Como se Deus existisse...?
Há quem argumente que todos nós agimos como se um deus existisse, e é sempre o deus de quem o argumenta. Recentemente, o Mats escreveu um post, «Toda a Gente Age Como se Deus Existisse»(1), que seria uma bela sátira a este argumento não fosse a infelicidade de ser a sério.
Além de ficar pelo caminho, este argumento nem sequer aponta na direcção certa. Supostamente, o Mats quer mostrar que todos agimos como se o deus dele existisse. Mas o que ele alega é simplesmente que a moral, a lógica e a ciência devem as suas regularidades à criação divina. Mesmo que fosse verdade só demonstrava que tinha havido um deus qualquer. Nada disto sugere que tal deus tivesse criado o universo em sete dias, mandado escrever a bíblia, encarnado no seu filho e multiplicado pão e peixe. Mas nem a crença num deus genérico, de marca branca, o Mats consegue justificar.
«A ciência avança sob a presopusição [sic] de que existe uniformidade e inteligibilidade no mundo material. Mas se [...] o universo é o resultado de “acidentes” cósmicos, porque é que ele exibe evidências de racionalidade, inteligência e ordem, sem as quais a ciência não poderia existir?»
O Mats propõe que o universo é inteligível porque foi criado por um deus inteligente à medida da nossa compreensão. Comparando o tamanho do universo com o tamanho do meu cérebro a ideia parece-me ridícula. Mais razoável é que seja o contrário, que o meu cérebro compreende partes do universo porque foi moldado pela interacção dos meus antepassados com essas partes do universo. Por isso compreendemos quando os outros estão tristes ou contentes, a trajectória da pedra que atiramos e o passar de alguns anos. E por isso não conseguimos imaginar uma galáxia com cem milhões de estrelas, a passagem de dez mil milhões de anos ou a velocidade com que uma molécula de catalase decompõe seis milhões de moléculas de H2O2 por minuto. Não é o universo que é inteligível. É o nosso cérebro que está adaptado a compreender algumas partes, graças ao sacrifício involuntário daqueles que não chegaram a ser antepassados. As outras partes vamos descobrindo a custo e muitas vezes sem conseguirmos sequer imaginar aquilo que sabemos.
O mesmo para a lógica. «Se essas leis da lógica são intemporais, imateriais, abstractas e absolutas, donde vém [sic] a sua natureza absoluta?» Vem de a definirmos assim. Nós podíamos definir verdade como cerejas num Domingo à tarde e uma dedução válida como um encolher de ombros. Mas se o fizéssemos não nos servia de muito a lógica. Por isso temos que criar conceitos com as propriedades certas. E precisamos deles precisamente porque o universo não é fácil de compreender. Para as coisas que percebemos logo não nos faz falta a lógica. Não precisamos de formalismos para descascar uma banana ou jogar à macaca. É quando tentamos ir além daquilo para o qual o nosso cérebro está adaptado que precisamos da muleta da lógica e da matemática. Que nós inventámos.
Finalmente, «No campo da moral o ateu propaga que, uma vez que Deus não existe, a moralidade é o que cada um quiser que ela seja.» Não é bem isso. Nem tudo é igualmente bom ou mau para todos; uma coisa pode ser boa para um e má para outros. Mas isto é um facto, não é um juízo moral. O juízo moral vem depois, quando decidimos o que fazer deste facto. O Mats acha que se deve ignorar o que cada um pensa e assentar a moral naquilo que lhe disseram ser o juízo do seu deus. Eu prefiro dar a todos um voto na matéria, até ao Mats, e fazer da moral uma forma de convivermos com as nossas diferenças em vez de uma desculpa para impingir aos outros os caprichos de um amigo imaginário.
1- Mats, 21-9-08, Toda a Gente Age Como se Deus Existisse