A ciência.
Há séculos que demarcar a ciência é um problema na filosofia. A ciência é a maior fonte de conhecimento mas ninguém sabe exactamente o que é. Eu tentei resolver o problema com uma frase, «ciência é usar informação para obter descrições correctas e detalhadas», mas segundo o Desidério ainda não foi desta (1). Os filósofos são mesmo complicados...
Vou simplificar a minha tarefa reduzindo o âmbito do problema, ignorando os aspectos sociais e psicológicos da ciência. Como este que o Desidério referiu ao escrever que a minha definição falha porque «qualquer armazém de peúgas tem nos seus inventários uma descrição correcta e detalhada das peúgas que tem em armazém, mas não dizemos que o armazenista é um peugólogo.» Não dizemos. Mas se fosse com vinho já era enólogo. Admito que a sociedade reconheça como ‘ólogo alguém que não faz nada de científico, como o teólogo, e não reconheça o peugólogo, cujo trabalho é mais científico. Sempre descreve coisas que existem, mesmo que sejam coisas que desaparecem de forma sobrenatural.
Esclareço também que por “descrição” não me referia apenas à descrição de um estado de um sistema mas aos modelos que descrevem a realidade, em oposição àqueles que exprimem desejos (os normativos). Neste sentido as explicações são também descrições, e das melhores que há. Descrevem implicitamente os estados do sistema, porque podemos deduzi-los da explicação, e descrevem explicitamente como o sistema muda de estado. Lineu fez ciência quando descreveu a organização da bicharada. Darwin foi mais longe quando descreveu o processo pelo qual a bicharada se organiza.
Concordo que não se deve confundir o produto da ciência com o processo da ciência. Não é verdade que, na forma como eu entendo ciência, a «física de Newton não seria ciência». Seria, e foi. Newton deu uma descrição mais correcta e detalhada que as anteriores e deu um passo importante no caminho para descrições ainda mais correctas e detalhadas. A ciência é este processo que visa compreender tudo em todo o detalhe e sem incorrecções. Mas não defendo que já tenha atingido esse objectivo, nem sei se alguma vez o fará. O importante, para ser ciência, é tentar.
Assim, não é útil delimitar a ciência a bisturi, zero ou um. É um contínuo. Ninguém consegue dedicar 100% do seu tempo e pensamento ao progresso científico. E ninguém passa a vida sem tentar formar ideias correctas e detalhadas acerca de algum aspecto da realidade. Nem que seja peúgas. O que temos que avaliar é quão científica é uma actividade em vez de procurar uma fronteira bem definida. Algo como, se bem entendo, propôs Lakatos. Avaliar se a investigação visa os objectivos certos.
Por estas razões sou contra que se demarque a ciência por um método ou assunto. O que caracteriza a actividade científica é visar os melhores modelos da realidade e usar as ferramentas que tiver à disposição para se aproximar desse objectivo. Não se pode fazer experiências com o Afonso Henriques, mas também não se pode fazer experiências com supernovas. E pode-se testar experimentalmente métodos de construção de pirâmides ou de fabrico de ânforas. Não vamos expulsar da ciência a história por lidar com vestígios com séculos de idade. A astronomia lida com acontecimentos muito mais antigos, e muito mais difíceis de reproduzir no laboratório.
Reconheço uma diferença importante entre disciplinas como a física e a química, por um lado, e a filosofia ou a história por outro. É praticamente impossível fazer carreira como físico sem fazer ciência, enquanto me parece relativamente fácil ser um profissional da história ou da filosofia sem dar importância aos modelos correctos e detalhados da realidade. Mas há filósofos e filósofos, e há aqueles que tentam fazer a melhor ciência possível com temas difíceis como a mente humana e a natureza da realidade ou do conhecimento.
Concluindo, faz ciência quem almeja formar ideias correctas e detalhadas da realidade e usa para isso os recursos ao seu alcance. Melhor ou pior, deixando uns fins de semana para a família ou para corrigir trabalhos e exames, em temas mais populares ou menos conhecidos, é ciência se o objectivo é esse e se o esforço é nesse sentido. Quem vira costas à realidade e se agarra a uma crença ou preconceito não está a fazer ciência. Talvez em alguma dimensão metafísica isso seja racional, mas neste cantinho parece-me um erro.
1- Desidério Murcho, 26-12-07, O que é a ciência?
Eu adoro ler os dois, por isso estou a adorar o debate.
ResponderEliminarContinuem!
Eh!Eh!Eh!
Eu já ando um bocado indisposto com os excessos natalícios...
ResponderEliminarE depois encontro isto:
«Sempre descreve coisas que existem, mesmo que sejam coisas que desaparecem de forma sobrenatural.»
;)
De facto, um peugólogo seria bem vindo, se trouxesse alguma luz racional a esse fenómeno inexplicável do desaparecimento das meias...
Com um humor destes, e apesar de o tema ser sério e eu ter montes de coisas para dizer sobre ele, é impossível comentar algo de sério agora. Vou ali beber mais uma águinha das pedras...
Um abraço de Boas Festas!