quarta-feira, setembro 26, 2007

Ética, parte 5: Morte e sofrimento.

Finalmente decidi acabar este post por causa de uma pergunta do Pedro Dias: «Alguém diz que matar é mau só porque Deus diz que é? Ou existem razões apenas humanas ligadas a esse julgamento?» Se alguém diz que é só por causa de Deus, não sei. Mas o Vaticano alega constantemente que a vida humana é sagrada, como se isso resolvesse o problema.

O João Vasco propôs algo diferente: «Então o que é que nos diz que algo é bom ou não? Fundamentalmente a nossa intuição ética, moldada pela nossa cultura e influenciada pelos valores da nossa sociedade.». Sim, isso disse a muita gente que a escravatura era aceitável ou que o marido podia bater na mulher. Mas disse mal. Não é boa ideia guiarmo-nos pelos preconceitos da nossa cultura, sejam religiosos ou não.

O melhor é pô-los de parte e usar como valor fundamental o interesse dos afectados. Em vez de fazer aos outros o que queremos que nos façam a nós, fazer-lhes o que eles preferem. A ética de causar sofrimento é um exemplo fácil.

É mau torturar porque faz sofrer. Não importa se a cultura do torturador diz que é uma coisa boa ou se a cultura de quem assiste diz que é um espectáculo maravilhoso. Nem importa a espécie de quem sofre, ou se o consideram sagrado ou não. A tourada, por exemplo, é um mal em todas as culturas enquanto causar sofrimento ao touro. É o touro o mais lesado com a brincadeira. A cultura não sente, por isso pouco importa.

A ética de matar é mais complicada, e dá origem a alguma confusão. Alguns dirão que não havendo problema em matar o touro para comer também se pode picá-lo com ferros primeiro. Talvez fique mais tenro. Mas também aqui compensa considerar a experiência subjectiva do touro.

Provavelmente, o touro não tem consciência da sua vida como um todo. Não se recorda de quando era novo, não pensa no que vai fazer quando for velho, nem se reconhece como um ser que dura no tempo. Posso estar enganado, mas pelo que sabemos o touro vive cada momento sem uma narrativa que ligue as suas experiências naquilo que nós chamamos vida.

Se assim for, cada episódio tem para o touro qualidades semelhantes às que tem para nós. A dor dói-lhe, o medo assusta-o, e torturar um touro é eticamente equivalente a torturar um ser humano. Mas a vida do touro, para o touro, é muito diferente da vida de um humano para o humano. O humano sente a sua vida toda como um percurso do passado pelo presente e para o futuro, e essa vida como um todo tem um grande valor para si.

Por isso proponho que matar sem sofrimento é aceitável se quem morre é como o touro. Não lhe tiramos nada que ele sinta ser de valor. Mas não é aceitável se quem morre é como o ser humano. Não por ser humano, sagrado, ou pela minha cultura, mas porque para este a vida tem valor como um todo, para além do valor de cada momento. E nesta categoria devíamos incluir os primatas antropóides, os cetáceos, e talvez o elefante ou outros animais cuja neurologia e comportamento sugiram partilhar esta característica.

Parece-me que esta tem sido a direcção do progresso na ética. Largar as regras ad hoc de favorecer os da nossa tribo ou costumes, ou da nossa espécie, ou mesmo os que estão vivos agora, e considerar como valor fundamental a subjectividade do outro. Daquele que afectamos. Mesmo que seja um animal ou gerações futuras que vão levar com os sacos de plástico e outras porcarias que espalhamos hoje por todo o lado.

Infelizmente, os velhos hábitos ainda perduram. Por causa da vida humana ser «sagrada» não se pode criar embriões em laboratório. Como se não ser criado fosse muito melhor que viver como um punhado de células durante uns dias. Por causa da «dignidade» da pessoa querem negar a uma mulher solteira assistência médica para engravidar. Como se nascer sem pai fosse pior que nunca existir. Mas esta tendência para se guiar por abstracções arbitrárias vai gradualmente vai dando lugar a uma ética mais sólida, em que os valores fundamentais são os valores de cada um em vez dos ditames da cultura ou religião.

Episódios anteriores:
1: Subjectividade.
2: Fundamentos.
3: Deus?... Para quê?
4: Apelo à natureza.

16 comentários:

  1. «O João Vasco propôs algo diferente: «Então o que é que nos diz que algo é bom ou não? Fundamentalmente a nossa intuição ética, moldada pela nossa cultura e influenciada pelos valores da nossa sociedade.». Sim, isso disse a muita gente que a escravatura era aceitável ou que o marido podia bater na mulher. Mas disse mal. »

    É exactamente o que eu penso.

