da Via Verde, os pagamentos com cartão nas bombas de gasolina, o conta-quilómetros do carro e assim por diante. Para saber se tenho cornos preciso de testar hipóteses, um processo necessariamente movido pela dúvida acerca das alternativas. Se os tenho ou não tenho. Confiar, por si só, nunca esclarece nada. Deixa-nos precisamente na mesma.

É claro que não tenho perdido tempo com esta questão porque, além de não a considerar muito importante, não me parecer plausível e ter mais que fazer, confio na minha mulher. A confiança é uma parte fundamental da nossa relação. Mas nem a confiança me dá conhecimento nem confio nela por ser minha mulher. É precisamente o contrário. Estamos juntos porque confiamos um no outro e confiamos um no outro porque nos conhecemos. Bem.

Esta confiança não é um brinde gratuito da relação e muito menos um capricho de fé. É o resultado de duas décadas de intimidade, um longo trabalho ainda em curso. Juntos desde que somos adultos, reunimos dados suficientes para formar uma opinião fundamentada acerca de nós, como casal. Esse fundamento empírico permite que a decisão de continuarmos juntos e de confiarmos um no outro seja uma decisão informada. Não nos atiramos à confiança. E se bem que admita que a minha amostra deste tipo de relações é limitada, com só um ponto experimental, ainda assim é um case study detalhado que me leva a concluir não haver outra maneira de construir uma relação genuína. Seja com quem for. Tem de se conhecer antes de confiar.

E o conhecimento vem sempre da dúvida, mesmo quando alicerça a confiança. É só pelo teste constante daquilo que pensamos que o outro quer, pensa, aprova, reprova ou tenciona fazer que, com o tempo, podemos formar uma ideia correcta da pessoa com quem nos relacionamos. Quem nunca duvidar dos seus preconceitos iniciais e nunca puser à prova o que julga saber acerca do outro há de cometer tantos erros que acaba só com uma ilusão. Se essa outra pessoa existir ainda pode ser que lhe desfaça a ilusão. Mas se for tudo fantasia o mais certo é andar iludido a vida toda. E talvez ainda esperar por mais.

Quando os crentes ilustram a sua relação com um deus apelando a exemplos como a confiança num cônjuge ou o amor materno escondem a inversão do processo. Nas relações genuínas a confiança nasce do conhecimento que se obtém testando empiricamente o que julgamos do outro, da nossa relação e do nosso papel nela. Mas entre milhares de milhões de crentes, e milhares de religiões, há uma imensidão de ideias diferentes que ninguém pode testar. Não há forma de saber quais são as correctas. E confiar tanto em especulações sem fundamento não é formar uma relação. É ser ingénuo, insensato, e até irresponsável quando a confiança injustificada numa ficção afecta terceiros.

A relação com os deuses não é de amor conjugal ou de família. É casar com um desconhecido ou fazer como os patos, que julgam que mãe é a primeira coisa que lhes aparece.

1- Como sei que não tenho asas.

terça-feira, abril 06, 2010

Mas... afinal...?

Em Portland, Maine, nos EUA, um grupo de mulheres caminhou pelas ruas de tronco nu para protestar contra os critérios discriminatórios que toleram este comportamento nos homens mas não nas mulheres. Não pela lei, que o estado do Maine apenas proíbe a exibição pública dos genitais, seja qual for o sexo. Mas, supostamente, queriam protestar por a sociedade ter padrões diferentes para os sexos e vedar esta opção ás mulheres.

Digo supostamente porque, apesar de ninguém lhes mandar tapar o que mostravam de direito, ficaram “surpresas e perturbadas” porque muitos homens olharam e alguns até tiraram fotografias do protesto. E julgo que se fosse um grupo de homens de tronco nu e as mulheres olhassem e tirassem fotos ninguém protestaria. Ty MacDowell, que organizou o protesto com escolta policial, disse até ter ficado chateada porque esses homens estavam a olhar “como se isto fosse um desfile”. Duh...

Apoio que reivindiquem os seus direitos, não me oponho a que andem de tronco nu e, se tivesse de proibir isto a alguém era aos homens, que barrigas e pêlos não têm nada de estético. Àqueles que se queixaram de isto ser indecente por haver crianças presentes digo apenas que são parvos. Acham bem que os miúdos passem as manhãs de domingo a ver um tipo morrer pregado a uma cruz mas escandalizam-se por verem mamilos. Só falta censurar biberões e chupetas.

