domingo, outubro 31, 2010

Treta da semana: de tudo um pouco.

Aristóteles escreveu sobre quase tudo, da física à ética. Hipátia de Alexandria foi uma matemática, filósofa e astrónoma de renome. Tendo em conta que era mulher, deve ter sido verdadeiramente excepcional para que lhe reconhecessem algum mérito. Leonardo da Vinci foi um artista da ciência e um cientista da arte. Einstein deu contributos importantes à teoria atómica e à mecânica quântica, além de ter concebido a teoria da relatividade. John von Neumann foi um nome de relevo em campos tão diversos como a teoria de conjuntos, computação, economia e modelação de explosões. Pessoas como estas há poucas e, até recentemente, julgava que Portugal não teria sido agraciado com nenhuma. Mas, graças à Heloisa Miranda e ao seu canal Sapo Zen, descobri o José Antunes.

José Antunes (1) é o autor do livro “Consciência: Um Percurso Singular”, participou no I Congresso Internacional de Sincronização com o Planeta Terra e no congresso “Jornadas Quânticas” por Amit Goswami. Fez também o curso da “Parapsicologia enquanto Estudo da Comunicação Anómala”, e vários cursos no Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia e também no Centro de Altos Estudos da Consciência. E tem uma «Pós-Graduação em Psicologia da Consciência na UAL, pela ALUBRAT». Ou seja, o curso decorreu nas instalações da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), mas foi concedido pela prestigiada Associação Luso-Brasileira de Psicologia Transpessoal (ALUBRAT).

Foi com base nesta formação diversificada, «no âmbito da sua pesquisa sobre a psique humana», que José Antunes contribuiu para elucidar a natureza da consciência e criar poderosas ferramentas conceptuais para lidar com este fenómeno até agora tão elusivo. No vídeo abaixo deixo a explicação pelas palavras do próprio, mas queria salientar algumas das suas descobertas mais importantes.

Primeiro, consciência é uma energia. Isto dá imenso jeito porque assim podemos medi-la em joule e sabemos que é igual ao produto da massa pelo quadrado da velocidade da luz. Em segundo lugar, nós somos consciências e, conclui o José Antunes, por isso somos um espírito. Em terceiro lugar, por «um ciclo reencarnativo vamos ganhando cultura de uma alma porque vamos mexendo nas energias do amor». Mas o que é a alma? perguntará o leitor. O José esclarece isso também. «A alma é, digamos, fracções do amor... entra connosco... que nós conseguimos adquirir.»

(Deixo só a ligação para o vídeo, porque não parece haver maneira de o calar se o incluo aqui)

Tem de tudo. Tem amor, energia, consciência, alma e espírito. Penso que só lhe falta a imanência transcendente, ou a transcendência imanente, para ter uma teologia completa. Mas, confesso, não consegui ver os vídeos todos (2). Se calhar também tem disso, ou algo equivalente.

Tenho defendido aqui que uma diferença importante entre o conhecimento e as várias especulações infundadas que por ele se fazem passar é que o primeiro forma um todo consistente enquanto as últimas vão cada uma para seu lado, desligadas das outras e muitas vezes contradizendo-as. No entanto, em certos aspectos sinto que tenho de rever a minha posição acerca disto. Tenho de admitir que, pelo menos no que toca ao discorrer prolongado em verborreia sem sentido, a treta parece cada vez mais ser toda o mesmo.

1- Consciência 21
2- Sapo Zen, Psicologia da Consciência 1

sábado, outubro 30, 2010

Explicação criacionista.

O Mats escreveu há dias sobre a migração dos pássaros e o truque de voarem em V para se cansarem menos. Muitos pássaros migram em bandos nesta formação porque cada um aproveita a corrente de ar ascendente criada pelo pássaro à sua frente. Segundo o Mats «Não há explicação naturalista para a migração. Como é que um ateu, desesperado por uma explicação naturalista, pode justificar a necessidade de se voar em V? Esta estratégia tinha que ser bem conhecida ANTES de se embarcar numa viagem de 4000km. Como é que a ave aprendeu princípios de geometria e aerodinâmica?»(1)

A explicação naturalista para a migração é bastante óbvia. Basta ver que as populações migratórias migram para sobreviver, para escapar à falta de alimento, predadores ou temperaturas extremas. A selecção natural encarregou-se de eliminar os pássaros que optassem por morrer de fome ou frio em vez de voar para outro lado. E se é preciso voar em V, então aqueles que teimassem voar noutra letra deixariam menos descendentes. De resto, não é difícil descobrir esta formação porque, mesmo sem licenciatura em aerodinâmica ou teologia aplicada, os pássaros sentem que lhes custa menos voar quando se põem atrás da ponta da asa do pássaro à sua frente. Por isso, «Não há explicação naturalista» é apenas a forma caracteristicamente modesta do Mats exprimir a sua ignorância.

E esta alegação sugere haver outro tipo de explicação. Curioso para saber que explicação seria essa, pedi ao Mats que elucidasse o mecanismo pelo qual terão surgido estas características e perguntei se os pássaros do seu exemplo já migravam 4000km no paraíso. Mas o Mats ignorou esta pergunta e disse não saber quais são os mecanismos. A sua explicação também não adiantou nada: «Por design inteligente sobrenatural.»(2)

O problema disto é que diz o mesmo que se fosse “por vontade do Elvis” ou “pelo poder de Grayskull”. Sendo impossíveis de testar, não se inferindo delas nada acerca do que se observa, não se justifica escolher uma em detrimento das outras. E a única coisa que o Mats diz saber é que o pássaro migra 4000km porque foi desenhado para isso por um ser inteligente, justificando-se com esta analogia:

«Não sei quais foram os “mecanismos” que Deus usou, nem sei quais os “mecanismos” que os programadores do WordPress usaram para criar este serviço. No entanto, embora eu não saiba os mecanismos, isso não me impossibilita de verificar que tanto os pássaros como o WordPress tem causas inteligentes.»

No entanto, o Mats sabe usar um teclado, a menos que escreva os textos pelo poder da oração. E basta ler os ficheiros php do WordPress para ver exactamente o que os programadores escreveram. Mesmo que não seja programador, o Mats conhece algo do mecanismo pelo qual o WordPress foi criado. Além disso, o Mats percebe o propósito das características do WordPress. Por exemplo, percebe que o botão “Publish” foi criado com o propósito de publicar o texto. É por isso que o Mats consegue verificar a hipótese da criação inteligente do WordPress. Porque a assume nessa hipótese algo acerca de como foi criado e para que fim.

São estes aspectos da hipótese que servem para distinguir entre o que tem origem natural e o que surge por artifício. Sei que o desenho de um floco de neve tem origem inteligente mas que o floco de neve surge por processos naturais porque tenho uma ideia de como se pode fazer um desenho, e do seu propósito, e uma noção de como a água congela sem qualquer propósito. Se vejo um xamã a dançar e pedir chuva percebo a intenção mas, sem indícios de um mecanismo pelo qual a dança faça chover, mesmo que eventualmente chova não vou concluir que foi por causa dele. E se bem que tenha ideia de como se pode esculpir uma pedra para parecer um seixo, quando encontro seixos à beira do rio presumo que resultem da erosão pela água porque não vejo que haja um propósito para criar esses seixos deliberadamente.

Com a desculpa do sobrenatural, a hipótese do Mats não esclarece o mecanismo da alegada criação inteligente. Além disso, a criação inteligente implica um propósito, e o Mats também não explica porque é que o seu deus obrigou o pássaro a migrar 4000km duas vezes por ano. Em contraste, a selecção natural esclarece a evolução desse comportamento por um mecanismo que dispensa inteligência ou propósito. E é uma hipótese que podemos testar, constatando que os pássaros migram naquelas circunstâncias em que a migração é necessária à sua sobrevivência.

O Criacionismo é um argumento por ignorância. Não fazem ideia de como surgiram os seres vivos. Não fazem ideia do propósito das varejeiras, dos bolores ou de obrigar os pássaros a migrar. Nem querem saber. Vangloriam-se da ignorância como se fosse uma virtude. E daqui inferem que tudo foi criado pelo menino Jesus. Fingem que inferem, porque, obviamente, da ignorância nada disto se conclui. É apenas para disfarçar os preconceitos a que chamam fé. Porque, por esta mesma falta de razões, também deviam concluir que a malária, o cancro e a gripe foram criadas por um deus inteligente. Afinal, são igualmente ignorantes acerca dos mecanismos e do propósito de tal criação.

1- Darwinismo, Migração: mais um problema sério para o naturalismo
2- Comentário no mesmo post.

sexta-feira, outubro 29, 2010

Salário é isso?

No site da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) um cabeçalho apregoa que «O DIREITO DE AUTOR É O SALÁRIO DO CRIADOR»(1). Só se for o salário de quem trabalha na SPA a criar chavões imbecis.

O salário é uma remuneração pré-estipulada que se recebe por prestar um serviço, enquanto se presta esse serviço ou assim que o trabalho termina. Não é algo incerto, que se receba a conta-gotas, conforme calha e durante décadas depois do trabalho feito ou até do trabalhador ter morrido. Acima de tudo, o salário é pago por quem promete pagá-lo. Eu crio exercícios, exames e material para as aulas, dou as aulas, tiro dúvidas e avalio os trabalhos alunos. Em troca, recebo um salário, como qualquer profissional. Mas o salário não é consequência automática do trabalho que fiz. Uma condição igualmente necessária é ter um acordo prévio com quem me paga.

É por isso que eu não tenho legitimidade para cobrar o trabalho de escrever estes posts ou de dar aulas aos meus filhos sobre escaravelhos ou o Leonardo da Vinci. Não é que não dê trabalho ou que não crie nada com isto. É simplesmente porque o faço sem primeiro combinar uma remuneração com quem se comprometa pagar-me.

Os “direitos” dos “autores” não são salários nem são direitos. Nem sequer são dos autores em geral. São monopólios legais sobre certas formas de explorar alguns tipos de criatividade. Logo no seu primeiro artigo, o Código do Direito do Autor e Direitos Conexos exclui «As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas». O que, fazendo bem as contas, exclui a maior parte da criatividade humana e a maioria dos autores. Além disso, na prática estes monopólios beneficiam sobretudo os distribuidores. São esses que ficam com a maior fatia, e isso é nítido na evolução do copyright e no prolongamento retroactivo dos monopólios. Não é o John Lennon que beneficia de se adicionar umas décadas ao monopólio sobre as suas composições.

