E a treta de quem não a tem.
O Pedro Romano, a quem agradeço, apontou-me para um post do Rodrigo Adão da Fonseca, n’O Insurgente. Com mais umas voltas e despistes pelo meio, «O mito da Razão» reza assim.
«A ideia de que a razão deve ser a fonte única de todas as decisões humanas nega aquilo que é típico do homem, a sua subjectividade, por um lado, e a sua natureza imperfeita, por outro. [...] Sociedades que negam a subjectividade, que querem impor uma razão laica, representam um retrocesso, um desperdício face ao que foram algumas das conquistas civilizacionais mais importantes conseguidas - tantas vezes por linhas tortas - nos últimos séculos.» (1)
A tal «razão laica» não se apresenta como a fonte única das decisões. Não me diz quando me devo coçar, se devo rezar, em que dias comer carne ou peixe ou com quem posso ter relações sexuais. Nem sequer exige que eu tome estas decisões movido por alguma razão. Entre mim e a minha subjectividade o sim porque sim chega bem, e isto é tão típico de outros animais como do homem. O que é mais particular do ser humano é perguntar porquê e responder com razões que se possa partilhar e compreender. A razão não governa a subjectividade em si mas é a melhor ferramenta para conciliar subjectividades diferentes sem desatar tudo à dentada.
É este o papel da razão. Não preciso da razão para comer iogurte, em vez de torradas, ao pequeno almoço. Escolho o que me apetece e pronto. Mas exijo razões se me dizem para comer torradas. E tenho que dar razões se digo para comerem iogurte. A razão não é a fonte de todas as decisões mas é o requisito de todas as justificações. É por isso que a razão deve ser uma para todos, que todos partilhem e compreendam, e não um emaranhado incompreensível de desculpas. Por exemplo:
«A religião segue uma Razão externa, mas dentro das limitações humanas, apenas compreensível no contexto da Fé. A religião escapa da intolerância, quando não esquece que persegue uma dimensão que não é temporal, e está ao serviço do Amor (que no plano terreno representa a chave para a tolerância).»
Esta tretificação da razão é uma chatice e é potencialmente perigosa. O valor da razão é ser universal. Quando perguntamos porquê pedimos ao interlocutor que nos guie pelo seu raciocínio, seguindo um caminho reconhecido por ambos, até encontrarmos um ponto de acordo ou até chegarmos às tais diferenças puramente subjectivas que, mesmo discordando, podemos reconhecer como igualmente legítimas.
Quando se metem com coisas como a «Razão externa apenas compreensível no contexto da Fé» está tudo estragado. Perde-se a distinção fundamental entre o subjectivo e a razão, entre o que nos separa por cada um ter o seu e o que nos une por ser igual para todos. E abre o caminho para que apregoem as suas preferências subjectivas como mais legítimas que as dos outros. Que não se pode comer carne à sexta feira, que se tem de ir à missa no domingo e que o sexo é só para fazer bebés. E que se tem que punir quem discordar. Ou com o castigo eterno depois da morte ou já aqui se puder ser.
A razão não é a única fonte das decisões humanas. A subjectividade é fundamental. Mas se querem que tome as minhas decisões de acordo com a vossa subjectividade têm que me dar boas razões. A vossa fé não chega. É isso que é a laicidade.
1- Rodrigo Adão da Fonseca, 16-9-08, O mito da Razão
Editado 17-9: corrigi "comentador anónimo" porque estava anónimo apenas por capricho do Blogger.
O anónimo era eu. Não sei porquê não consigo comentar neste blogue nos modos nome/URL, OpenID ou Google/Blogger :(
ResponderEliminarLudwig,
ResponderEliminarTenho aprendido bastante com a leitura deste blog. Obrigado pela capacidade de fundamentação e a forma clara como escreves.
Estou com o meu filho de 6 meses ao colo que me está a babar o teclado. O uso da razão obriga-me a terminar já. E a minha capacidade financeira para comprar outro portátil também. :)
À luz do teu excelente texto acho possível poder formular a seguinte ideia: um indivíduo pode ser racionalmente ateu e emocionalmente religioso. Por outro lado parece mais difícil dizer que um indivíduo possa ser racionalmente religioso e emocionalmente ateu.