Mas, minhas senhoras (caso alguma saiba português e leia este blog), o direito de andar de tronco nu não legitima proibir os outros de olhar. Porque, além de injusto, é biologicamente impossível. Consolem-se com o facto de olharmos também quando andam vestidas.

Fox Maine, Topless Women March in Portland

segunda-feira, abril 05, 2010

Como sei que não tenho asas.

Ao longo de uns anos de blog várias vezes me têm apontado que a falta de evidências não prova que uma hipótese seja falsa. Em rigor, é verdade. Não posso saber se a proposição P é verdadeira ou falsa se não souber nada acerca de P. Mas isto é só uma parte da história.

Recentemente, o Miguel Panão escreveu que se “tivesse razão” a abordagem científica pela qual concluo não ter alma, então «seria capaz de demonstrar a inexistência de Deus segundo o método que considera válido para acessar ao Real, o científico. [...] Ou seja, para ser verdade o que estás a afirmar, deverias demonstrar a evidência de ausência, não com base na ausência de evidência»(1). E o Mats, quando lhe disse que sei que não tenho alma da mesma forma que sei não ter asas, respondeu que só sei que não tenho asas porque uso «um sentido físico para detectar a sua ausência», perguntando em seguida «Qual é o sentido físico que usas para detectar a inexistência da alegada parte imaterial do ser humano?»(2)

O problema, destes dois casos e em geral, é olharem para uma parte de cada vez quando o conhecimento está no encaixe das peças. Para começar, não posso considerar só uma hipótese isolada, senão não há nada com que a comparar. Quando me pergunto se terei asas, devo conceber dois modelos. Num imagino-me com asas a sair das costas. Noutro imagino que tenho as costas sem membros destes. E assim tenho duas hipóteses alternativas, pois só um dos modelos pode estar correcto. Agora parto do zero, sem evidências nem a favor nem contra qualquer das duas, e penso no que cada modelo prevê para reunir dados e testar as hipóteses.

Se o modelo das asas for o correcto espero sentí-las bater nas ombreiras das portas, conseguir vê-las, sentir o seu peso nas costas e assim por diante. Se for o outro não devo notar nada disto. Mas se não vejo asas, nem as sinto e não aparecem nas fotografias posso reformular o primeiro modelo. Tenho asas, mas são invisíveis, passam através dos objectos sólidos e não têm peso. Volto assim ao estado inicial, sem evidências nem a favor nem contra. E continuo os testes, e vou alterando o modelo sempre que as previsões falham. As asas também são invisíveis aos infravermelhos, nunca largam penas, não fazem barulho, são hipoalergénicas, não servem para voar. E sempre que reformulo o modelo volto à situação inicial. Nem evidências a favor, nem evidências contra.

Mas se olho para o percurso vejo uma clara diferença entre os dois modelos. O modelo de mim sem asas acertou sempre em todas as previsões, desde o início. O outro tem cada vez mais remendos porque está sempre a falhar, e cada vez o que prevê é mais parecido com o que prevê o modelo contrário. Que não vou ver asas, nem as vou sentir nem vou conseguir voar. Antes de chegar aqui já qualquer pessoa razoável disse porra, não tenho asas e pronto. A falta de evidência que se lixe. Porque se bem que se possa sempre alterar o modelo das asas para fugir às evidências contrárias, este processo em si é evidência forte que o modelo não presta.

Os modelos iniciais das almas e dos deuses eram modelos a sério. Diziam-nos coisas. Tinham possessão demoníaca, fantasmas, diluvios, doenças para castigar os infiéis e trinta por uma linha. Mas foram-se desvanecendo como as minhas asas e, hoje, não adiantam de nada. É o deus que age sem intervir imanente na indeterminação da contingência que torna necessária pela constante criação, mas do qual não há vestígios. É a alma imortal que, de tão transcendente que é, até fica bêbada, perde a memória com um AVC e muda de personalidade com a esclerose múltipla.

É claro que não há evidências contra estes modelos, pois sempre que se encontra algo que os contradiga metem-lhes mais um remendo. Ainda assim, e precisamente por isso, não valem a farinha de uma hóstia.