E um monopólio não é um direito, excepto no sentido puramente legal. Ao contrário do salário. Se eu prometo pagar por um serviço, quem me presta esse serviço tem o direito moral de exigir o pagamento prometido. Mas publicar um texto não cria magicamente o direito de cobrar a quem o lê ou copia. O poder legal de proibir certas formas de distribuição não é um direito moral de quem decide publicar a sua obra. É apenas um privilégio que o Estado concede, um subsídio disfarçado, pago à custa das liberdades dos outros para não constar no orçamento. Que, ainda por cima, a SPA inflaciona. «Seja original. Diga não à cópia.», exorta a SPA, esquecendo convenientemente que a cópia privada é um direito garantido pela mesma legislação, e um direito pelo qual até nos cobram impostos em cada resma de papel e em cada CD gravável.

Os autores e criadores devem ter salários. Devem ser remunerados por acordo prévio, sabendo quem lhes paga e quanto irão receber. E, felizmente, é o que acontece com a maioria dos autores e criadores. Arquitectos, juristas, cientistas, matemáticos, professores, filósofos, economistas, psicólogos, médicos, gestores, pintores, electricistas, canalizadores, barbeiros, alfaiates, decoradores e mais uma data de outros profissionais cujas criações não se vendem à resma ou em rodelas de plástico. Só aqueles que tradicionalmente ficaram à mercê dos distribuidores é que não tiveram a mesma sorte.

Eu tenho um trabalho criativo. O que, vendo bem as coisas, não é nada de especial, porque para trabalhos que não exijam criatividade nenhuma já temos máquinas que os façam. Tenho um salário, o que também é comum. Como qualquer profissional, sei quanto vou ganhar pelo meu trabalho. E, se bem que a lei não me conceda monopólios sobre as aulas que dou, também não os concede a mais ninguém, o que me permite dar aulas e fazer investigação sem ter de pedir autorização a algum “gestor de direitos”.

Por isso posso dizer aos autores e criadores que dependem da SPA que o vosso “salário” é uma aldrabice. Porque vos obriga a trabalhar antes de saberem quanto vão receber, ou sequer se receberão alguma coisa. Porque o “direito” que vos dão é o de ceder o controlo sobre o que criaram. Porque quem controla o vosso trabalho é que fica com a maior parte do dinheiro que os vossos clientes pagam. E, pior de tudo, porque esse dinheiro que o intermediário mete ao bolso é extorquido à força da lei, sacrificando a liberdade de partilhar, copiar e transformar as obras. Precisamente a liberdade de que os autores e criadores mais precisam.

1- Site da SPA. Via um comentário da Paula Simões nesta entrada d' O Vigia no Friendfeed.

terça-feira, outubro 26, 2010

A falácia genética.

É a inferência, incorrecta, das qualidades de algo a partir do processo que lhe deu origem ou daquilo que o precedeu. É, por exemplo, concluir que a astronomia é treta só porque o estudo dos astros foi inicialmente motivado por superstições. Ou discriminar alguém por ter pais analfabetos ou um bisavô criminoso. E é um dos argumentos mais fundamentais das religiões.

O criacionismo evangélico dá muitos exemplos disto. O Jónatas Machado escreveu aqui recentemente que «O ateísmo, ao postular que o Universo, a vida e o ser humano surgiram acidentalmente por processos irracionais só pode mesmo ser o cúmulo da irracionalidade.» E perguntou «Se os seres humanos, os seus pensamentos e as suas condutas dependem, em última análise, de uma sucessão de acidentes, porque é que temos que estar preocupados com o que os adultos ensinam às crianças?» (1)

A resposta é óbvia. É falacioso concluir que não podemos ter valores só porque o processo que nos deu origem não os tinha, ou que não podemos ser racionais só por não termos sido criados por um ser inteligente. Uma coisa não tem nada que ver com a outra. Podemos ser racionais independentemente do processo que nos deu origem. Basta que tenhamos essa capacidade, que quase todos têm, e dar-lhe uso, o que, infelizmente, já menos fazem. E temos de nos preocupar com a educação das crianças porque dela depende o seu futuro, a sua vida, as suas experiências, e até a sua capacidade para compreender que a falácia genética é um argumento inválido.

De resto, ninguém propõe tratar as crianças de forma diferente conforme foram planeadas pelos pais, concebidas com mais paixão que discernimento ou fruto de um furo no preservativo. Independentemente do processo que as originou, merecem consideração pelo que são. E este não é um problema só para o criacionismo.

As religiões afirmam-se importantes por procurar o sentido da vida. Mas o que fazem é apenas cometer a falácia genética, assumindo que a nossa vida só tem sentido em função do hipotético criador. E as religiões que descendem do antigo judaísmo até proclamam como o maior dos pecados a tentativa de nos tornarmos independentes dessa origem. É um disparate. O sentido de cada uma das nossas vidas é o que vamos criando vivendo. Fazêmo-lo no que somos e naquilo em que nos tornamos. Não é uma herança nem mera consequência do processo de fabrico.

Eu descendo de primatas peludos, que descendem de mamíferos quadrúpedes cujos antepassados eram répteis descendentes de peixes, lombrigas, micróbios e gosma. E mesmo entre os meus antepassados humanos deve ter havido de tudo. Bons, maus, altos, magros, bonitos, feios, simpáticos e irritantes. Nada disso importa para o sentido da minha vida, para a ética ou para o que me preocupa. São meros factos. Tanto faz se o universo veio de uma oscilação quântica sem causa ou de um abracadabra divino, que os meus problemas de saber o que fazer da vida, decidir o que é bom ou mau, cuidar dos meus filhos e relacionar-me com as outras pessoas são exactamente os mesmos.

Mas as religiões têm de esconder isto. Precisam de defender, mesmo que por falácias, que o mais importante é o passado longínquo, quando um deus criou isto tudo, e o futuro distante, quando, já noutra vida, seremos recompensados. Isto é fundamental porque quem olha para aqui e agora não pode senão desconfiar que isso dos deuses é tudo treta.

1- Comentário em Daqui ninguém sai.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Daqui ninguém sai.

O sistema de recrutamento da Igreja Católica é bem pensado. Baptiza-se a criança logo que nasce, massaja-se a crença no cérebro tenrinho e, quando finalmente ela começa a pensar por si, já tem tão cravada a ideia de que rejeitar esta religião é pecado que acaba por fazer o mesmo aos seus filhos.

Mas havia um buraco. Era possível, em adulto, deixar esta religião. Não era um buraco grande, porque era preciso tanta papelada e burocracia para formalizar a apostasia que, até recentemente, não havia muita gente disposta a passar por isso. Eu, por exemplo, não aproveitei enquanto podia. Sempre me pareceu absurdo que desse tanto trabalho sair duma organização que até recém-nascidos aceita.

Agora parece que já nem assim. Na Irlanda, a campanha de apostasia foi suspensa porque a Igreja Católica deixou de processar estes pedidos. Uma alteração do direito canónico, em Agosto, fez com que já não seja permitida a saída formal da Igreja Católica (1).

Mas sobra ainda a via da excomunhão. Suponho que continuem a ter de excomungar quem rejeita o espírito santo. Eu rejeito, caso não soubessem. Esse, a fada dos dentes, o Pai Natal, e o que mais quiserem. Julgo que não faz sentido continuarem a contar-me entre os católicos.

Até porque, em 1949, Pio XII excomungou todos os católicos que apoiavam o comunismo (2). E em 1996 a excomungaram o grupo católico Call to Action por reivindicar o sacerdócio das mulheres, o fim do celibato e outras reformas (3). Dados estes precedentes, podiam fazer o jeitinho e excomungar os ateus todos de uma vez. Ficava tudo em pratos limpos, deixavam de contar para as vossas estatísticas uma data de gente que não é católica e evitavam dar a impressão de que tirar pessoas da Igreja Católica é só mais um mecanismo de coerção e não uma opção que respeite quem não queira pertencer ao vosso clube.

1- Countmeout, Suspension. Obrigado pelo email a referir este post da Rayssa Gon no Bule Voador.
2- Wikipedia, Decree against Communism
3- Wikipedia, Call to Action

domingo, outubro 24, 2010

Treta da semana: custos para o utilizador.

Esta é uma prática comum. O Estado financia algo apenas parcialmente e cobra o que falta aos utilizadores. Desde portagens em autoestradas e pontes até informação geográfica (1), normas técnicas (2) ou software (3) que fazem parte da legislação em vigor. Porque parece justo não sermos todos obrigados a financiar, dos impostos, algo que apenas alguns usam. Se seleccionarmos os exemplos com cuidado. Os lisboetas não querem pagar a autoestrada dos transmontanos, nem estes beneficiam de pontes sobre o Tejo, e coisas assim.

Assumindo que é justo, tolera-se os problemas práticos de ter um Estado comerciante. Parcerias publico-privadas, que são negócios decididos entre donos das empresas e funcionários que gerem dinheiro público e só lucram, eventualmente, se ganharem um lugar na empresa com a qual negoceiam. Instituições públicas em concorrência desleal com o sector privado, que não pode cobrar aos contribuintes os custos de operação e investimento. Ou mesmo, em alguns casos, entidades públicas que fiscalizam e regulam empresas enquanto competem com estas no mesmo mercado. Estes pacotes de incentivo ao roubo legal dificultam a boa gestão do erário.

Mas o problema deste princípio, do Estado como empresa, é mais fundamental do que uma implementação desastrosa. Não é necessariamente injusto que o Estado invista em projectos que beneficiem apenas alguns se, no conjunto dos projectos, os benefícios se distribuírem equitativamente. Uns beneficiam de uma autoestrada, outros de uma ponte, uns de uns mapas e outros de uma norma. Injusto é se forem sempre os mesmos a ficar excluídos dos benefícios. Que é precisamente o que acontece quando se impõe custos de utilização. Sistematicamente, seja o que for ou onde estiver, é quem tem menos dinheiro que fica impedido de beneficiar daquilo para que foi obrigado a contribuir.