ResponderEliminarAnónimo,
ResponderEliminarNão sei qual é o problema (javascript inactivado? login do blogger antigo?). Mas uma solução é assinar com um nick qualquer no fim de cada comentário.
Pedro,
ResponderEliminar«Estou com o meu filho de 6 meses ao colo que me está a babar o teclado. O uso da razão obriga-me a terminar já. E a minha capacidade financeira para comprar outro portátil também. :)»
São razões que compreendo e reconheço como válidas. Tenho gémeos; era a mesma coisa só com mais baba :)
António,
ResponderEliminar«um indivíduo pode ser racionalmente ateu e emocionalmente religioso.»
Sim, e penso que é muito comum nos paises mais civilizados (i.e. laicos :)
Muitos dos crentes que eu conheço sentem a sua fé ao nivel emocional mas não se fiam mesmo nela. É como ter para-raios na igreja. E muitos reconhecem que a fé é algo seu, subjectivo, que não serve para justificar que os outros pensem da mesma forma.
E desses crentes não tenho nada a dizer. É uma questão de gosto; cada um com o seu.
O que me faz protestar são estas tretas como a razão só compreensível pela fé e afins. Isto é baralhar tudo. Ou é fé, pessoal e subjectivo, ou é razão e é partilhado e igual para todos.
«Por outro lado parece mais difícil dizer que um indivíduo possa ser racionalmente religioso e emocionalmente ateu.»
Em teoria seria o mesmo. Mas, na prática, só se existissem mesmo deuses ou se as evidências que tivesse justificassem concluir que existem deuses. Aí podia admitir racionalmente que os deuses existem mas decidir ter fé num universo sem deuses (que é muito mais atraente...).
Num universo diferente eu se calhar seria um desses :)
Ludwig,
ResponderEliminarclap clap.
Provavelmente, a melhor definição de laicidade que já encontrei na internet.
Abraços
«Não sei qual é o problema (javascript inactivado? login do blogger antigo?). Mas uma solução é assinar com um nick qualquer no fim de cada comentário»
ResponderEliminarSim, é o que costumo fazer sempre que me lembro. No primeiro comentário escapou-me...
pedro romano
antónio,
ResponderEliminarsei que há quem seja "emocionalmente ateu", e num fórum já tive de ralhar com um deles. Num artigo de Anselmo Borges, que já tinha referido noutro comentário, depois de citar A. Comte-Sponville, escreveu: «De qualquer forma, face a um deus que anula o Homem e amesquinha, só se pode ser ateu. Esse deus não pode existir.» Essa conclusão não se deve à razão, mas sim à emoção.
Ludwig,
este teu artigo que escreveste está excelente.
Pedro Romano,
ResponderEliminarOK. Obrigado não anónimo, então :)
Permitam-me discordar da opinião geral: não acho o artigo do Ludwig excelente (talvez um sofrível seja a classificação adequada. Além disso, discordo do Rodrigo Adão da Fonseca.
ResponderEliminarAntónio Parente,
ResponderEliminar«Permitam-me discordar da opinião geral»
Não precisa de pedir permissão para isso. Qualquer desacordo é permitido. E se for justificado com razões que possamos partilhar não só será permitido como agradecido.
Ludwig,
ResponderEliminarInfelizmente estou com uma vontade irreprimível de concordar com toda a gente. Reparo apenas que com isto
«A razão não é a única fonte das decisões humanas. A subjectividade é fundamental.»
és bem capaz de estar a abrir guerra com toda uma legião de vendedores de filosofia.
"A razão não governa a subjectividade em si mas é a melhor ferramenta para conciliar subjectividades diferentes sem desatar tudo à dentada."
ResponderEliminarMas desatar tudo à dentada até tinha piada :)
beijos
(pois, adorei o post)
A Igreja Católica e a teoria da evolução.
ResponderEliminarMas que saudades enormes que já sentia das opiniões fundamentadas do António Parente ...
ResponderEliminarCristy
«A religião segue uma Razão externa, mas dentro das limitações humanas, apenas compreensível no contexto da Fé. A religião escapa da intolerância, quando não esquece que persegue uma dimensão que não é temporal, e está ao serviço do Amor (que no plano terreno representa a chave para a tolerância).»
ResponderEliminarOK, Ludi,
Explica-me mas como se eu fosse muito mas muito burra por favor.