sábado, setembro 27, 2008

Ciência sem arte.

O Desidério discordou de um detalhe na minha caracterização da filosofia como o esclarecimento das perguntas. «É que a filosofia não se ocupa apenas de fazer perguntas, mas também de teorizar hipoteticamente, quando a teorização científica ou matemática não é possível.» E deu como exemplo uma piada que terminava com a pergunta filosófica «"Se tivesses irmãos, achas que eles gostariam de pizza?"»(1). Mas não é o gosto pela pizza que interessa ao filósofo. Isso seria estimado por coisas como a propensão para alergias na família, intolerância à lactose ou hábitos alimentares. O filósofo está mais interessado em perceber se a pergunta refere irmãos reais num universo paralelo, se é uma implicação trivialmente verdadeira por ser falso o antecedente ou questões desse género. Ou seja, em esclarecer o que se quer perguntar e não propriamente em dar-lhe uma resposta.

Mas admito que a filosofia também dê respostas e que a ciência esclareça perguntas. Por muito diferentes que sejam nos extremos, ciência e filosofia são fases inseparáveis de um processo contínuo. Por isso o objectivo desta distinção é, em parte, salientar o que têm de comum e, principalmente, rejeitar que as distingam pelos assuntos. Como, por exemplo, sugere este simpático comentário do Carlos P.

«Desculpe lá, mas você não sabe o que é a filosofia. Dizer, por exemplo, que a pergunta pela composição das estrelas é uma pergunta filosófica é um disparate. A filosofia pergunta e busca os fundamentos, pergunta pelos porquês e pelo sentido - coisas de que se aproxima da religião [...], e que a diferencia das ciências que procuram (apenas) estabelecer relações (causais) entre fenómenos.»

Filosofia é ciência sem arte. Os grandes filósofos gregos distinguiam-se cabalmente dos artífices. Os filósofos compreendiam as coisas explicitamente, por palavras e argumentos. Os artífices faziam o que faziam sem se saber como. Ninguém percebia porque é que o barro cozia ou o cobre ficava mais duro com um pouco de estanho, mas faziam potes e espadas à mesma. E nem o Leonardo conseguiria explicar como a tinta na Gioconda dá a sensação que a senhora percebeu uma piada que nos escapou. O que quero salientar é essa característica da arte de nos dar coisas notáveis sem percebermos como.

E para os grandes filósofos gregos era ponto de honra que a filosofia não tivesse aplicação prática. Não servia para potes e panelas mas para conhecer o bem, a lógica e de que eram feitas as estrelas. Aristóteles concluiu que as estrelas eram feitas de éter, o quinto elemento, o que lhes dava o seu movimento circular perfeito. Isso era filosofia. Em retrospectiva, é pena que os gregos tivessem tanta aversão ao prático e os romanos tão pouco jeito para a filosofia. Se Aristóteles tivesse sido um engenheiro nas legiões romanas se calhar a ciência tinha começado dois milénios mais cedo.

Ou talvez não. É difícil dizer se a junção da filosofia com a arte se deveu a génios como Leonardo e Galileu ou ao lento acumular de conhecimentos e técnicas. Seja como for, eventualmente percebeu-se que quando o conhecimento teórico permite compreender o que fazemos na prática a filosofia e a arte transformam-se em algo diferente. Em ciência e tecnologia, que avançam em conjunto muito mais que as outras separadas.

A composição das estrelas foi uma questão filosófica e reproduzir as cores do arco-íris com prismas de vidro foi uma arte. Mas depois de Newton explicar a decomposição das cores e Fraunhofer a origem das linhas de absorção a espectroscopia passou a ser tecnologia e a composição das estrelas uma questão científica. A diferença entre filosofia e ciência não está nos temas, nem no objectivo, nem sequer no fundamento da abordagem. Está nas ferramentas disponíveis. Se não compreendemos as artes relevantes para o problema temos que nos restringir à filosofia. À argumentação, à especulação lógica, à análise cuidada das perguntas. Se podemos atacar o problema com arte que, pela compreensão, tornámos tecnologia então podemos também medir, registar, comparar, experimentar. É esse acréscimo que torna a filosofia em ciência.

A religião é diferente, mas também não pelos temas. Deuses e milagres podem ser estudados pela filosofia ou pela ciência, conforme o conhecimento que tivermos. A religião é fundamentalmente diferente porque não procura respostas, julgando que já as tem, e porque as perguntas que faz são meramente retóricas.