    Quando disse isso a respeito da nossa intuição não foi considerando que era assim que deveria ser.

    Aliás, esclareci isso mesmo quando a Joaninha objectou que muita da nossa intuição foi influenciada pela religião. Foi, de facto, mas creio que não foi a parte boa...

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  2. Ludwig,

    Se eu, devido a alguma doença, não tivesse a capacidade de fazer a ligação dos vários episódios da minha vida e vivesse no presente, sem perspectiva do futuro, seria uma potencial morte-aceitável?

    O Touro terá prazer, e dor, assim sendo, mesmo não tendo consciência disso, tem algo a perder; e o touro opta pelo prazer quando pode.

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  3. Ludwig,

    A ética dumas pessoas diz que é ético fazer-se um aborto, e minha ética, e de outras, é que não é ético fazer um aborto.

    Ambas estão certas? Não há uma ética absoluta? Então é o relativismo total, eu tenho a minha ética, tu tens a tua, tasse bem!

    A nossa sociedade diz que é ético abortar, mas para mim não é, o que posso fazer? Quero mesmo que aqueles bebes não sejam mortos, mas corro o risco de "impôr" a minha ética aos outros...

    Pedro Silva

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  4. Mário Miguel,

    É verdade que o touro dá valor a cada momento, mas não como parte da sua vida. Ou seja, tanto faz ser um touro como outro, um momento como outro. É como se cada momento fosse uma vida separada das outras. Nesse caso matar o touro não é destruir uma vida (subjectivamente, para o touro) mas impedir as muitas vidas curtas daquele organismo. Tem algum valor, admito, mas a vida toda vale mais que a mera soma dos momentos que a compõem.

    E se um organismo como o nosso tem uma doença que faça perder a concepção de vida, e passe apenas a usufruir de cada momento sem poder conceber a vida como um todo, então aceito perfeitamente que não há grande problema em matá-lo. Para ele, claro. Pode bem ser perturbador para a família ou não querermos arriscar autorizar tal coisa caso seja um problema reversível, etc.

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  5. Pedro,

    o que proponho é o contrário. Os valores são todos subjectivos, mas há sujeitos que são (objectivamente) mais afectados por uma acção que outros, e são os valores subjectivos desses sujeitos que devem ter mais peso.

    Uma vez que aceite o facto que os valores são subjectivos e o juizo de valor que é contar mais os valores dos mais afectados, deixa de haver esse problema de cada um ter a sua ética. Pode ser a mesma ética para todos tendo em conta os valores de todos.

    No caso de uma gravidez que resulte de um acto sexual voluntário e que não traga problemas de saude, o mais afectado é o abortado. E é claramente do seu interesse que o deixem viver. Por isso sou contra que lhe reduzam 70 anos de vida (em média) apenas por conveniências pessoais ou financeiras.

    Mas há muitas situações diferentes, e pode ser que a grávida esteja a ser suficientemente afectada ou menos responsável pela situação para justificar uma decisão diferente.

    O principal é que não seja alguém de fora a decidir, ad hoc, que como X é sagrado não se pode fazer Y seja em que situação for. Isso é que é usar os valores de um em detrimento dos valores dos outros.

    O único valor que se justifica impôr é o respeito por todos os valores, e os conflictos deverão ser mediados com esse objectivo.

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  6. Ludwig,

    A questão de sentir o todo, e não apenas os momentos tem que ser reconsiderada da tua parte.
    A meu vêr, não é razão válida para justificar a vida e a morte.
    O embrião também não tem a noção de continuo, por isso não sente o que lhe poderia acontecer no futuro, e se o desempate é o que a mão sente (tal como os familiares do doente sem noção de continuo), estamos sujeitos a que o aborto seja eticamente legitimado.
    Eu defendo que os processos naturais sejam respeitados. Mata-se para alimentação ou por defesa, e não por capricho cultural. Por isso acho inadmissivel a tourada, mas, escapa-me onde é que foi desenterrada essa treta de torturar o bicho sem o matar, como se a morte na arena fosse o pior que o bicho passou. A tortura que é a tourada não tem nada de eticamente aceitável, matem ou não matem o bicho.
    Sobre o aborto, tenho uma visão diferente da tua, mas, por um motivo especifico. Acho que o que foi legalizado é um menor dos males. Em primeiro, porque os pobres não têm menos direitos que os ricos, e esses, quando chega a hora, saltam a fronteira e resolvem a questão. Por isso a condenação que havia nem era ao cidadão nacional, mas, apenas ao território. A única forma de implementar o que existia seria um teste hormonal feito a todas as mulheres nacionais que quisessem sair do país, que seria repetido à entrada. Quem saisse grávida e voltasse "limpa" levava cadeia! PArece-te razoável? A mim não. Por isso, acaba-se com a hipocrisia, e passa a ser igual para todos.