Há também um problema de justiça social, que se esconde atrás de uma noção errada do valor das coisas. O mercado dá a cada coisa um preço que, implicitamente, se assume ser o seu valor justo, que todos devem pagar. Mas o preço é uma mera consequência de como o mercado responde à oferta e à procura. Não se pode inferir nada de normativo comparando o salário de um bombeiro com o de um futebolista, ou o preço do ouro com o do arroz. Nem o preço é o valor das coisas, nem é mais justo que todos paguem o mesmo, visto que o custo de algo, para o indivíduo, depende não só do preço mas também de quanto dinheiro tem disponível.

É claro que o mercado é muito mais eficiente precisamente porque não se guia pela justiça. Se quer, paga. Se não paga, não dou. É a melhor forma de levar a oferta a responder à procura. Mas essa eficiência leva a desequilíbrios cada vez maiores, eventualmente auto-destrutivos se não houver nada que os compense. Quando alguns ganham num dia mais do que outros numa vida inteira de trabalho, é preciso um contrapeso para não descambar tudo em violência. Esse é o papel do Estado. Contrapor de forma justa, mesmo que ineficiente, a injustiça do mercado, que é o preço da sua eficiência. E isto implica cobrar de cada um conforme o que lhe custa dar, e dar a todos por igual, tenham dinheiro ou não.

Não digo que seja tudo gratuito. Pode ser preciso cobrar ao utilizador alguns custos de manutenção ou taxas moderadoras para evitar a utilização abusiva. Mas esta cobrança não deve impedir ninguém de usufruir daquilo que os seus impostos ajudaram a pagar. A promiscuidade do Estado merceeiro (ou mercenário), a vender no mercado aquilo que todos pagámos, tem o efeito duplamente nefasto de tornar o Estado injusto, beneficiando quem tem mais dinheiro à custa de quem tem menos, e de reduzir a eficiência do mercado, interferindo nos mecanismos de preço, oferta e procura por usar o dinheiro dos impostos para competir com iniciativas privadas. O resultado é que o Estado se vai transformando numa corporação injusta, corrupta e monopolista, beneficiando uns poucos à custa de muitos enquanto destrói a economia de que depende.

1- Instituto Geográfico, Preçário
2- IPQ, Loja
3- INETI, Solterm

sexta-feira, outubro 22, 2010

O testemunho. Mais uma vez.

Apesar do post anterior, repetem-se dúvidas já muito repetidas. Em vez de responder nos comentários, vou deixar um post só sobre isto para das próximas – que haverá certamente – me bastar o endereço. Pediu-me assim o Miguel Panão:

«explica-me então como averiguas os factos contidos em alguém que testemunha uma experiência religiosa e aferes a sua veracidade. E ainda, explica-me como averiguas os factos contidos em alguém que testemunha a invalidade de uma experiência religiosa e aferes a sua veracidade.» (1)

Vou assumir que por “factos contidos em alguém” o Miguel se refere à verdade das alegações. E começo por esclarecer que as duas coisas que o Miguel pede são, no fundo, uma só: como decidir se considero verdadeiro ou falso aquilo que alguém alega.

Primeiro, tenho de decidir onde vou colocar a fasquia, que não é igual para todas as alegações. Se alguém me disser que viu um rato, a fasquia fica tão baixa que normalmente considero a alegação verdadeira sem mais do que o testemunho. Em contraste, se me disser que consegue comunicar com os mortos, que viu Vishnu ou que a Terra é quadrada, terei de exigir muito mais do que a palavra dessa pessoa para concluir que me diz a verdade. O critério, em ambos os casos, é o contraste entre a alegação e as crenças que posso justificar considerar verdadeiras.

A justificação é o ponto crucial. O que importa não é se eu gostaria que fosse verdade ou se concorda com algo que acredito porque me dá na gana. Importa é o encaixe da alegação com o que posso justificar objectivamente, à parte dos meus gostos ou preferências. Assim, se me dizem que ganhei o Euromilhões, será irracional deixar o desejo de enriquecer calar a suspeita da alegação ser falsa, visto que nem sequer joguei. O salto de fé de quem acredita no testemunho religioso só porque quer que seja verdade é igualmente impulsivo e irracional.

A alegação de que o criador do universo nasceu humano, por milagre, e se deixou matar para redimir em nós um pecado de antepassados distantes é, logo à partida, tão pouco plausível e tão desligada de tudo o que sei que tenho de colocar a fasquia muito alto. Mesmo que o testemunho fosse credível e consensual, seria uma evidência tão baixinha que ainda precisava de binóculos para ver a fasquia.

Mas o testemunho não é credível. Não pela honestidade das alegadas testemunhas, acerca da qual não posso concluir nada, mas porque é um testemunho indirecto e porque as testemunhas originais, se realmente as houve, não tinham como averiguar o que se diz terem testemunhado. É que mesmo que Jesus estivesse aqui, hoje, a ser crucificado diante nós, não haveria maneira de determinar se estava a redimir algum pecado com isso. O máximo que se pode testemunhar é é que um homem foi crucificado. O resto é pura especulação.

E nem é consensual. Parafraseando o Vasco Santana, testemunhos há muitos. Para todos os gostos e sabores. Deuses, espíritos, rituais, castigos, recompensas, do mundo prestes a acabar e até de que já acabou. E não há razão nenhuma para preferir qualquer um aos outros todos.

Assim, respondendo ao pedido do Miguel, esclareço que aceito como verdadeiro o testemunho de quem diz não encontrar deuses porque não parece haver deuses em lado nenhum. Portanto não me admira que não o encontrem. O testemunho, por si só, é evidência fraca, mas também exijo pouco de quem me diz não encontrar fantasmas, fadas, este deus ou aquele outro.

Por outro lado, se alguém alega saber, por uma experiência religiosa ou testemunho bíblico, que há dois mil anos a mulher de um carpinteiro na palestina engravidou por milagre, que a criança era a encarnação do criador do universo e que, pela sua morte, nos salvou a todos de um pecado cometido muito antes por um casal metafórico, só duas possibilidades se apresentam minimamente plausíveis. Ou está baralhado ou a tentar enfiar-me um barrete. Porque isso não é coisa que se conclua ser verdade só porque alguém tem um pressentimento ou leu num livro que alguém disse ter sido assim.

1- Comentário em ECR 1: Testemunhos.

quinta-feira, outubro 21, 2010

ECR 1: Testemunhos.

No seu livro Educação, Ciência e Religião (ECR), o Alfredo Dinis e o João Paiva escrevem que «A racionalidade da fé baseia-se, entre outras coisas, no testemunho que chega a cada geração a partir dos primeiros crentes»(1). Mas não é claro porque é que isto há de ser racional.

Por um lado, só é racional aceitar um testemunho se percebemos como a testemunha sabe a verdade do que afirma. O testemunho de que Jesus era o criador do universo, que nasceu de uma virgem e que morreu para nos salvar só seria aceitável se as testemunhas pudessem averiguar tais coisas. O Novo Testamento não justifica tal conclusão, nem se percebe como o poderiam fazer. Aproveitando a analogia dos autores, que comparam o testemunho bíblico com as testemunhas num tribunal, os evangelhos equivalem à deposição de um médium acerca do que diz o espírito da vítima assassinada.

Por outro lado, se vamos concluir algo acerca dos deuses com base em testemunhos, temos de decidir em que testemunho nos baseamos. Num julgamento onde dez testemunhas se contradizem nenhum juiz racional poderá decidir apenas pelos testemunhos. Com as religiões, este problema é várias ordens de grandeza mais grave. E nem precisamos ir a religiões fora do cristianismo. Ou sequer fora do catolicismo. Mesmo restringindo o âmbito a esta, a que os autores se referem quando falam em religião no singular, temos um problema de testemunhos contraditórios.

O Bernardo Mota escreve que «é inútil e infértil estar a discutir se os católicos acham ou não que Adão existiu» porque «O cristianismo não é a soma das fés pessoais dos cristãos. O cristianismo é hierárquico, como o próprio Cristo quis que fosse. O Magistério ensina doutrina. Não doutrina que inventou, mas sim doutrina que recebeu de Cristo.» E, citando a encíclica De Humanis Generis, de Pio XII, defende que o Magistério ensina que Adão e Eva foram mesmo os dois antepassados de toda a humanidade: «os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural»(2).

O Alfredo Dinis e o João Paiva, católicos que o Bernardo classificará de inconsistentes, consideram que a posição de Pio XII é «um tanto ambígua»(3) e que a ciência permite rejeitar a ideia de sermos todos descendentes apenas de um Adão e de uma Eva. Nesta última têm razão. A diversidade genética humana é incompatível com o modelo do Bernardo que, de resto, é biologicamente ridículo. Mas o Bernardo tem razão no outro ponto. A posição de Pio XII acerca disto não é nada ambígua. Esse Papa claramente acreditava na história do Adão e Eva como a interpretam os criacionistas evangélicos hoje. Felizmente, a razão não nos obriga a ir atrás destes testemunhos.

O que a razão nos diz não é para acreditarmos no testemunho só por ser testemunho. Nem dos evangelhos, nem do Pio XII, Bento XVI, Bernardo Motta ou Alfredo Dinis. Isso só dá carradas de testemunhos e nenhum critério de escolha. A razão exige, pelo menos, que a testemunha saiba a verdade do que alega. Como Pio XII não percebia de genética nem tinha evidências desse Adão o seu testemunho vale zero. E o mesmo valem os testemunhos de quem diz que a hóstia se transubstancia, que Jesus era o criador do universo ou que a sua morte nos salvou a todos. Sem maneira de determinar a verdade dessas alegações não podem ser testemunhas legítimas.

Por isso tenho de discordar do primeiro capítulo do livro. Não é racional ser católico com base nos testemunhos. Tal como não é racional ser muçulmano, judeu, hindu, protestante, shintoista ou baha'i com base em testemunhos. Porque nem sequer podemos concluir que estas testemunhas sabiam o que estavam a dizer.

1- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010, p. 14
2- Bernardo Motta, Adão e Eva
3- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010, p. 24

República.

Celebrámos o centenário há poucas semanas. Mas não sei se ainda a temos...



Adenda: Por cá não deve ser tão mau porque os donativos aos partidos são regulados. Mas práticas como a de dar a ex-políticos lugares confortáveis nas empresas, ou as "parcerias" publico-privadas, provavelmente fazem tal buraco na regulação que passa tudo, ministros, secretários, tios e primos.

