Cravo e ferradura.
Segundo o Público, citando o diário espanhol El País, o ministro Mariano Gago terá dito «que a indústria cultural não deve ver a pirataria como um inimigo, “visto que foi uma fonte de progresso e de globalização”»(1). Não tendo à sua disposição os recursos do Marco Santos do blog Bitaites (2) – como um PC ligado à 'net, por exemplo – os jornalistas do Público não puderam confirmar o que o ministro teria dito. Por isso, mais tarde, saiu outra notícia desmentindo a primeira (3). A Exame Informática, no entanto, com jornalistas de investigação ao nível dos melhores bloggers, corrigiu finalmente a correcção (4).
A afirmação de Mariano Gago foi um pouco mal interpretada. Ele começa por mencionar que há uma lei civil que deve governar estas coisas, pelo que não está propriamente a defender que cada um faça o que quer. Mas explica que o problema já existia no tempo das fotocópias e que apenas mudou a escala, mudança essa também um factor de inovação e globalização que dá mais valor ao criador. Quando um músico pode distribuir a custo zero a sua música por todo o mundo, diz o ministro, o seu trabalho de criador ganha valor e, por isso, o “copyright” (ele faz as aspas com os dedos) fica protegido pela própria pirataria.
Esta ideia é correcta. A violação dos monopólios sobre a propriedade intelectual foi um motor de inovação em muitas ocasiões. Os primeiros cineastas escolheram Hollywood em parte pelo clima mas em parte por ficar demasiado longe de Nova Iorque para que Edison se pudesse valer do seu monopólio sobre essa tecnologia. Esses piratas criaram uma indústria enorme, lucrativa, e de grande impacto cultural que não teria arrancado se tivessem de pagar o que Edison exigia.
Sem a pirataria na Internet não haveria leitores de MP3, os discos rígidos seria muito inferiores e muito mais caros, não teríamos ligações de banda larga nem lojas de músicas, filmes e livros electrónicos. Nem haveria YouTube, Facebook, blogs e tantas outras inovações que mudaram a economia e a sociedade e que seriam impossíveis se todos se agarrassem aos direitos exclusivos de copiar o que produzem. É estranho ver um ministro que percebe alguma coisa do que diz mas, neste caso, Mariano Gago parece ter sido culpado desse (raro) pecado político.
Pecado que a ACAPOR prontamente denunciou, prometendo até processar o Estado «pela sua inacção e complacência perante a pirataria na Internet»(5). A associação dos alugadores de DVDs julga ser por causa da pirataria que pessoas com 100 canais de TV e video on demand já não saem à chuva para alugar filmes velhos. Recorre assim ao novo sistema de processar tudo e todos a ver se ganha clientes.
Corrigindo o erro do ministro, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior enviou para os jornais uma anedota a que chamaram comunicado. «O MCTES condena naturalmente toda a pirataria que retira aos produtores e autores a capacidade de prosseguirem a sua capacidade de criação.»
Pausa para efeito dramático...
«A pirataria transfere ilegitimamente para empresas distribuidoras o valor devido aos produtores e aos autores.»
Badom, bum! Gargalhadas e aplauso.
A solução, parece-me, é não comprar CDs nem DVDs. Como pago sempre o mesmo à Netcabo, se não uso a largura de banda que me vendem eles têm menos despesa e mais lucro. Por isso, para não lhes transferir ilegitimamente a riqueza alheia, tenho é de sacar, sacar, sacar. E nunca mais comprar nada porque a editora fica com a maior parte do dinheiro e não dá quase nada ao autor. Isso sim é pirataria.
Eu também sou contra a «pirataria que retira aos produtores e autores a capacidade de prosseguirem a sua capacidade de criação». Por mim acabava já com os monopólios que tiram aos autores direitos sobre as suas próprias obras. Mas, pelo mesmo raciocínio, tenho de ser a favor da pirataria que dá aos novos autores os meios e o material para começarem a sua actividade de criação. E como a inovação, por definição, está no futuro e não no passado, é a esses que tenho de dar prioridade. Se o preço de haver mais artistas, melhores artistas e mais arte é haver menos gente a encher os bolsos à custa deles, paciência. É um preço que estou disposto a pagar, por muito que me irrite os choradinhos da ACAPOR.
1- Público, Mariano Gago diz que pirataria é "fonte de progresso"
2- Bitaites, O que Mariano Gago realmente disse
3- Público, Mariano Gago desmente que tenha dito que pirataria é “fonte de progresso”.
4- Exame Informática, Mariano Gago disse mesmo que "pirataria é fonte de progresso" (vídeo)
5- Público, Clubes de vídeo vão processar o Estado por “inacção” contra a pirataria