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  7. António,

    «Vida» tem dois significados diferentes, um biológico e outro subjectivo. Biologicamente, a vida de uma bactéria ou mosca é tanto vida como a nossa. Mas subjectivamente nem a bactéria nem a mosca têm uma vida. Nem o touro.

    A vida, neste sentido, não é apenas o processo biológico nem é apenas um instante. Eu não teria vida, subjectivamente, se tivesse a cada instante uma experiência isolada do passado e do futuro. Subjectivamente, estou vivo porque tenho esta capacidade de compreender as minhas experiências em conjunto.

    Quanto ao embrião, o facto de ainda não a ter é irrelevante. Se lhe retirarmos os olhos antes de estarem formados não lhe tiramos a visão nessa altura porque não a tem ainda, mas tiramos-lhe a capacidade de a desenvolver, que é igualmente importante. O mesmo se passa com a vida. Ele ainda não está vivo, neste sentido mais importante, mas está a construir o que precisa para ficar vivo.

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  8. Ludwig, parabéns por mais este post - pela qualidade e pela coragem.

    Em relação aos touros, gostaria só de dizer o seguinte: se eu fosse touro quereria que existissem touradas. Sem touradas ninguém vai criar touros, não é? Eu, como macho, estou programado para viver a vida como um desafio, não como um paraíso de tranquilidade. Os touros têm uma vida de liberdade, mil vezes melhor que a das desgraçadas vacas, muitas vezes criadas em pátios de cimento e a rações, como eu já vi. Mil vezes ser touro!

    Acho que a opinião das pessoas sobre este e outros assuntos tem sobretudo a ver com o que é melhor para elas e não para os animais. Incomoda-nos ver o sangue do touro e queremos acabar com esse incómodo nosso. Por respeito à nós e à ideia que fazemos de nós. Por nós, não pelos animais.

    Mas se existisse outra maneira de haver criação de touros sem touradas, óptimo!

    Quanto à vida embrionária: no meu blogue vou começar a mostrar como surgiu a vida na Terra. Até tremo. Para a semana pode começar a ver.

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  9. Ludwig,

    Eu sou pouco dado a subjectividades, por defeito de pensamento, :-) por isso tenho alguma dificuldade em separar a questão do "poder vir a ser" do "talvez venha a ser", e por diante.
    Não sinto nada por insectos, e tirando a utilidade que podem ter (desfazer cadáveres, arejar o solo, conversão biológica de compostos, etc.) a minha visão é de extreminio. Mas, no caso dos mamiferos, não acredito na questão do pensamento descontinuo. Até os touros reconhecem experiencias passadas, e qualquer mamifero consegue distinguir um individuo especifico no meio de uma multidão, e por isso têm que ter capaciadade de associação das experiencias cognitivas do passado, mesmo que não tenham planos especificos para o futuro (este argumento da tua parte é perigoso, pois muita gente não sabe mesmo o que quer da vida e por isso tem tanta persepção do futuro como um insecto. Exterminamo-los?) :-)
    A percepção de vida de um embrião é muito menor que qualquer mamifero vivo, por isso, as coisas têm de ser vistas (creio eu) pela perspectiva utilitária das mesmas. Mata-se se o prejuizo de manter vivo for maior, que o prejuizo de perda dessa vida.
    Um sociopata/psicopata que vá matar, vale mais morto que vivo, se a questão for a vida dele ou a de uma vitima aleatoria, no caso de não se conseguir controlar o dito de outra forma. O mesmo se pode extrapolar para outros animais. Um boi não mata ninguém se não se expuser ninguém a esse risco acidentalmente. Confinado numa exploração, só quem lá vai consciente do que vai fazer, ou alguém que entre ilegalmente no respectivo espaço é que estará em risco. A carne do boi é melhor se ele não for torturado, pois não liberta hormonas "inuteis" que modificam o sabor da carne, por isso nem em termos alimentares se justifica matar o bicho ou torturar o mesmo numa arena.

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  10. Ludwig,


    O touro, provavelmente, terá essa concepção da vida semi-presa no presente (muita dúvida neste ponto), mas pelo menos não deverá ser absoluta, ele terá memória. Se ele se foi à arena, aprenderá as manhas, por isso não o colocam lá de novo; admito no entanto que o terá um "nível de consciência" (se é que posso usara expressão) muito primário que estará associado à aprendizagem; instinto etc... Uso o termo como algum abuso de linguagem. No entanto privas o touro desses presentes sucessivos, ele não sofrerá com a ansiedade de perder o futuro, nem recorre à nostalgia, mas no entanto ficará privado das recompensas que ele subjectivamente, de forma inequívoca, dá valor, e privares "alguém" de algo que valoriza e que não prejudica terceiros, é eticamente condenável.