Adenda 2: No entanto, a pressão está lá: Partidos vão poder receber mais dinheiro dos privados (via Miguel Caetano, pelo Facebook).

terça-feira, outubro 19, 2010

Direitos e propriedade.

A escritora Dulce Maria Cardoso vai desistir de distribuir os seus livros pela Asa, do grupo Leya, e mudar-se para a editora Tinta da China. O que não tem nada de especial, excepto o que esta frase singela sugere: <«Já pedi à Leya os direitos dos livros antigos e atendendo aos resultados acredito que a Leya mos dará.»(1) A escritora já pediu os seus direitos e tem esperança que lhos devolvam...

Quando se fala de direitos de autor refere-se dois tipos diferentes de coisa. Um é o que vem na lei como direitos morais. Estes são mesmo direitos, que não podem ser vendidos. Por exemplo, o direito de ser reconhecido como o criador das suas obras ou de repudiar transformações ou execuções das quais não aprove. Outro, diferente, é o que a lei por cá chama “direitos patrimoniais”, que muitos chamam “propriedade intelectual”, e que, no fundo, não são nem uma coisa nem outra.

Como explica o Cory Doctorow no vídeo abaixo, o termo “propriedade intelectual” surgiu porque pedir protecção da propriedade soa muito melhor que pedir mais monopólios. Desde os anos 70 que o debate tem sido enviesado por este truque retórico. E é isso que estes “direitos patrimoniais” são. Licenças exclusivas para retransmitir, reproduzir, representar publicamente, ou explorar economicamente a obra.

Além das restrições à criatividade e acesso que este sistema impõe a todos, custa também ao autor o direito de distribuir e divulgar a sua obra como entender. Como ilustra o exemplo da Dulce Maria Cardoso, quando se torna uma mercadoria deixa de ser um direito. Qualquer pessoa que tenha dinheiro pode comprar à Leya os “direitos” sobre os livros desta escritora e proibir, durante cinquenta ou cem anos, qualquer edição destas obras. Admito ser improvável, mas, ao permiti-lo, a lei demonstra ser fruto de considerações económicas em detrimento dos direitos do autor e dos interesses da sociedade.

Precisamos de trocar este sistema por outro que preserve os direitos do autor e que vise o objectivo certo. Não o de dar poder e lucro aos distribuidores, mas o de incentivar a criatividade, a inovação e o acesso à cultura. Isto não é novidade, pois sempre se disse ser esse o seu objectivo. E há casos em que até foi verdade. Discotecas, estações de rádio ou bandas de covers não têm de negociar “direitos” exclusivos. Pagam apenas uma taxa que, quando as sociedades de cobrança não ficam com o dinheiro, reverte para os autores.

O mesmo princípio podria ser aplicado a qualquer empreendimento comercial que lucre com uma obra. Por exemplo, em vez de ter de pedir à Leya permissão para vender os seus livros noutra editora, a Dulce Cardoso poderia receber pelas vendas dos seus livros qualquer que fosse a editora a vendê-los. A tipografia moderna não precisa de monopólios para funcionar. E esses monopólios, se permitidos por lei, inevitavelmente roubam direitos ao autor.

No fim-de-semana passado o Cory Doctorow deu uma palestra na The Amazing Meeting, em Londres, onde explica melhor que eu a necessidade de ter um sistema diferente, menos restritivo e que só regule aquilo cuja regulação seja vantajosa para todos. Mas antes de vos deixar ver o vídeo, queria aproveitar para mencionar o hacking do site da ACAPOR (2). A ACAPOR tem pressionado o nosso sistema judicial para bloquear o acesso ao Pirate Bay, fechar fóruns com ligações a filmes e defendido que se policie as nossas comunicações para que sejamos todos obrigados a alugar os DVD deles. Por isso admito sentir uma satisfação visceral ao ver que ficaram sem o site e que a correspondência electrónica deles anda por aí no bittorrent.

Mas é a satisfação irracional e vingativa do “olho por olho e dente por dente”, que não tem nada de decente nem justo. Parte da razão para mudar esta legislação é proteger a liberdade de expressão e o direito à privacidade, precisamente o que foi sacrificado neste acto de vandalismo. E a forma de o conseguir é mostrando ao eleitorado que precisamos de um sistema que promova a criatividade e respeite os nossos direitos. Mostrar a quem vota que este é um problema sério, que toca a todos, e não uma mania de quem só quer fazer porcaria e ouvir música de borla. Este tipo de “protestos”, como lhe chamam, faz precisamente o contrário.

Como antídoto, aqui fica uma abordagem mais racional e, espero, mais produtiva.


Obrigado pelo email com a ligação para o vídeo.

Para quem não o conhece: Cory Doctorow é jornalista, co-editor do Boing Boing e autor de ficção científica que publica todos os seus livros sob licenças Creative Commons, ganha a vida com o que escreve e merece cada cêntimo. Mais sobre ele (incluindo os seus livros, de graça) em craphound.com.

1- Público, Escritora Dulce Maria Cardoso troca Leya pela Tinta-da-China. Via Paula Simões
2- Torrent Freak, Movie Rental Outfit Hacked, Emails Leaked, Redirected to The Pirate Bay; Exame Informática, Site da ACAPOR atacado, entre outros. Obrigado a todos os que me enviaram emails com a notícia.

segunda-feira, outubro 18, 2010

Formicário 2: Dexter.

Suspeito que esta série de posts vá ser mais curta do que tinha inicialmente estimado. Das quatro formigas iniciais, uma desapareceu e outra morreu pouco depois. Ficaram duas sozinhas no mesmo buraco, uma das quais com umas contracções no abdómen que achei podia ser parte do processo normal de empurrar os ovos até algum sair. O vídeo abaixo mostra como foi, acelerado 10 vezes.



Isto é filmado com infravermelhos. À luz visível, a formiga é preta, mas com luz infravermelha nota-se que umas partes do exoesqueleto são mais finas e flexíveis.

Infelizmente, ao fim de uns dias disto começou a andar às voltas com a cabeça presa no chão e acabou por deixar de se mexer. A irmã acompanhou de perto a fase terminal da doença, aparentemente examinando cuidadosamente a moribunda. Mas uma vez morta, o pragmatismo venceu a aparente sentimentalidade, e deu numa de Dexter. O vídeo abaixo é também acelerado 10 vezes, e não é aconselhável aos mais impressionáveis (OK, têm de ser muito impressionáveis, mas fica o aviso à mesma).



Em suma, neste momento estou a 25% da população original e desconfiado de uma infecção de fungos no formicário. Manter tudo no escuro ajuda a proliferação de fungos e, pelo que li, estespodem prejudicar bastante as formigas. Mas agora não tenho possibilidade de manter a parte de cima com luz enquanto filmo a parte de baixo às escuras. Por isso fica tudo dependente dos anticorpos do sistema imunitário da última sobrevivente.

Editado a 19-10. Obrigado ao ava n'tesma por apontar que os anticorpos (imunoglobulinas) são exclusivos dos vertebrados. No entanto, isto deve-se a uma classificação algo arbitrária, visto que insectos têm proteínas da mesma família que desempenham a mesma função (e.g. Hemolin: an insect-immune protein belonging to the immunoglobulin superfamily)

domingo, outubro 17, 2010

Treta da semana: esperteza vegetal.

Um artigo na Science, em Agosto, explica como as lagartas da traça Manduca sexta traem aos seus predadores a sua presença na planta do tabaco. Um composto na saliva da lagarta, ainda não identificado, catalisa a isomerização de compostos voláteis libertos pela planta danificada. O odor característico resultante desta reacção química atrai insectos do género Geocoris, que se alimentam destas lagartas.

Apesar do título do artigo ser descritivo e rigoroso, «Insectos traem-se na natureza aos predadores pela isomerização rápida de compostos voláteis de folha verde»(1), a notícia no DN Ciência baralha uma data de coisas. Além de omitir a referência ao original, por alguma razão prática corrente neste tipo de notícia*, e escrever mal o nome do segundo autor, dificultando a pesquisa, descreve que «as folhas das plantas do tabaco produzem um químico capaz de atrair insectos predadores que se alimentam dos seus atacantes - as lagartas.»(2)

O Mats, provavelmente lendo só a notícia no DN, deturpa ainda mais o artigo: «Impressionante como a planta descobriu por si só qual o químico certo para atrair os predadores certos para matar este tipo específico de lagarta.» E, com a típica humildade com que costuma abordar estas coisas, diz ser «Mais um sistema biológico que não pode ser explicado como o resultado de um lento acumular de mutações favoráveis.»(3) Na verdade, trata-se apenas de mais um de muitos sistemas e processos que o Mats não compreende.

Como os autores descrevem no seu artigo, é normal que as plantas libertem compostos voláteis quando são danificadas, compostos esses que frequentemente atraem predadores. Mas é errado ver isto como esperteza da planta. Devemos começar pela perspectiva do predador. Se os Geocoris fossem completamente azelhas, não sofriam muito com isso. O resultado seria uma proliferação tal de lagartas que, mesmo às cegas, haviam de encontrar que comer. Mas as variantes genéticas dos Geocoris competem entre si por um lugar na geração seguinte, e um insecto mais eficiente a procurar presas terá mais tempo e energia disponíveis para se reproduzir. Assim, a selecção natural favorece as variantes mais capazes de detectar as lagartas, desde que essa capacidade não seja demasiado dispendiosa.

Ao alterar os compostos voláteis libertados pela planta, as lagartas criam uma pressão selectiva nos Geocoris, favorecendo o aumento de sensibilidade a essa alteração. Isto não exige inteligência de nenhum dos intervenientes, e nem sequer é mérito da planta.

É claro que, se os predadores forem especialmente sensíveis a uma certa mistura de substâncias, isto cria uma pressão selectiva nas plantas. As variantes genéticas que levarem a planta a libertar mais dessas substâncias e, portanto, a atrair mais predadores, serão favorecidas com o passar das gerações. Por isso algumas plantas libertam odores específicos em resposta aos insectos herbívoros, atraindo outros que deles se alimentam. Isto também consequência da evolução por selecção natural. Mas, neste caso, nem sequer era esse o ponto do artigo. A ideia principal, como estava claro no título, é que são as próprias lagartas que se tramam pela alteração química dos compostos voláteis libertados pela planta. Se tivesse sido de propósito, tinha sido uma argolada das lagartas e não uma esperteza da planta.