1- Comentário em Evolução: cinco princípios
2- Comentário em Treta da Semana: A vida depois da morte

domingo, abril 04, 2010

Treta da semana: A vida depois da morte.

Esta treta é antiga. Uma das mais antigas de todas. Mas decidi abordá-la hoje por ser, mais coisa menos coisa, o dia das mentiras. O que nos propõem é que depois de morrermos continuamos vivos. Porque ouviram dizer que sim. Não há dados fiáveis acerca dessa existência no além nem forma de ir lá ver e voltar. Mas algumas pessoas, como a amiga da Júlia Pinheiro, dizem que sim senhor, anda lá tudo muito contente, e muita gente diz que acredita. Não confia muito, a julgar pelo estado de espírito nos funerais. Mas diz que acredita.

A ideia é estranha logo à partida se pensarmos na vida antes da concepção. Nada. Alguns dizem que reencarnaram e que até se lembram das vidas passadas, quando eram o sapateiro de Napoleão ou um primo afastado de um dos apóstolos. Eu fui ver à 'net, introduzi a minha data de nascimento e descobri que fui uma mulher que construia casas e catedrais na Nova Guiné por volta do ano 800 (1). É interessante. Mas parece-me pouco plausível.

Outros defendem que quando o óvulo e o espermatozóide se encontram – mas só os da nossa espécie – um deus faz rapidamente uma alma eterna e imortal e enfia-a, bem enroladinha, no zigoto em formação. Daqui concluem ser pecado fazer zigotos em tubos de ensaio. A premissa é um mero palpite, pois não sabem distinguir entre zigotos com alma e zigotos desalmados. Pior ainda, a inferência não faz sentido. Se a alma vai direitinha para o céu esta é a melhor maneira de garantir a salvação sem as provações e tentações da vida terrena. A menos que temam que Deus ponha almas em zigotos sem futuro para depois as deitar no inferno por falta do baptismo e do carimbo da paróquia. E tudo por amor, com certeza.

Mas além de ser mera especulação infundada, a hipótese da vida depois da morte é contrária ao que sabemos ser necessário à vida e, principalmente, à consciência. Viver exige capacidades, mudança, dinamismo, energia. A vida dura enquanto se equilibra na crista de uma onda de entropia. Algo que seja imaterial e eterno será forçosamente inerte. Sem vida.

E persistir além da morte não serve de nada se não mantivermos a nossa subjectividade. Sem sentir, pensar, decidir, recordar, imaginar, desejar, e essas coisas não tem piada nenhuma. E tudo isso, ao que sabemos, precisa de um cérebro funcional.

Apesar de supostamente termos alma logo na concepção, as primeiras recordações que guardamos surgem só vários meses depois do nascimento. Nascemos com o cérebro muito imaturo, não só nas ligações entre neurónios, que demoram mais de uma década a organizar-se, como nas células em si. É durante os meses após o nascimento que os neurónios se envolvem em mielina e começam a funcionar devidamente. Sem este passo não há pensamento, memórias, e possivelmente nem há sensações nem consciência.

As lesões no cérebro mostram bem como é improvável a consciência sobreviver à morte do corpo. Um AVC pode roubar-nos a memória, a capacidade de entender a linguagem ou de decidir e um traumatismo pode transformar por completo a personalidade. A doença de Alzheimer é um exemplo dramático disto tudo, uma lenta mas inexorável degeneração do cérebro que acaba por destruir tudo o que define a pessoa. O paciente começa por ter dificuldades de memória e atenção, perde capacidades cognitivas, vocabulário e coordenação motora, torna-se apático, a personalidade desvanece-se. Eventualmente já não há lá ninguém e o corpo morre. Se a alma ainda sobrar leva muito pouca coisa.

E se a ideia de uma vida com fim é desagradável, a ideia da eternidade, se a levarmos a sério, é insuportável. Um tédio tão assustador que até fez com que inventassem o budismo para se safarem das reencarnações intermináveis a que o hinduísmo condena. Antes o nirvana, abandonar tudo para encontrar a serenidade final de deixar de ser.

