quinta-feira, dezembro 27, 2007

Demarcações.

Vou aproveitar que o Desidério ainda não fez a jogada dele para apontar um defeito na minha caracterização de ciência. Dizer que visa descrever correctamente a realidade não ajuda a demarcá-la da muita treta que há por aí a fazer-se passar por ciência. Seria preciso determinar objectivamente se uma actividade progride nesse sentido ou não, e isso requer muito mais detalhe.

E é importante demarcar a ciência da pseudo-ciência porque essa demarcação afecta o financiamento da investigação, a educação e a forma como são recebidas certas notícias e publicações. Além disso, há cursos e serviços de astrologia, licenciaturas em medicina tradicional, teólogos a pronunciar-se acerca da legislação sobre a reprodução humana, e é importante determinar quem é que tem legitimidade de ser reconhecido como um perito, e em quê. Mas não é isso que eu quero resolver nesta discussão. Esse problema ataco-o um bocadinho por semana e uma treta de cada vez.

O que quero com esta ideia vaga da ciência é ultrapassar outras demarcações que estão a mais. Eu trabalho na «Faculdade de Ciências e Tecnologia», nome que admite haver uma tecnologia mas insiste em várias ciências. O leitor Pedro Galvão comentou que «a ciência esgota a racionalidade» é uma afirmação que «não é científica -- é uma tese filosófica sobre a racionalidade. Mas, se não é científica, então, pelo que diz, não é racional». Não vejo porque é que ser filosófica impede que seja científica, ou vice-versa. Um leitor anónimo que assina “curioso” comentou que «o método cientifico é extremamente limitado uma vez que exige um controlo absoluto de todas as variáveis que poderão influenciar um determinado fenómeno», que é mais um mal entendido, fruto do excesso de zelo em demarcar a ciência.

Isolar a ciência pelos temas ou técnicas perde o que é fundamental na ciência. Faz sentido fazer experiências quando se pode e, das outras vezes, amanhar-se de outra maneira. A matemática é uma linguagem poderosa, mas a lógica e a linguagem natural também servem quando é preciso. E é sempre preciso. Mesmo os modelos matemáticos da física têm unidades que significam coisas não matemáticas como tempo, energia, distância, etc. A ciência pode ser mais especulativa se não há dados suficientes e mais argumentativa quando há várias hipóteses suportadas pelas observações. Chama-se filosofia nesses casos, mas não deixa de ser ciência.

Por isso não faz sentido separar “ciências” em empíricas e não empíricas, em qualitativas ou quantitativas, ou mesmo separar a filosofia da ciência. Estes termos descrevem as ferramentas com as quais se aborda um tema num dado momento mas não dizem nada de fundamental acerca da ciência enquanto forma de adquirir conhecimento.

O fundamental na ciência é tentar descrever a realidade como ela é. Os detalhes, os processos, as regularidades que houver. O que quer que seja. A realidade pode ser átomos e o vazio ou pode ser deuses e demónios, mas para a descrever vamos ter que usar observação, raciocínio, e tudo o mais que vier a jeito. E é isso que é ciência.

2 comentários:

  1. Apreciei a ênfase no "tentar". A isso acrescentaria eu a necessidade de a ciência não se esgotar na tentativa, dando por adquirido o que alcançou e com isso deixar-se arrastar em derivas dogmáticas.

    Já tenho mais dúvidas quando se trata de generalizar a designação a qualquer produto de um método determinado. O hábito faz o monge ?

    ResponderEliminar
  2. Será que o que "há por aí a fazer-se passar por ciência", a religião e pseudo-filosofia é capaz de dizer algo como: «para apontar um defeito na minha caracterização de ciência»?

    «filosófica impede que seja científica, ou vice-versa»
    Que tal a Filosofia da Natureza?

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.