Pior ainda, segundo a doutrina do Mats este sistema foi criado por um deus inteligente. O que não faz sentido nenhum. Criar uma lagarta que só come folhas e, ao mesmo tempo, um insecto que come a lagarta guiado pelo cheiro que ela liberta ao comer folhas não sugere inteligência. Se propositado, sugere apenas o ócio cruel da criança que se entretém a arrancar as asas às moscas. Mas, é claro, o Mats não sugere esta explicação. Nem esta, nem nenhuma. Alega apenas que é impossível explicar, como se a sua ignorância fosse a medida de todas as coisas. Porque esclarecer seria contrário ao seu objectivo.

O criacionismo, e a religião em geral, é uma ferramenta política. Serve para controlar as pessoas. E é mais fácil manipular quem anda espantado, às escuras e só com a fé para o guiar do que quem compreende as coisas, pensa por si e tem ideias claras. Por isso, o objectivo das doutrinas religiosas não é esclarecer. É tapar os horizontes com mistérios insondáveis, obscurecer ideias com conceitos confusos e convencer que as verdades profundas são contraditórias e impossíveis de compreender. Deus é bom e castiga, é transcendente e imanente, é três e é um, é divino e humano, age sem intervir. E é inteligente e bondoso mas faz as lagartas serem comidas pelo cheiro que deitam quando comem.

* O que é uma falta de consideração pelos autores originais e de uma chatice para quem quiser desembrulhar a confusão do jornalista.

1- Silke Allmann and Ian T. Baldwin, Insects Betray Themselves in Nature to Predators by Rapid Isomerization of Green Leaf Volatiles
2- DN Ciência, Planta do tabaco liberta químico que atrai predadores de lagartas
3- Mats, Planta do tabaco liberta químico que atrai predadores de lagartas

sábado, outubro 16, 2010

A ter em conta.

ora bem

Via 9gag.

Momento de poesia.



Via 9GAG

sexta-feira, outubro 15, 2010

O Pai Natal não existe.

Numa conversa que é pena ficar escondida nos comentários, o Alfredo Dinis escreveu que «O Pai Natal não é um ser sobrenatural, é uma fantasia. Todos nós sabemos isso. Não vale a pena baralhar mais o que de si já se presta a confusões.»(1) Concordo que o Pai Natal não existe. Mas é precisamente por isso que é um bom ponto de partida. Este exemplo dá-nos uma base consensual para avaliar a hipótese de um ser sobrenatural existir. Mas, primeiro, um aparte.

Escreve também o Alfredo que «Se a ciência se pronunciar sobre a existência histórica da figura humana de Cristo, não está a pronunciar-se sobre o sobrenatural. [...] A ciência permanece no seu domínio.» No entanto, todo o edifício conceptual e dogmático do cristianismo depende de certos acontecimentos históricos. Muitos historiadores pensam hoje que Jesus existiu e foi mesmo crucificado pelos romanos mas, como qualquer conclusão científica, este resultado é provisório. Talvez se descubra que Jesus morreu de morte natural e a crucificação é só crucificção. Ou que o crucificado foi Judas e contaram mal a história. Não defendo que tenha sido assim, mas é possível que um resultado científico venha contradizer o fundamento do cristianismo. Por isso, mesmo sem o problema do sobrenatural, é errado dizer que o cristianismo está num domínio separado da ciência.

Voltando ao Pai Natal, consideremos esta pequena amostra de infinitas hipóteses que poderíamos considerar:

A: O Pai Natal é um ser sobrenatural, transcendente e imanente, cuja existência não pode ser nem comprovada nem refutada por qualquer observação.

B: O Pai Natal é um personagem fictício.


A hipótese A não pode ser testada. Saliento que não escrevo “não pode ser testada pela ciência”, porque o problema não é da ciência. É da hipótese. É impossível testar essa hipótese. Ainda assim, a ciência não se abstém de a avaliar. Sendo impossível de testar, tanto faz se é verdadeira ou falsa. Então, a ciência rejeita-a por ser uma hipótese inútil. Mais importante ainda, a ciência avalia hipóteses confrontando várias alternativas com os dados. É assim que se determina a mais plausível. Que, neste caso, é a hipótese B. É testável. Dela prevê-se que alguém tenha a capacidade de criar personagens fictícios e que haverá outros exemplos disso, e são ambas previsões bem suportadas pelas evidências.

Se alguém não gostar do Pai Natal não faz mal. Podemos substitui-lo pelo que quisermos que a hipótese A nunca será a mais plausível. Porque se tivermos evidências da existência do ser em causa, como temos de árvores ou cangurus, então a hipótese A claramente não serve. Teremos de optar por uma terceira hipótese que melhor corresponda às evidências. E sempre que se trate de algo para o qual não haja quaisquer evidências, a hipótese B será a mais plausível. Nunca haverá um caso em que vamos preferir uma hipótese como a hipótese A, porque uma hipótese que não se pode pôr à prova é uma hipótese que nunca dará razões para a considerar verdadeira.

É compreensível que queiram proteger esta religião do exame científico. A ciência é exímia a detectar erros e a corrigi-los, e isso só dá jeito se o rei levar alguma coisa vestida. Mas é um desejo fútil. O cristianismo foi inventado num tempo mais ingénuo, antes de começarem a evitar tudo o que fosse refutável, e assenta em hipóteses históricas susceptíveis de se revelarem falsas. Além disso, a ciência rejeita as hipóteses que sejam impossíveis de testar. Não as ignora calada. Por um lado, porque esse é o defeito mais grave que uma hipótese pode ter. Uma hipótese errada sempre nos ensina alguma coisa; uma que nem se pode pôr à prova não serve para nada. Por outro lado, porque a ciência avalia hipóteses considerando alternativas, e nenhuma hipótese impossível de testar pode ser mais plausível que as alternativas. Por exemplo, que a alternativa de considerar que essa hipótese é treta.

1-Equívocos, parte 10. Agora mais radical

quinta-feira, outubro 14, 2010

DAT.

Digitalizar uma música é criar uma descrição numérica do som. E essa descrição pode ser feita de infinitas maneiras. O formato CDA, dos CD, descreve o som com uma lista de valores de intensidade medidos a 44.1kHz. O MP3 descreve o som como uma combinação de frequências seleccionadas por serem mais salientes ao ouvido. No FLAC os valores de intensidade de som são repartidos em blocos, uma função aproxima o perfil do som em cada bloco e o erro residual é guardado num formato comprimido. E assim por diante. Cada formato cria uma descrição diferente da música.

Ao considerar que tudo isto são cópias, o copyright torna-se em censura. Em vez de regular apenas a reprodução de representações materiais específicas, como cassetes ou discos, restringe todas as descrições. Em vez de proibir a criação de algo semelhante, proíbe a transmissão de tudo o que significar o mesmo.

Há quem justifique esta alteração pela natureza da codificação digital. Como é trivial representar a mesma coisa de formas diferentes, é preciso proibir pelo significado em vez de pela semelhança. No entanto, isto assume implicitamente que se justifica tal sacrifício só para proteger o negócio de cobrar pelo acesso. Tendo em conta o custo da censura e o decrescente valor da distribuição, eu diria que já passámos há muito o ponto em que deixou de valer a pena. Mas essa é uma divergência de valores. Hoje quero apontar um contra-exemplo factual, e propor uma explicação para o triste estado da legislação que temos agora.

No final dos anos 80 surgiu o Digital Audio Tape, uma tecnologia que codificava o som em fita magnética usando uma representação digital semelhante à dos CD modernos (1). Pouco depois, a RIAA começou a pressionar para proibir esta tecnologia, ameaçando mover acções legais contra qualquer empresa que vendesse gravadores DAT nos EUA (2), e conseguindo atrasar vários anos a introdução destes gravadores nesse mercado. Finalmente, em 1992 o Audio Home Recording Act regulou a gravação digital (2).

Em linha com a aplicação tradicional do copyright nas outras “terríveis crises” para a indústria, como o caso da rádio, cassetes ou VHS, os legisladores decidiram que nenhuma empresa poderia ser processada pelo uso dos gravadores áudio e, particularmente relevante, que ninguém poderia ser processado «pelo uso não comercial […] para fazer gravações musicais analógicas ou digitais». Um dos objectivos declarados desta legislação foi mesmo o de «garantir o direito dos consumidores de fazer gravações analógicas ou digitais de música protegida para uso privado não comercial»(2).

A Internet mudou a escala da cópia e da partilha. Agora já não é só uma cassete para o primo ou para a namorada. Mas o princípio fundamental é o mesmo. A representação é digital, e todos nós temos direitos. O editor de discos não tem legitimidade para proibir a todos tudo o que lhe apetecer. Por isso devia-se aplicar o copyright da mesma maneira de sempre, circunscrito à regulação comercial e não interferindo com direitos pessoais. Dessa forma, em vez de censurar as descrições regularia apenas a sua comercialização.

Mas em vez de uma lei como essa de 1992, não só temos milhares de processos contra quem partilha ficheiros sem fins comerciais, como há censura de fóruns onde se partilha ligações e pessoas em tribunal por “facilitar” a troca ou até por terem criado software para partilhar ficheiros (3). A diferença hoje não é por ser digital, porque isso já era. E não é pela escala, porque os direitos das pessoas não desaparecem só porque muitos os podem exercer.

A diferença é que em 1992, a RIAA estava a lutar contra os interesses de empresas como a Phillips e a Sony. Hoje em dia, o lobby das editoras opõe apenas os interesses de pessoas como nós, sem dinheiro para comprar políticos. É por isso que agora, pela primeira vez, este sistema de regulação comercial serve para processar cidadãos por actos sem fins lucrativo.

1- Wikipedia, Digital Audio Tape
2- Wikipedia, Audio Home Recording Act
3- Wikipedia, Winny

Editado a 15-10 para corrigir 10 anos. Obrigado ao sxzoeyjbrhg pelo aviso.

quarta-feira, outubro 13, 2010

O novo SPoS da Sony.



Via o FriendFeed do Henry Winckelmann

terça-feira, outubro 12, 2010

Equívocos, parte 10. Agora mais radical.