Hoje, centenas de milhões de pessoas celebram a vitória sobre a morte. Disseram-lhes que um deus conseguiu ressuscitar e, para algumas, isto até talvez seja um consolo. Mas esta ideia não serve para consolar. Esta coisa da vida depois da morte serve principalmente para comprar fiado. Dá-me toda a tua vida, dizem estas religiões, que depois de morreres logo deus te paga. Pois sim... Aqui, meus senhores, fiado só amanhã.

Boa Páscoa.

1- The Big View, Past life. «I don't know how you feel about it, but you were female in your last earthly incarnation.You were born somewhere in the territory of modern New Guinea around the year 800. Your profession was that of a builder of houses, temples and cathedrals.»

sábado, abril 03, 2010

Evolução: cinco princípios.

O Mats queixou-se que eu não mostrei qualquer mecanismo para a evolução do pé (1). Cá vão então os pontos fundamentais da teoria que Darwin propôs há 150 anos. A teoria da evolução de hoje é muito mais que isto, da genética de populações à biologia molecular, da homologia de proteínas aos estudos de biodiversidade. Darwin nem sequer sabia como os filhos herdavam as características dos pais nem fazia ideia do que era o ADN. Mas os princípios que ele enunciou ainda são válidos e úteis para perceber a origem das espécies.

O primeiro princípio é que qualquer população cresceria exponencialmente se tivesse recursos ilimitados. Se cada casal de coelhos tem quatro filhos a população duplica a cada geração. O que na prática é impossível. Por isso, diz o segundo princípio, como os recursos são limitados muitos indivíduos não conseguem deixar descendentes. Na luta pela reprodução só alguns têm sucesso. Isto vem do que Malthus escrevera no seu Ensaio sobre o Princípio da População, em 1798, e que Darwin leu em 1838, percebendo de imediato as implicações para a evolução.

O terceiro princípio é que os indivíduos são todos diferentes. Por muito pequenas que sejam as diferenças, há sempre variação em qualquer população. Darwin desconhecia os mecanismos de recombinação genética e mutação. Hoje sabemos que, pelos erros inevitáveis na cópia do ADN, a diversidade genética de uma população nunca pode desaparecer por completo. Mas mesmo sem se conhecer a origem molecular desta diversidade, esta diversidade era evidente no tempo de Darwin e muito apreciada pelos criadores de plantas e animais. E se cada população tem indivíduos diferentes, uns serão mais aptos que outros para se reproduzir no ambiente onde vivem. Este é o quarto princípio. As diferenças entre indivíduos correlacionam-se com diferenças no sucesso reprodutivo.

Em conjunto, estes implicam o quinto princípio. A conclusão é que os indivíduos de cada geração tendem a ser aqueles que herdaram dos seus progenitores as características que mais ajudaram na reprodução. Assim, a cada geração a diversidade da população é empurrada pela selecção natural resultando, em média, numa geração seguinte com mais características favoráveis à reprodução e menos incidência das que forem desfavoráveis.

O nosso pé – como tudo o resto – surgiu por este mecanismo. É difícil dizer ao certo que factores levaram os nossos antepassados arbóreos, há cinco ou dez milhões de anos atrás, a caminhar erectos. Darwin propôs que seria para libertar as mãos, que pode ter servido para carregar alimentos ou utensílios ou para transportar as crias. Outras possibilidades são o alargamento da zona de caça e recolha do macho, trazendo provisões para as crias, ou para melhor vigiar os predadores. Os detalhes teremos de ir encontrando, mas o que a teoria da evolução diz claramente é que alguma coisa, seja uma nova característica comportamental ou uma alteração no ambiente, mudou o balanço de vantagens e desvantagens entre ter um membro posterior mais capaz de agarrar ramos ou mais eficiente para caminhar.

Uma vez encetado este caminho, a selecção natural fez com que os indivíduos com um pé mais parecido com o nosso tivessem mais probabilidade de se reproduzir. O nosso pé resulta de descendermos de uma linha ininterrupta de indivíduos que conseguiram reproduzir-se. Nem um único dos nossos antepassados falhou nesta tarefa.

O Mats dirá que a variação de uma geração para outra está muito bem mas que isto não explica como um macaco passa a ser homem. É um aspecto curioso do terceiro princípio. À partida, devia ser o mais evidente. Basta olhar em volta para ver que todas as populações são compostas por indivíduos diferentes entre si e que chamar a uma “macaco” e a outra “homem” não designa uma coisa única mas sim categorias onde agrupamos seres diversos. Infelizmente, a nossa mente insiste em reificar tudo e ver tais categorias como se fossem coisas em si, com uma essência própria*.

