sábado, fevereiro 28, 2009

Não é bem o mesmo...

Hoje, no Público, o José Pacheco Pereira escreveu que «A falta de proporção e relevância, típica da agenda dos blogues, transferiu-se para a comunicação social»(1). A tese de Pacheco Pereira é que houve um «empobrecimento e uma perda de autonomia temática da blogosfera» e que na «comunicação social também houve um empobrecimento, na medida em que a sua agenda se tornou cada vez mais dependente dos blogues». Segundo Pacheco Pereira, é por «razões que têm a ver com a origem social dos seus autores, mas também da mecânica comunicacional e política do meio, há temas típicos dos blogues, e cada vez menos diferenças entre esses temas e os da comunicação social em geral. O resultado é que a perda de proporções, de relevância, de valor social, típica dos discursos radicais e politizados, impregna a comunicação social quase sem se dar por isso.»

Como exemplo dá «temas marginais» como casamento homossexual ou a eutanásia, que diz serem abordados «em detrimento de questões sociais muito mais sérias e que quase não existem nos blogues, como seja os despedimentos, as condições laborais, a condição operária, o mundo rural, etc.» Ele tem alguma razão, mas só alguma. Há realmente uma sobreposição crescente nos temas abordados pelos blogs e pela comunicação social. Mas Pacheco Pereira confunde o propósito de blogs, jornalismo e comunicação social, e falha as razões principais.

A comunicação social é o negócio de vender publicidade. Algumas revistas também fazem dinheiro a vender papel, mas o grosso do negócio, e o seu objectivo, é vender a atenção da audiência. E o jornalismo é apenas uma de muitas formas de conseguir esta atenção. Neste caso, trocando-a por informação fiável e relevante. Um blog está para o jornalismo ou comunicação social como um telemóvel está para um programa de rádio. Não é negócio nem é serviço informativo. É conversa. É por isso que os temas abordados nos blogs não são só notícias relevantes ou de valor social. A crise económica é um problema mais grave que o casamento homossexual. Os motins no Bangladesh são uma tragédia muito maior que a apreensão de um livro de pintura. Mas isso são notícias e nem todas as notícias são bom tema de conversa.

E na comunicação social só uma pequena parte pode ser notícias. O resto – quase tudo – tem de ser conversa. Mesmo que me interessasse saber quais os jogadores lesionados da equipa não-sei-quantas, isso é coisa para duas frases ou meia dúzia de segundos. Para prender a atenção da audiência é preciso mais que jornalismo. É preciso muita treta. E isso a comunicação social sempre teve. Quando eu era miúdo lia a Maria e a Crónica Feminina em casa da minha avó, por isso não me espanta a falta de relevância dos temas abordados pela comunicação social. Talvez se o Pacheco Pereira tivesse tido esta experiência não culpasse tanto os blogs.

Mas aceito que estas novas tecnologias têm forçado mudanças na comunicação social. Só que a causa destas mudanças é mais profunda do que o radicalismo político ou enviesamento social que o Pacheco Pereira propõe. Antes dos blogs, a comunicação social, além de informar e de entreter, servia também para comunicar. Avelino de Almeida relatou para o jornal O Século o que se passou em Fátima a 13 de Outubro de 1917 (2). Escreveu sobre o que as pessoas lhe disseram, como agiram, o que pensavam. A reportagem serviu para quem lá estava comunicar com os leitores. Só num sentido, escrito pelo jornalista e revisto pelo editor, mas comunicar à mesma.

Hoje assistíamos a tudo pelo Twitter e blogs de quem lá estivesse, de portátil ao colo, a postar imagens e a comentar. Meia hora depois do milagre já estavam os vídeos no YouTube e os posts da Lúcia já tinham uns milhares de diggs. O Avelino de Almeida despachava dois ou três parágrafos para a página do jornal, só a noticiar o acontecido, e nos dias seguintes logo fazia uma análise mais aprofundada, lendo os vários relatos, trocando emails com alguns intervenientes e investigando as finanças obscuras do comércio de milagres. Depois vinha o Prós e Contras e a treta do costume. Ou seja, a conversa.

O jornalismo continua a ser importante, das notícias curtas às reportagens de investigação. Mas o jornalismo é uma pequena parte da comunicação social. Só com análise objectiva e informação faz-se muito pouco. E, enquanto meio de comunicação, a comunicação social foi ultrapassada pela comunicação pessoal. Já não tem o monopólio da conversa. É por isso que, agora, muito da comunicação social é resposta ao que se discute em blogs e twitters e afins. Se não se mete na conversa ninguém lhe liga nenhuma.