Neste episódio, o Alfredo Dinis dirige a sua crítica ao “ateísmo radical”, mas não explica porque será este mais radical do que das outras nove vezes. O décimo equívoco é «A existência de Deus é uma hipótese cientifica e pode, por conseguinte, ser objecto da investigação dos cientistas, a qual poderá chegar a uma posição conclusiva sobre a existência ou não de Deus.» (1)

Realmente, há aqui vários equívocos. Primeiro, não se trata de uma hipótese acerca da existência de Deus. São muitas. Segundo, nem todas são científicas, porque uma hipótese é científica se, e só se, houver possibilidade de determinar se é verdadeira ou falsa. Muitas nem isso permitem. Terceiro, só uma hipótese que seja científica é que vale a pena considerar porque, se não o for, então não faz diferença se é verdadeira ou falsa. Se fizesse diferença podia ser testada e seria científica. Finalmente, e por isso, os crentes acabam por defender hipóteses científicas acerca dos seus deuses. Porque não interessa ter deuses irrelevantes, têm de propor deuses que façam alguma coisa que se veja.

Para apoiar a sua alegação, o Alfredo cita a Academia Nacional de Ciências dos EUA (NAS). «A ciência nada tem a dizer acerca do sobrenatural. A ciência mantém-se neutra acerca da existência ou não de Deus.» É pouco persuasivo. O financiamento da NAS depende da opinião pública, e 90% dos eleitores nos EUA acredita num deus pessoal. A maioria até acredita que a Terra tem dez mil anos, que foi criada numa semana e que descendemos todos de Adão e Eva. Cá em Portugal podemos dar-nos ao luxo, eu e o Alfredo, de dizer que isso são disparates. Mas num país que elege o Bush (duas vezes!) é preciso muito mais cuidado. Mais revelador do conflito entre ciência e religião é que, nesse país onde só um décimo das pessoas não acredita num deus pessoal, entre os membros da NAS – os cientistas mais conceituados dos EUA – 72% são ateus, 20% agnósticos e apenas 8% acreditam que existe um deus (2). Esta discrepância sugere fortemente que a ciência não é neutra acerca das religiões.

Mas não é preciso apelar à opinião popular para compreender que «A ciência nada tem a dizer acerca do sobrenatural» é um erro. Basta ver que, se assim fosse, a ciência nada poderia dizer acerca da fada Sininho, da astrologia, da cura por regressão às vidas passadas, dos videntes, dos fantasmas e de qualquer outra treta que se rotulasse “sobrenatural”. Esta ideia, obviamente falsa, resulta de um equívoco. Quando se diz que uma hipótese que não seja testável não é científica não se quer dizer que a ciência tem de ficar calada. Quer-se dizer que a ciência não a pode aceitar. Mas pode, e deve, rejeitá-la pelo disparate que é.

Devo mencionar duas objecções que os crentes levantam à rejeição científica das suas hipóteses. Uma é que as suas hipóteses acerca do sobrenatural são excepção, mesmo sendo impossíveis de testar como as outras que o crente rejeita. Parece-me seguro ignorar esta alegação porque, além de nunca ser devidamente justificada, nem os crentes conseguem decidir entre si quais as hipóteses que são excepção e quais a ciência pode rejeitar. Quando o Alfredo Dinis e o Jónatas Machado encontrarem um método para concordar nisto, logo vejo se há aí algo que mereça consideração. A outra é alegar, também do nada, que os objectos da sua crença são diferentes dos objectos de estudo da ciência. É falso. Os objectos em causa são, em todos os casos, as hipóteses. Seja na filosofia, na teologia, na ciência ou na fé, aquilo que se faz é decidir se acreditamos ou não na verdade de hipóteses.

Além disso, muitas das hipóteses que os crentes defendem são testáveis. Este é outro equívoco do Alfredo, assumindo que não é uma omissão propositada. Ele próprio defende, por crença religiosa, hipóteses científicas. Defende que Maria nunca teve relações sexuais, que Jesus esteve morto e ressuscitou, que há partes do nosso ser que sobrevivem à destruição do corpo, que o seu deus criou o universo, cura pessoas, e assim por diante. E como estas hipóteses são contrárias ao que os dados sugerem, o mais razoável é assumir que são falsas enquanto não houver evidências concretas que as apoiem.

O Alfredo gostaria que a ciência não levantasse dificuldades às religiões. Ou, pelo menos, que não as levantasse à sua; se refutar as outras, tanto melhor. Mas a ciência avança pela inferência à melhor explicação. E a melhor explicação para as religiões, incluindo a do Alfredo, é que são fenómenos sociais e psicológicos. Parafraseando Laplace, não precisamos da hipótese de existir algum deus, seja o do Alfredo, seja outro qualquer. É por isso que há uma correlação inversa entre a educação científica e a religiosidade. É por isso que a fracção de ateus é maior entre os cientistas, e tanto maior quanto mais conceituados são. E é por isso que, ao fim de séculos a apregoar a teologia como a rainha das ciências, hoje só querem é separá-las. Não porque a ciência não tenha nada a dizer acerca destas hipóteses mas porque não gostam do que ela diz.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo radical contemporâneo
2- Wikipedia, Relationship between religion and science

segunda-feira, outubro 11, 2010

Pensamento Crítico: 5- Falácias.

Aqui vai mais um capítulo. Estão a sair cada vez mais resumidos, mas a minha prioridade neste momento é ir acompanhando a matéria, o que dá pouco tempo para textos mais elaborados. Mas, vendo a coisa pelo lado positivo, é uma boa oportunidade para darem sugestões acerca da estrutura e do conteúdo, bem como apontarem omissões. Obrigado mais uma vez.

A versão mais recente pode ser descarregada está na página da documentação de Pensamento Crítico ou nestes endereços, em formato PDF e formato ODT.

Adenda: Corrigi algumas gralhas que o Francisco Burnay notou. Obrigado.

domingo, outubro 10, 2010

Treta da semana: WISDOM COACHING INTEGRAL®

A Vera Faria Leal é licenciada em Relações Internacionais e «Investigadora de Psicologia Espiritual, criou um grupo de investigação do Divino Feminino onde se estudam os arquétipos da Alma Feminina e se redescobrem as deusas Lusitanas, de acordo com um repto que lhe foi lançado por uma sacerdotisa do templo da Deusa, em Avalon, Glastonbury». É também «Formadora de Desenvolvimento Pessoal, criou o seu Método pessoal de Desenvolvimento transpessoal: WISDOM COACHING INTEGRAL®», como se pode ver na sua página pessoal (1). Com base neste Método, a Vera oferece um Curso de «WISDOM COACHING INTEGRAL® - MENTE E ALMA (®Todos os direitos reservados)»(2), que passarei a designar por WCI para poupar o caps-lock.

«É um Curso completo, um Programa extenso que visa aprofundar na excelência do Ser que você é. […] Este Método visa o crescimento integral do Ser, em todas as vertentes da vida e em todos os aspectos de si: alquimia emocional, reprogramação de crenças, sabedoria dos relacionamentos, abrir a mente e o coração à consciência de prosperidade, desenvolver a criatividade, integração de ensinamentos e valores.»(2)

Apesar das aparências, eu sou bastante sensível a estas coisas. Suscitam sempre no meu Ser uma certa inquietude, um grande assombro, e esta profunda questão existencial:

WTF!?

A Vera descreve que o seu método «é inspirado na estrutura universal dos cinco elementos (água, terra, fogo, ar e éter ou espírito) para integrar todas as dimensões da vida». À primeira vista, isto parece estranho. Por um lado, porque nenhum destes “cinco elementos” é elemento. São uma substância molecular, duas misturas, uma reacção química e uma hipótese descartada. Por outro lado porque, mesmo que fossem elementos, esta inspiração faria tanto sentido como estruturar um curso de psicologia no hidrogénio, oxigénio, carbono e azoto.

Mas esta abordagem nasce de um fundamento mais abrangente, que é partilhado por todos os profissionais da tretologia. Está patente na sua explicação do método de Luise Hay, um «conjunto de exercícios, técnicas e práticas que visam, fundamentalmente, trabalhar a consciência, ajudar-nos a cuidar melhor de nós próprios no todo que somos»(3). Ou nas suas previsões astrológicas para 2010, onde consegue falar durante dezoito minutos sem dizer nada de concreto, excepto que 2010 vai ser um “ano muito positivo”(4) para quase todos os signos. Deve-lhe ter escapado o PEC em ascendente.

O princípio subjacente é simples e lucrativo. É apresentar como certezas afirmações cuja verdade ninguém pode determinar. E exprimi-las de forma sonante mas tão vaga que nem se perceba exactamente de que se trata. É receita para muito negócio. Serve para astrologias, religiões, medicinas alternativas, macumbas, vidências, e até Métodos® de Coaching® Integral®.

Mas, no meio desta treta, ainda fui parar a uma coisa engraçada. Na sua página pessoal, a Vera Faria Leal dedica a todos os visitantes uma «antiga bênção celta». Pelo Google encontrei-a numa página de ditados e bênçãos irlandesas (5). E, logo no início da página, há uma quadra que mostra como este problema não é recente.

«When the eagle shall nest in the hollow glen
When mountain and fen shall from mists be free
When the priests shall no longer for gold be seeking
The crow shall be speaking as plain as we»


1- Vera Faria Leal. Atenção: site em Flash...
2- Vera Faria Leal, WCI. Atenção: em HTML, mas com javascript irritante e muitas cores.
3- Vera Faria Leal, Sapo Zen, Método Luise Hay
4-Vera Faria Leal, Sapo Zen, Previsões 2010 – Astrologia
5- Corsinet, Unusual Trivia Collection

Editado a 11-10, para tirar um acento a mais. Obrigado ao Zarolho, que mais uma vez demonstra que um olho bom é melhor que dois míopes.

sábado, outubro 09, 2010

Um clássico.



Via Disinformation

sexta-feira, outubro 08, 2010

Conhecimento, parte 1. Origens.

O Jairo Entrecosto pediu-me que respondesse a este alegado dilema: «se um conhecimento falha por não ser testado cientificamente, o método cientifico seria inválido, já que ele não se valida cientificamente a si próprio.» Ou seja, o conhecimento não pode ser só científico porque tem de haver algo fora da ciência que a valide. Esta ideia faz parte da receita para defender que é a crença no deus cristão que justifica a ciência, por ser um deus racional criador de um universo compreensível, e que foi o cristianismo que criou a ciência moderna. Junta-se umas pitadas de transcendente, um metafísico ou dois, fé e revelação que baste, e marina-se tudo em verdades absolutas e outras tretas. Para resolver um problema que nem sequer existe. O que valida a ciência é o mesmo método que a ciência segue. Experimenta-se e, se funciona, está validado. Mas para desfazer esta confusão tenho de começar do início.