Este erro não é apenas dos criacionistas evangélicos, muçulmanos radicais e outras seitas que rejeitam explicitamente a evolução. O cristianismo católico comete-o também ao admitir a “evolução biológica” mas exigir um ponto onde surja o Homem. Ou seja, exigem uma transformação da essência dos animais ancestrais na essência do ser humano.

Isto é um erro crasso porque só se pode perceber a evolução rejeitando essa ideia das essências. Não há uma essência de macaco que se transforma numa essência humana. Há populações. Cada uma é composta por indivíduos diferentes. E cada indivíduo nasce, cresce, morre e deixa outros parecidos mas não iguais. Com o tempo, a população dos descendentes é cada vez mais diferente da população ancestral, sem que nunca se altere qualquer essência. E este é um processo que não tem propósito, não segue nenhum plano e nunca, nunca, terá fim**.

*Acontece também na propriedade intelectual. As “coisas” de que se é proprietário segundo esta doutrina são, na verdade, categorias. Quando dizemos que duas pessoas cantam a mesma canção estamos a dizer, em rigor, que agrupamos na mesma categoria os padrões de som que produzem. A ilusão que se pode ser o dono legítimo de uma categoria é análoga à ilusão que existe uma essência para cada espécie.

** OK, esta parte é hipérbole. Eventualmente o universo vai ficar todo congelado e acaba-se a brincadeira. Mas isso é daqui a tanto tempo que dá bem para dois nuncas. Ou mais.

1- Mats, Pressão Evolutiva Pressiona-me a Rejeitar a Evolução

sexta-feira, abril 02, 2010

E, já agora, era também um tentáculo com unhas para coçar as costas...

O Mats descobriu outra prova que a teoria da evolução é falsa. «De acordo com a teoria da evolução, os nossos ancestrais tinham a capacidade de opor o dedo grande do pé aos outros dedos [...]. Se nós tivéssemos retido essa capacidade, poderíamos apanhar coisas do chão sem ser necessário debruçar.»(1) Porque a evolução se “esqueceu”, segundo o Mats, de nos dar essa capacidade, então só há uma conclusão possível. «Nós somos o resultado do Poder Criativo Do Senhor Jesus Cristo». Ora aí está. Foi o filho do carpinteiro. O que mais poderia explicar o dedo grande do pé?

Na verdade, o Mats não explicou porque é que o Senhor Jesus se esqueceu de nos dar um polegar oponível no pé. Ou tanta outra coisa que poderia dar jeito. Ao contrário da evolução, o Senhor Jesus é supostamente inteligente e devia ter pensado nisso. Mas o que o Mats fez foi dar mais um exemplo de evolução e não de design inteligente. O nosso pé é assim porque a linhagem dos hominídeos, da qual hoje infelizmente só resta a nossa espécie, foi pressionada a especializar-se numa locomoção exclusivamente bípede e terrestre. O polegar aduzido (junto ao pé) e os dedos curtos são mais úteis para impulsionar o corpo do que o polegar abduzido (afastado) e dedos longos dos nossos antepassados arbóreos, a quem era útil agarrar ramos com os quatro membros.

E o nosso pé é uma adaptação incompleta, não planeada, que claramente aproveitou o membro ancestral com modificações. O equilíbrio e a propulsão estão a cargo quase totalmente do dedo grande e da planta do pé. Os outros dedos têm um papel menor, e o mais pequeno parece servir apenas para bater nos cantos dos móveis e nas pernas das mesas. E como a evolução não tem discernimento nem inteligência, lá vamos vivendo ainda com esses vestígios de um passado arbóreo. E com todos os problemas da coluna vertebral, das ancas, dos joelhos e tornozelos que são consequência da adaptação gradual de um esqueleto de quadrúpede para uma locomoção bípede apenas pela selecção natural de mutações aleatórias.