1- Desidério Murcho, 21-9-08, Passagens de Nível.
2- Comentário em Treta da Semana: Ao “nível científico”.

5 comentários:

  1. Hoje tenho de lhe dar os parabéns. Está simplesmente inatacável. Escreveu um post à César das Neves. Diz que a religião não tem respostas, pensando que as tem, mas como sabe que a religião faz perguntas (o que contraria a ideia anterior porque ninguém pergunta o que já sabe) diz que é só "retórica".

    Podem criticá-lo de mil maneiras porque basta-lhe apenas uma palavra para responder: "retórica".

    Parabéns ;-)

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  2. Eu não sei é se incluia o Leonardo da Vinci na mesma lista que o Galileu. Por exemplo, apesar de ser um tanto ou quanto místico, o trabalho de Copérnico ainda o torna mais importante que Leonardo.

    A ideia que tenho é que Leonardo era, fundamentalmente, um observador meticuloso mas um tanto ou quanto ametódico na explicação. E tinha mesmo assim uns laivos de misticismo quando, por exemplo, na descrição da anatomia da reprodução, desenha uma ligação directa do cérebro ao pénis - para a alma participar na fecundação ou permitir a passagem de um certo princípio vital - quando nada disso estava lá na realidade.

    Portanto, anatomia sem ciência ou pelo menos com muito pouca. Não sei se Leonardo desempenhou algum papel no desenvolvimento da Ciência de todo ou se representará algo mais do que apenas o desenvolvimento de uma vertente de fidelidade à realidade observável nas Artes e de génio inventivo singular.

    Sobra o Galileu...

    Na realidade, o que Galileu fez foi, pelos seus resultados, demonstrar que havia incursões meramente filosóficas e religiosas onde a confrontação experimental era nula e que por isso se tinha chegado a resultados errados. A Filosofia, pelos vistos, já lá estava sob a forma da descrição aristotélica ainda que, talvez, estática por efeito da tradição religiosa.

    Portanto quando a mistura entre as duas no que toca aos interesses, objectos e temas se torna evidente com Galileu, se há uma diferença ela só pode estar na nova abordagem que ele representa - a experimentação. A fronteira da experimentabilidade marca o início de um território não-científico mas ainda potencialmente filosófico. Mas dentro desses limites a Filosofia não tem de morrer. Será que é uma actividade paralela sobre os mesmos temas ou a mesma? Bem, a Física já foi Filosofia Natural...

    Na minha opinião, o papel mais importante da Filosofia é justamente o de esclarecer conceitos para trabalhar sobre eles. Mesmo que não se cinja a isso.

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  3. Francisco,

    «Não sei se Leonardo desempenhou algum papel no desenvolvimento da Ciência de todo»

    Eu penso que ele trouxe alguma ciência à pintura, por exemplo. Mas ocorreu-me mencioná-lo por causa da sua abordagem, algo invulgar na altura, de tentar estudar explicitamente o que se fazia na prática. Não é que as invenções dele funcionassem, mas tentou, pelo menos :)

    «Na minha opinião, o papel mais importante da Filosofia é justamente o de esclarecer conceitos para trabalhar sobre eles. Mesmo que não se cinja a isso.»

    Sim, também acho. Uma vez esclarecidas as ideias é preciso meter as mãos na massa para ver se acertam ou falham. E aí é o que se chama ciência.

    Mas o que mais me preocupa é a treta de dizer que as origens do universo são do domínio da filosofia e religião enquanto a ciência lida só com a causalidade ou coisa assim. Como se fosse uma questão de coutadas.

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  4. Não tenho tempo para responder mais afincadamente, mas aconselho vivamente a todos os interessados por este post, incluíndo o autor, a verem o episódio The Backbone of the Night da série Cosmos do Carl Sagan.

    Ele explica com claridade invejável como é que a ciência grega separou a matéria do espírito, quais as consequências nefastas disso para a ciência, para a política, para a religião...

    Todo o episódio é revelador.

    Procurem-no no Youtube, acredito que ele deve estar disponível.

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  5. Our track record in predicting those events is dismal; yet by some mechanism called the hindsight bias we think that we understand them. We have a bad habit of finding 'laws' in history (by fitting stories to events and detecting false patterns); we are drivers looking through the rear view mirror while convinced we are looking ahead.

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