Há dois milénios e meio, uns gregos perceberam que contar histórias com deuses e ninfas tem piada mas não esclarece nada. Então desataram a filosofar. Que é como quem diz, a pensar para encontrar respostas em vez de julgar que é tudo um mistério insondável da vontade divina. Foi uma ideia brilhante. Mostrou que, pensando, conseguimos abrir caminho em problemas tão diversos como o que é o bem, de que são feitas as estrelas, que deduções são válidas ou o que faz crescer os dentes. E filosofaram sobre tudo; dos átomos à virtude e da geometria à política. O que mostra que o conhecimento é um todo coerente e não é um molho de crenças disjuntas. À maior parte do que filosofaram já nem chamamos filosofia. Chamamos matemática, lógica, biologia, astronomia. Mas é tudo conhecimento. Ou, em latim, scientia.

É verdade que, no geral, o sucesso da filosofia grega foi modesto. Focavam demais o raciocínio sem procurar dados onde o fundamentar. Aristóteles, um dos melhores, chegou até a explicar porque é que os homens têm mais dentes do que as mulheres. Além da explicação ser pouco convincente, «os homens têm mais sangue e calor»(2), se tivesse contado primeiro veria que o número de dentes é o mesmo. Talvez tenha sido um problema cultural. Talvez tenha sido a falta de tecnologia; sem instrumentos de detecção, medição e registo, sem sequer um relógio decente, é difícil obter dados fiáveis. Ou talvez o enorme sucesso dos sistemas formais, como a matemática e a lógica, lhes fizesse julgar que era só preciso pensar. É uma ilusão que ainda hoje engana muitos.

Mas essa fica para outro post. Neste, salto já o império de Alexandre, os romanos, a China, e a conquista muçulmana, apontando só que havia mais progresso quando se conseguia organizar uma data de gente em sociedades dinâmicas. E boa parte do progresso se perdia quando se fragmentava tudo em comunidades estagnadas. Na Europa, o colapso do império romano levou à pasmaceira da Idade Média. Mil e tal anos praticamente sem nada de jeito.

Há quem diga que não foi assim tão mau mas, sinceramente, mesmo que não tenha sido tão, foi bastante. Enaltecendo o progresso medieval, o Alfredo Dinis e o João Paiva escrevem que «São impressionantes, por exemplo, os desenvolvimentos a nível de linguagem. A língua portuguesa (e muitas outras europeias) nasceu e cresceu, no seu essencial, durante a Idade Média»(3). Mas isto não foi “desenvolvimento” nenhum. Ninguém se pôs a inventar o português, o castelhano e o francês porque achou que dariam jeito. Pelo contrário. A fragmentação do latim foi consequência da perda de contacto entre estas populações depois da queda do Império Romano. Vê-se bem como terá sido a Idade Média, se é este o exemplo de inovação

Além do isolamento e do provincialismo, agravados pelo sistema feudal, e do conservadorismo da religião dominante, que guardava a “ordem divina” num universo prestes a acabar quando Cristo regressasse, a Idade Média sofreu também do problema de quem estava no poder ter todo o interesse em manter o status quo. O povo fica em baixo, o clero e a nobreza em cima, e ninguém abana o barco.

A ciência moderna deflagrou só com os descobrimentos e toda a revolução dessa época. A tecnologia que permitia a navegação dava também instrumentos para testar hipóteses. Os barcos fizeram mais ainda que as estradas dos romanos, trazendo ideias, cultura e informação de todo o mundo. Surgiu a burguesia, cujo poder dependia de inovar em vez de manter tudo na mesma. E a teoria começou a ter aplicação prática. Para fazer lentes, canhões, barcos e fortalezas. Mapas, planos de construção, e até tabelas de logaritmos, passaram a ser segredos de Estado. Foi esse conjunto de factores sociais, tecnológicos, económicos, e também o próprio conhecimento acumulado, que criou a ciência como conhecemos hoje.

A ciência não vem do cristianismo nem do menino Jesus. Já desde os filósofos gregos que sabemos que especular sobre deuses não esclarece nada. O que nos deu a ciência foi o mesmo processo que nos deu todo o conhecimento. Testar o que julgamos com aquilo que observamos. O que custou foi perceber que era isso que fazíamos sempre que aprendíamos algo novo. Foi preciso aprender muita coisa até perceber que mais nada serve para obter conhecimento. Não adianta pensar sem observar, nem esperar por revelações divinas, nem perder tempo com misticismos, transcendências e outros disparates. Até a lógica e a matemática, que pareciam dar vitória à razão pura, precisam de um fundamento empírico. Mas isso fica para o próximo episódio.

1- Jairo Entrecosto, Ludwig Krippahl e Ciência
2- The Ex-Classics Web Site, Aristóteles, Of the Teeth
3- Alfredo Dinis e João Paiva. Educação, Ciência e Religião. Gradiva, 2010 (p. 58)

Editado a 14-10 para corrigir umas gralhas.

quarta-feira, outubro 06, 2010

Formicário 1: preparar o berço.

“Formicário” é o nome pomposo para quatro ripas, silicone, e duas placas de acrílico com terra no meio. O ano passado encontrei uma formiga rainha perto da faculdade e trouxe-a para casa, mas não se deu bem na taça com terra. A meio de Agosto trouxe duas do Minho e fiz este formicário. Mas, quando as fui pôr lá dentro, não encontrei nada. Eram muito pequenas e provavelmente não tinha fechado bem as caixas improvisadas.

home sweet home

Mas o meu formicário não é um formicário qualquer. Além dos ingredientes normais, comprei também uma cabeça de esfregona, desmontei-a e entrelacei alguns dos fios para fazer isto:

a capilariedade ao serviço dos insectos

Assim posso controlar facilmente a humidade da terra sem regadelas que incomodem os inquilinos. Que foi a única coisa que ficou a faltar. Por sorte, as formigas aproveitaram o fim de semana prolongado para celebrar a República com uma orgia. Durante o passeio com a família apanhei uma rainha perto de Tomar e três em Vila Nova da Barquinha.

Como as formigas que mais se vê são obreiras estéreis, para criar um formigueiro é preciso esperar pelas formigas com asas, normalmente em dias quentes e húmidos, porque essas é que se reproduzem. Ou então andar por aí a destruir formigueiros até encontrar uma rainha, mas essa opção é pouco pedagógica. Se bem que acabe por ser eu a divertir-me mais com isto, a desculpa era criar um formigueiro para os miúdos. No entanto, também não adianta apanhar uma formiga com asas porque o mais certo é ser um macho. O macho, conforme a espécie, depois de acasalar só serve para beber cerveja no sofá ou morrer ao fim de uns dias. Por isso as formigas que interessam são as rainhas, e essas perdem as asas quase ao mesmo tempo que a virgindade.

Mas até são fáceis de identificar. Além de serem maiores que as irmãs, enquanto as obreiras têm o tórax do tamanho da cabeça, ou mais pequeno, as rainhas têm o tórax bastante maior, por causa dos músculos das asas. As fotos abaixo dão uma ideia do tamanho e das proporções. As quatro que aqui tenho são praticamente iguais, se bem que esta nas fotos seja mais clara quando iluminada por infravermelhos. Não sei porquê, mas como é a única que ainda não fez buracos, suspeito que seja mau sinal.

top of the world
smile

No canto da direita, pesando algumas décimas de grama, está esta formiga que passou a primeira noite a fazer o que se vê no vídeo abaixo. Estes dois minutos condensam cerca de seis horas de actividade:



Depois de acasalar, as rainhas ficam fotofóbicas e nunca mais querem ver luz na vida. Por isso, é importante pôr o formicário num sítio escuro. O meu está debaixo da minha mesa de trabalho, atrás do computador, onde além de escuro está quentinho. E tenho de filmar sem luz que elas vejam. Para isso, aproveito uma câmara Sony DCR-HC37, que tem a parte mecânica avariada mas dá para ligar ao PC. Esta tem um modo de filmagem com um led de infravermelhos ideal para formigas fotossensíveis.

No canto esquerdo ficaram duas formigas juntas, que devem ser irmãs. Se não fossem duvido que se dessem bem. No primeiro vídeo, ao minuto e meio, pode-se ver de relance o que aconteceu quando a formiga da esquerda encontrou aquela das fotos. Mas estas duas passaram a primeira noite encostadas ao canto e, depois de levar com água em cima, começaram o seu formigueiro. Infelizmente, estava entretido a filmar a do outro lado e perdi o início da obra. O vídeo abaixo condensa cerca de três horas de actividade nocturna.



Neste momento, a da foto continua a deambular, cada vez mais lenta; as irmãs parece contentes com a sua casa nova; e a da esquerda desapareceu. Admito que é estranho perder uma formiga de quase 2cm entre duas placas de acrílico, mas foi o que aconteceu. Não sei se terá ficado soterrada ou se terá feito um buraco que não se veja. Até espreitei pelo lado de trás e nada. Mas darei notícias assim que souber o que se passa.

terça-feira, outubro 05, 2010

Uma má decisão.

Os comentários no Público vão passar a depender de aprovação prévia. Há uns dias, no blog do José Queirós, o provedor dos leitores do jornal, comentei que me parecia melhor fazerem como é prática noutros meios, desde fóruns de discussão à Wikipedia. Em vez de exigir que cada intervenção seja aprovada por uns antes de ser vista por todos, algumas pessoas vão limpando o lixo removendo os comentários que não forem apropriados (1).

A diferença pode parecer pequena, mas é fundamental. A aprovação prévia é o que os jornais já faziam, em menor quantidade mas segundo o mesmo princípio. O jornal recebia cartas dos leitores, decidia quais publicava e só se lia o que os editores aprovassem. Podem chamar-lhe “caixa de comentários” mas, se exigem aprovação prévia, não é mais que um espaço para as cartas dos leitores. O mesmo de sempre.