Um problema bastante grave deste remendar cego, que a tradição judaica até teve de atribuir a uma vingança maldosa do seu deus, é nascermos pelo meio do pélvis da mãe. Num quadrúpede ou num primata arbóreo isto não faz mal porque as ancas podem ser tão largas quanto o crânio do bebé precisar. Mas um bípede cabeçudo é uma desgraça. As ancas largas dificultam o andar com duas pernas, criando uma pressão selectiva para ancas mais estreitas. Mas as ancas estreitas dificultam o parto, tornando o parto humano um dos piores do reino animal*. O resultado é um compromisso muito pouco inteligente entre a mortalidade materna e infantil por um lado e, por outro, aquele andar sensual mas metabolicamente mais exigente. Um problema que só foi resolvido com a inteligência, não dos deuses nem da evolução, mas dos humanos. Um corte acima do osso púbico e plop, salta o bebé num instante.

A teoria da evolução permite inferir, da observação de características presentes, hipóteses testáveis acerca desta interacção entre as restrições impostas pela hereditariedade e as pressões selectivas que as moldaram. No pé humano podemos ver claramente o traço dos nossos antepassados arbóreos e as adaptações que deformaram o que era praticamente uma mão e a tornaram um pé mais eficiente no seu novo papel.

Para o criacionismo, o dedo grande é mais um de muitos mistérios do desígnio divino, a juntar a outros tantos milagres que, em conjunto, tornam esta teoria tão útil para a ciência como o algodão-doce na construção civil. Agrada a uns, enjoa outros, cola-se a tudo e não serve para nada.

* Há outros tramados. As hienas fêmeas, que não fizeram malandrice alguma com a maçã, têm um pénis falso e as crias nascem por aí. É uma consequência da selecção para maior massa muscular e agressividade, que leva as fêmeas desta espécie a ter níveis muito altos de testosterona e, por isso, órgãos genitais masculinizados. Até dói só de pensar...

1- Mats, Capacidades do Mundo Animal Que a Evolução Esqueceu-se de Conferir ao Ser Humano

quinta-feira, abril 01, 2010

Document Freedom Day.

Foi ontem, dia 31 de Março, e já não vou a tempo de celebrar (1). Mas ainda vou a tempo de me gabar.

Este ano lectivo deixei de vez o Office da Microsoft e já só uso o OpenOffice. Disponibilizo os slides das aulas em ODF e PDF e os vídeos vão codificados com Theora e Ogg Vorbis em Matroska. Isto pode parecer Grego mas quer dizer que é tudo formatos abertos, livres de patentes e sem restrições nem complicações legais. E gratuitos. E assim pude passar a usar o Kubuntu nas aulas sem ter problemas com os formatos dos ficheiros e poupar no imposto Microsoft do portátil (2).

Para quem quiser, ficam os links:

Kubuntu.
OpenOffice, em português.
Página sobre Theora na Wikipedia, com ligações para leitores e codificadores.
E o RecordMyDesktop para criar vídeos com apresentações ou aulas.

1- documentfreedom.org, via o FriendFeed da Paula Simões
2- Não quero imposto M$!

Assim também não...

Porque rejeito crendices, porque as critico e troço delas em vez de dizer “pois...” como quem não se compromete, dizem que o meu cepticismo é intolerância. Intolerância...

Intolerância é outra coisa. Ali Sabat é um astrólogo libanês, famoso no seu país por um programa de televisão onde fazia alegremente as figuras que bem conhecemos desta antiga profissão. Prever o futuro, dar conselhos e inventar tangas. E quando passou pela Arábia Saudita em peregrinação foi preso pela policia religiosa e condenado à morte por bruxaria (1).

Não sou fã de astrólogos, admito. Mas isto é um exagero. Nem dá vontade de gozar com o homem por não ter visto o que o futuro lhe reservara. As minhas dúvidas e críticas só lê quem quer, e até me podem insultar nos comentários se os incomodar muito. Este desgraçado vai ser morto porque um bando de imbecis acha que aquilo é a sério e que há um homem invisível no céu que não gosta de astrólogos. Isso é que é intolerância, essa atitude prepotente e injusta que não vem do cepticismo mas só da convicção profunda que se tem toda a razão dê lá por onde der.

E também dizem que só critico caricaturas das religiões. Antes fosse. Caricatura é algo falso que teria piada se fosse verdade. Isto é uma verdadeira tristeza e antes fosse mentira.

1- BBC, 'Sorcerer' faces imminent death in Saudi Arabia