A ilusão da propriedade intelectual.
Há coisas que só podemos usar excluindo outros desse uso. Se alguém ficar com a minha máquina de calcular eu fico sem ela. Esse problema justifica leis de propriedade que regulem quem fica com o quê. Com objectos de uso pessoal, como carros e máquinas de calcular, é consensual a vantagem de atribuir cada coisa ao seu dono. No outro extremo, com rios ou monumentos históricos, o melhor é geri-los no interesse de todos. E pelo meio as opiniões dividem-se, se deve haver direitos de propriedade sobre estradas ou praias. Mesmo perante o problema de gerir o uso de bens como estes temos de ponderar os custos e benefícios de o permitir só a alguns.
E quando lidamos com algo imaterial o problema nem se põe. É absurdo aplicar às somas a mesma noção de propriedade que aplicamos à maquina de calcular. A máquina é minha; 2+2 não é de ninguém. Por isso o termo “propriedade intelectual” é enganador. Dá ideia que o intelecto tem dono, que ideias, conceitos, conhecimento ou imaginação são propriedade. Mas não é nada disso. A propriedade intelectual é um conjunto de concessões legais que resolvem outros problemas e só são propriedade no sentido de se poder vender ou comprar estas concessões.
A marca registada regula o uso da marca mas não a torna propriedade. Posso escrever “Coca-Cola” as vezes que quiser porque “Coca-Cola” não tem dono. Só não posso vender coisas com a marca Coca-Cola sem autorização porque senão nem o comprador podia confiar na marca nem o detentor da marca podia proteger a sua imagem no mercado. As patentes resolvem outro problema. Quem tem uma boa ideia tem um forte incentivo para ficar calado e explorá-la em segredo. Mas para fomentar a inovação é fundamental que as ideia estejam acessíveis. Para resolver esse problema a patente concede monopólios temporários de exploração em troca da divulgação da ideia. Em ambos os casos o produto do intelecto é de todos e não há razão para que ideias sejam propriedade.
O problema que motivou o copyright foi o risco de investir na impressão industrial de livros e pautas, que seria demasiado grande num mercado livre. Por isso concedeu-se monopólios sobre a distribuição de cada obra. Com o progresso tecnológico aumentaram os métodos de distribuição e foi-se expandindo o copyright. Apesar do problema original ter vindo a desaparecer, o copyright tem se tornado cada vez mais restritivo. E como não se exige registo da obra para conceder este monopólio e se agrupa o copyright com os direitos de autor, criou-se a ilusão que as restrições à distribuição seguem de um direito de propriedade inerente à criatividade intelectual. Mas isto é ilusão.
Em 1968 Dick Fosbury ganhou a medalha de ouro do salto em altura porque inventou uma nova forma de superar a fasquia. O Fosbury Flop (1) ainda é usado por muitos atletas nesta competição. Mas seria absurdo que Fosbury cobrasse “direitos de autor” sobre isto. Se imaginarmos aplicar direitos de propriedade às ideias vemos que o disparate é óbvio em quase todos os casos. No desporto, na matemática, na culinária, na moda, na física, na linguagem, na política, no ensino, etc. As excepções são aquelas para as quais há uma indústria de distribuição. Mas são excepções apenas porque o disparate é menos óbvio e não por deixar de ser disparate. A habituação às restrições impostas pelo copyright disfarça o absurdo da "propriedade intelectual".
Este problema conceptual é importante. A ilusão de direitos de propriedade sobre o intelecto dá uma defesa muito forte a esta indústria. Por muito que prejudique a sociedade, a arte e cada cidadão, se assumirmos que alguém pode ser dono de uma música temos de arcar com o custo de proteger essa propriedade. Mas se compreendermos que patentes, marcas registadas, direitos de distribuição e toda essa “propriedade intelectual” não passam de subsídios e mecanismos de regulação comercial vemos que é preciso adaptá-los às novas tecnologias considerando os seus custos e benefícios para todos nós. E, dessa perspectiva, coisas como patentes de software ou estender o copyright ao uso pessoal revelam-se como o mau negócio que são.
1- Wikipedia, Fosbury Flop
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