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  11. Ludwig,


    O touro, provavelmente, terá essa concepção da vida semi-presa no presente (muita dúvida neste ponto), mas pelo menos não deverá ser absoluta, ele terá memória. Se ele se foi à arena, aprenderá as manhas, por isso não o colocam lá de novo; admito no entanto que terá um "nível de consciência" (se é que posso usara expressão) muito primário, que estará associado à aprendizagem; instinto etc... Uso o termo como algum abuso de linguagem. No entanto privas o touro desses presentes sucessivos, ele não sofrerá com a ansiedade de perder o futuro, nem recorre à nostalgia, mas no entanto ficará privado das recompensas que ele subjectivamente, de forma inequívoca, dá valor, e privares "alguém" de algo que valoriza, e que não prejudica terceiros, é eticamente condenável.

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  12. Ludwig,

    Por favor, apaga o meu comentário
    das 1:24 PM, bem como este.

    Obrigado.

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  13. Ludwig:
    Não tornei a dar notícias porque tenho andado cheio de coisas para fazer. Ainda nem sequer tive tempo para dar troco a uma parte da resposta que deu ao comentário que lhe fiz mais recentemente. Mas fá-lo-ei ainda no próximo fim-de-semana.
    O que, porém, quero adiantar desde já é que o Ludwig se mantém na linha do pai daquele puto da JSD, que referi num comentário anterior. Este texto é óptimo e comecei a lê-lo com muito agrado... até ao último parágrafo, onde volta tudo ao mesmo!
    Mas eu já volto!

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  14. Olaáá Ludwig,

    Compreendo, mas não concordo com a maneira como avalias a vida do Touro.
    É certo que o touro não faz planos para o futuro com a vaquinha, nem se senta á lareira a contar as histórias da sua infancia.

    "É como se cada momento fosse uma vida separada das outras. Nesse caso matar o touro não é destruir uma vida (subjectivamente, para o touro) mas impedir as muitas vidas curtas daquele organismo."

    O touro aprende com as experiencias por que passa e como tal tem memoria do passado, há uma linha continua que une essas semi vidas. Se pensares bem de outra forma não poderia sobreviver.
    Claro que o que ele não tem é consciencia de si como individuo. Como ser único e distinto. E ai estamos de acordo que a vida dele terá menos valor do que a vida de um ser que tem consciencia dele proprio. Que se sabe reconhecer como um ser distinto dos outros.

    O que nunca tem justificação ou é ético é que um ser que tem consciencia de si proprio e do mundo que o rodeia, torture violentamente outro ser (independentemente de este ter essa mesma consciencia ou não)só para o seu belo prazer

    Claro que isto tudo também pode ser resultado do cheiro a tinta que está neste escritório, porque o teu maninho e companhia resolveram pintar as cadeiras somado com a ressaca do roubo de ontem ;)

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  15. Joaninha

    Estou a ver que o prestígio dos pintores de construção civil está em alta. Imagina que até o meu pai ficou impressionado com o trabalho que eu fiz!

    Assistente de electricista também é uma profissão em alta. Mulher a dias também... mas dorme-se pouco!

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  16. Mails de protesto para os endereços:

    provedor.telespectador@rtp.pt

    e

    patricia.chaves@rtp.pt

    É realmente vergonhoso que uma empresa pública desta dimensão demonstre tão
    cinicamente um total desprezo pela sensibilidade de alguns (muitos)
    utentes.

    Não se entende por que razão a RTP insiste em transmitir tais espetáculos,
    se for preciso, em pleno horário nobre. Para os seus defensores, penso que
    bastam os espetáculos vistos in loco, onde a entrada é livre para quem
    quiser comprar bilhete. Porque têm de continuamente sujeitar as nossas
    crianças, jovens e indivíduos conscientes em geral a tal degradação? Porque
    temos nós contribuintes de pagar por algo que nos repugna e que devia
    repugnar qualquer decisor político ou institucional?

    Passem a mensagem e enviem um mail!

    -------------------------------------------------------

    Dia 4 de Outubro é o Dia Mundial do Animal.

    Nesse dia a RTP1 vai transmitir mais uma tourada.

    Não! às touradas, e muito menos num dia em que é suposto lembrarmo-nos de
    dar um tratamento condigno a todos os animais sencientes. Também se pode
    protestar por aqui:

    http://www.rtp.pt/wportal/grupo/provedor_telespectador/contactos.php

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