1- Reforçando a diferença entre comunicação pessoal e comunicação comercial social, o texto é reservado a assinantes. Que eu não sou, por isso muito obrigado pelo email com a notícia.
2- O Século, 15-10-1917, COMO O SOL BAILOU AO MEIO DIA EM FÁTIMA (pdf)

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Legal, 4.

«A Origem do Mundo», pintado em 1866, é um dos quadros mais conhecidos de Gustave Courbet, mestre do realismo. Em Braga, alguém se queixou da púbis da senhora na capa de livros sobre pintura e, por «medida cautelar», os agentes da PSP apreenderam os livros (1). O tribunal depois decidirá se uma senhora despida é pornografia ou não, mas primeiro o que importa é apreender. Entretanto, a justiça usa os nossos impostos para decidir por nós que partes do corpo se pode ver em público.

Em Torres Vedras, também por queixa de um cidadão com pouco que fazer, o tribunal ordenou que a autarquia retirasse da montagem de carnaval uma imagem que presumiu pornográfica. Numa rábula ao Magalhães, o boneco do computador mostrava uma pesquisa por “mulheres” no Google (2). Além do desperdício de recursos, afinal «a queixa foi acompanhada por fotos desfocadas que terão enganado a magistrada, levando-a a pensar que eram imagens pornográficas»(3). Outro bom exemplo de justiça. Em caso de dúvida, censura-se e apreende-se. Depois logo se pede imagens focadas. É triste que a liberdade de expressão valha menos até que uma acusação infundada de pornografia.

Em Itália, um professor do ensino público foi suspenso 30 dias, sem vencimento, por retirar da parede da sala de aula uma imagem de tortura. No final da aula repunha sempre a imagem no sítio, o homem pregado a uma cruz e a morrer em agonia. Não censurou, não apreendeu e não reprimiu. Apenas considerou que a imagem não era apropriada a uma aula, nem como símbolo religioso nem como retrato da crueldade humana (4).

Se numa procissão ou livraria mostram imagens de alguém a morrer crucificado ninguém intervém. E se na sala de aula estiver um poster com alguém despido até exigem que o professor o retire. Mas se o professor não quer imagens de tortura ou a livraria mostra pessoas nuas é caso de polícia.

A Origem do Mundo

Não acho o quadro muito bonito. Parece que o ângulo não favorece a senhora. Mas percebo que não era para ser bonito e reconheço o mérito artístico. E não me incomoda, ao contrário das imagens de um tipo cheio de sangue pregado a uma cruz. Isso parece-me arte de muito mau gosto. Mas gostos não se discutem e aceito que haja quem se excite com coisas que eu não gosto. Não é esse o problema.

O problema é a polícia andar a confiscar livros de pintura ou bonecos de carnaval. O seu trabalho é proteger-nos do crime e não das imagens de mulheres nuas. Com essas posso eu bem, muito obrigado. Principalmente, o problema é esta religião deturpar os valores morais de tal forma que faz proibir a nudez enquanto enaltece a crueldade. Se Deus é amor deve haver símbolos melhores que um homem pregado a uma cruz. O quadro de Courbet, por exemplo.

1- AEIOU (Lusa), 25-2-09, Braga: Livreiro apresenta queixa em Tribunal contra apreensão pela PSP de livro considerado "pornografico"
2- Público, 19-2-09, Carnaval de Torres Vedras: câmara lamenta que PGR censure sátira que não viu
3- Correio da Manhã, 20-02-09, Censurado Carnaval de Torres Vedras
4- BBC, 18-2-09, Italy crucifix row teacher barred
A imagem foi copiada deste post no De Rerum Natura.

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Miscelânea criacionista: A probabilidade do milagre.

O Jónatas Machado escreveu que a «probabilidade de uma “simples” célula surgir por acaso foi estimada em 1 em 1057800 É um 1 seguido de quase sessenta mil zeros. Não se sabe de que chapéu saiu a “estimativa” mas o número é impressionante. Pelo menos, para quem nunca fez destas contas.

O estádio José Alvalade tem cinquenta mil lugares. Quando enche, a probabilidade de cinquenta mil pessoas se sentarem naqueles lugares em vez de noutra combinação qualquer é de um em 10200000*. É 10140000 vezes menor que a probabilidade “estimada” de uma célula surgir por acaso. Mas acontece. Na verdade, se o estádio encher, de alguma maneira se terão de sentar. E qualquer combinação será terrivelmente improvável. O que demonstra que cálculos como estes não servem para nada.

Mas é verdade que um cristal de sal de cozinha, com 100,000,000,000,000,000,000 átomos dispostos numa estrutura regular, não é coisa que se forme por acaso. Tal como as proteínas, as células e os seres vivos em geral. Para explicar a ocorrência regular de coisas que parecem tão improváveis é preciso teorias como a física, química ou evolução. E as teorias científicas de hoje até podem incluir o acaso nas explicações. Mesmo quando se refere a factores cujos detalhes desconhecemos, como na meteorologia ou epidemiologia, o acaso é quantificável em modelos estatísticos rigorosos. E testáveis. E na mecânica quântica o acaso é mesmo a ausência de causa. Não é o desconhecido. É uma propriedade conhecida, e quantificada, dos sistemas sub-atómicos.