Permitir comentários é diferente. É agregar na mesma página, para acesso fácil, os textos editados pelo jornal e o que cada leitor escreve à sua responsabilidade. Só assim se cria um espaço de discussão em vez de uma montra com aquilo que o jornal decide mostrar.

É claro que muita gente não sabe usar as liberdades que tem, desperdiçando-as em tentativas infantis de incomodar os outros. Paciência. É um problema que se pode reduzir a níveis aceitáveis apagando regularmente o que não interessa. Basta que o sistema de comentários dê um pouco mais trabalho a quem comenta que a quem apaga. Com verificação de caracteres ou exigência de registo prévio, por exemplo. Nada de oneroso, mas o suficiente para dar alguma vantagem aos moderadores, que assim podem apagar umas dúzias de disparates no tempo que demora alguém a escrever um.

A solução escolhida pelo Público é má por várias razões. Perdem a oportunidade de ter um espaço de discussão, optando por uma mera extensão da política editorial do jornal. Essa perda não passa despercebida aos leitores que, inevitavelmente, ficarão a pensar no que o jornal terá decidido prender no filtro. E porquê. Com esta opção, o jornal assume implicitamente a responsabilidade pelos comentários. Se escolhem o que fica à vista, tudo o que incomodar será culpa dos editores, e não de quem o escreveu. Têm também muito mais trabalho. Estranhamente, em resposta ao meu comentário, o José Queirós escreveu que «face à dimensão que o problema atingiu, temo que não baste a existência de "moderadores que, conforme a sua disponibilidade, vão apagando os comentários que não contribuam para o tópico". Penso que seria uma luta desigual» (1). Penso que o José não pensou bem no problema.

Precisamente por causa do número de comentários disparatados, é preferível dar uma vista de olhos e a apagar os mais imbecis, que até costumam ser fáceis de ver por virem em maiúsculas. O método que o José defende é muito mais oneroso para os moderadores, pois exige que estes se responsabilizem por cada comentário que deixam passar. Ou seja, têm de ler mesmo tudo, linha a linha. O trabalho que isso dá é ordens de grandeza maior, além de incomodar todos os leitores que querem participar de forma produtiva e que têm de esperar para ver o seu comentário aprovado. Castiga-se todos pelas faltas de alguns.

Mas o que mais me incomoda nisto é outra coisa. Que, devo deixar claro, não tem nada que ver com censura, um chavão comum nestes casos. O site é deles, apagam ou põem o que querem, e quem não gosta que escreva noutro lado. O que me incomoda aqui a justificação. Segundo o José Queirós, só publicar o que o jornal aprova «é, sem dúvida, o [caminho] do respeito por quem o lê». Discordo por completo.

Se me querem respeitar como leitor, então assumam que sou um adulto minimamente inteligente e capaz de decidir que comentários têm mérito ou não. Não assumam que sou uma criança impressionável, flor de estufa que nunca leu um palavrão ou um imbecil que julga verdadeira qualquer difamação anónima que leia. Se querem filtrar comentários porque vos incomodam, têm todo o direito de o fazer. Mas não digam que é para o meu bem.

E este paternalismo não é só incómodo. É prejudicial. Muitos começam a usar a Internet sem perceber o que é ouvir toda a gente, mesmo quem diariamente ignoram ou fingem só existir para dar graça ao telejornal. E muitos começam a usar a Internet sem saber o que é ser ouvido por toda a gente. Nunca ninguém lhes ligou, por isso nunca pensaram no que poderiam dizer se lhes dessem atenção. A melhor maneira de aprenderem é deixando-os lidar uns com os outros. Com aquilo que “não se diz”. Com o poder de ser ouvido. Com a liberdade, a sua e a dos outros. E com isto podem amadurecer e ficar mais tolerantes, que não só é a única solução verdadeira para o problema dos comentários – o resto é meramente cosmético – como também ajuda a mitigar outros problemas, dentro e fora da Internet.

O pior que os papás podem fazer é segurar a mão de cada menino e decidir o que ele pode dizer ou ouvir. Assim ninguém aprende. E é irónico que sejam os jornais, que nos deviam mostrar a sociedade como ela é, a tentar pintar tudo de cor-de-rosa. Para o nosso bem...

1- Provedor dos Leitores, José Queirós, Os jornais também escolhem os seus leitores
2- Provedor dos Leitores, José Queirós, Uma decisão útil e corajosa

domingo, outubro 03, 2010

Treta da semana: o que a ciência não responde.

A ciência é muito diferente das religiões. A ciência exige evidências e é profícua a gerar hipóteses. Em contraste, a chefia de qualquer religião gosta pouco de mudar de opinião, menos ainda de admitir erros, e os religiosos profissionais ganham a vida como peritos em deuses, almas, céus e infernos, tudo ideias parcas em evidências. E, para mal das religiões, a ciência funciona estupendamente bem precisamente porque tem essas características que as religiões não querem.

Assim, as religiões precisam de encurralar a ciência. A sua única safa é dar a ideia de que a ciência, apesar de muito boa, só serve para algumas perguntas de interesse relativo. Somando-lhe a premissa optimista de que a religião responde, na ponta da língua, a tudo o que a ciência não esclarece, fazem crer que a ciência se fica por assuntos menores e a religião é que é importante. É claro que tem de ser a religião certa. Mas como, nestas coisas, “certa” é sinónimo de “minha”, ao religioso este requisito não pesa.

Este malabarismo depende muito da percepção da ciência como escrever equações no quadro, olhar para um microscópio e proferir algo incompreensível ou banal. O que se vê nas séries de televisão. Sendo assim, é evidente que a ciência não sabe dizer quem nos ama, se os nossos amigos são de confiança, e menos ainda ajudar a apreciar a beleza do arco-íris ou a dar sentido à vida. Isso não se vê ao microscópio nem se publica em revistas científicas.

Mas a ciência não é microscópios e artigos. Esses fazem parte da ciência moderna, é certo, mas porque a ciência é feita por nós, humanos, que somos muito limitados. Temos um cérebro minúsculo que só nos permite abarcar uma pequena fracção do conhecimento que vamos adquirindo. Por isso precisamos de comunicar, partilhar, ensinar e aprender, e de muita especialização, para ir abrindo caminho pelo muito que ainda não sabemos.

Os nossos sentidos também são uma porcaria. Dão nos uma ideia vaga das coisas, pouco quantificável, e apanham muito pouco da informação que recebemos. Precisamos de instrumentos para medir, detectar, registar e comparar coisas demasiado grandes, pequenas, rápidas ou lentas para que as observemos directamente. E somos, por natureza, aldrabões. Sem um sistema complexo de registos, avaliação pelos pares, publicação de métodos e confirmação independente, em pouco tempo toda a ciência ficava cheia de fantasias e dados inventados. Coisas como «No princípio, criou Deus o céu e a Terra».

Mas julgar que a ciência é isto é como achar que eu sou um par de óculos. Isto são só próteses. A ciência é muito mais fundamental. É a soma do conhecimento que temos e é, sobretudo, o processo de o obter. Um processo que exige corrigir erros e colmatar lacunas considerando hipóteses tais que, conforme os dados obtidos, se possa determinar se correspondem ou não à realidade. Como, por exemplo, a hipótese de que uma mãe ama o filho. Este é um exemplo que o Alfredo Dinis já deu há uns tempos e que encontrei de novo no livro “Educação, Ciência e Religião”, que o Alfredo Dinis escreveu com o João Paiva (1).

É evidente que uma mãe que ama os filhos tem um comportamento diferente de uma mãe que não os ama, diferença esta que permite testar a hipótese confrontando-a com os dados que se tem. Este teste é o princípio fundamental da ciência, e é precisamente nisto que a religião falha. Ninguém decide que é amado pela mãe porque lho disse o padre, porque o viu escrito num livro ou porque ouviu numa encíclica papal. E todas as questões para as quais haja uma resposta correcta, para as quais as outras respostas estejam erradas, só se pode responder testando hipóteses. Ou seja, fazendo o que faz a ciência e não o que fazem as religiões.

Depois há as outras questões. Questões como se a música de Beethoven é melhor que a de Wagner, para aproveitar outro exemplo do Alfredo Dinis e do João Paiva. A ciência não pode encontrar a resposta para qualquer destas questões porque não há resposta que encontrar. Cada um terá de criar a sua, pois algo como comparar músicas depende de uma avaliação subjectiva. E, por isso, as religiões também não podem encontrar as respostas certas. Cada uma limita-se a inventar as suas, mas sem admitir que a resposta é subjectiva. Seja a declarar que Wagner é melhor que Beethoven, que o preservativo é mau, que se deve adorar Cristo em vez de Krishna (ou vice-versa) ou que o sentido da vida é dado por este ou aquele deus, as religiões dão respostas ao que a ciência não responde apenas porque aldrabam. Inventam, e depois dizem que foi revelação divina.

Mas mesmo neste tipo de questões a ciência pode ajudar. Por um lado, porque nos revela que a resposta depende de preferências subjectivas. Que não pode ser encontrada mas tem de ser criada por nós. Isto preocupa os mais inseguros, que sentem falta do absoluto, mas é mais honesto do que aquilo que as religiões fazem. Por outro lado, permite compreender o que estamos a avaliar. Se o arco-íris é bonito ou feio, cada um terá de decidir por si. Mas sempre ajuda saber que o arco-íris é a difracção de luz nas gotas de água e não é onde os duendes escondem o ouro, nem uma ponte para outro mundo, nem um sinal de que Deus se arrependeu do dilúvio. Mesmo sendo uma avaliação subjectiva, é preferível fazê-la sem ter a cabeça cheia de tretas.

1- Companhia dos Filósofos, Educação, Ciência e Religião

sábado, outubro 02, 2010

Pensamento Crítico: 4- Avaliação de argumentos.

Este quarto capítulo cobre um pouco mais matéria que os anteriores mas tive de resumir bastante, por falta de tempo. Tenciono voltar a este com mais tempo, expandir algumas partes e, principalmente, ligá-lo melhor. Sinto que há passagens em que salto de umas coisas para outras de uma forma pouco fluida. Por isso, agradeço desde as vossas críticas e sugestões, principalmente acerca destes problemas. Obrigado pela ajuda.

Como de costume, a versão mais recente está na página da documentação da disciplina de Pensamento Crítico, e os links directos são estes, em formato PDF e formato ODT.