Até ao século XVII o acaso era a sorte, a insondável vontade dos deuses ou o destino misterioso. A ideia de quantificar probabilidades, como o Jónatas fez, é muito recente e só surgiu da tentativa de lidar com o desconhecido como sendo algo natural em vez de um capricho divino. O criacionismo defende uma visão primitiva onde tudo se deve a espíritos, deuses e demónios mas, ao mesmo tempo, finge legitimar-se pela abordagem oposta. Este argumento criacionista propõe que é tão improvável que a vida surja por acaso que só pode ter surgido por milagre, como descrito na Bíblia. Além de fingir que se quer explicar a origem da vida com um “olha... calhou”, confunde a implausibilidade das suas premissas com justificação para crer em milagres.

David Hume definiu um milagre como uma transgressão das leis da natureza por intervenção divina. Por isso, argumentou, nunca temos justificação para aceitar o testemunho de um milagre. É sempre mais razoável assumir que alguém se enganou, coisa para a qual não é preciso violar leis nenhumas. Se eu desenhar um triângulo com quatro lados é porque me enganei. Não é indício de uma transgressão milagrosa das leis da geometria. E isto é especialmente pertinente no caso de um livro antigo onde autores anónimos transcreveram histórias acerca de uma alegada criação divina que ninguém presenciou.

E isto não exige qualquer "premissa naturalista". É apenas consequência das limitações do nosso conhecimento. Nós só podemos encontrar evidências para uma hipótese se soubermos como ligar as evidências à hipótese. Ou seja, se compreendermos uma relação regular entre o indício e o indiciado. A porta arrombada e o assalto. As pegadas na lama e o cão que as deixou. Mas se a hipótese é de um milagre então, pela própria hipótese, foram suspensas todas as relações regulares que conhecemos como leis da natureza e não podemos julgar nada como sendo evidência a favor dessa hipótese.

Por isso o criacionismo não dá evidências de um milagre quando afirma que «a probabilidade de uma “simples” célula surgir por acaso foi estimada em 1 em 1057800». Apenas sugere que o cálculo partiu de premissas erradas. Quanto ao milagre, não temos como estimar a sua probabilidade sabendo que a célula existe nem a probabilidade da célula assumindo que o milagre ocorreu. E não nos adianta de nada. “Milagre” é apenas um sinónimo do sentido antigo de “acaso”, aquela ideia vaga e misteriosa que havia antes de se descobrir como quantificar a incerteza.

* 50,000 vezes 49,999 vezes 49,998 e assim por diante até ao 2, porque o primeiro a comprar o bilhete pode escolher qualquer um de cinquenta mil lugares, o segundo tem 49,999 à escolha, etc.

1- Comentário em Evolução: Eucariotas.

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Questionando o meu ateísmo.

Deus também diz Que Treta!

Obrigado pelo link, por email. A imagem veio do Süddeutsche Zeitung. Apesar da mensagem ser muito mais explícita que a cara desfocada de Jesus ou de Maria, os crentes permanecem silenciosos a seu respeito...

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Evolução: Eucariotas.

Há dias o António Parente perguntou «Como se passou da célula procariota à eucariota?»(1), explicando que leu algures que «a ausência de resposta a estas duas perguntas é uma falha da teoria da evolução.» Nem por isso.

Os procariotas são seres simples, unicelulares, cujas células não possuem compartimentos internos. Não têm o núcleo separado do citoplasma nem organelos como mitocôndrias e cloroplastos. Dividem-se em dois domínios*, Archea e Bacteria, distinguindo-se entre si, principalmente, por diferenças na composição da membrana e parede celular, nos mecanismos de transcrição do ADN e na síntese de proteínas. Os organismos do domínio Bacteria tendem a ser mais prolíferos enquanto os Archea se encontram principalmente em ambientes extremos. O terceiro domínio, Eukarya, contém todos os organismos cujas células têm um núcleo envolto numa membrana, organelos celulares e várias estruturas internas complexas. As células eucariotas são mais capazes de cooperar em colónias, formando até organismos multicelulares como nós. E, provavelmente, foi assim que surgiram. Pela cooperação de várias células mais primitivas.

Os mecanismos de transcrição e síntese proteica dos eucariotas são semelhantes aos dos Archea. Mas alguns organelos celulares são mais parecidos com Bacteria. As mitocôndrias, os organelos onde as nossas células usam o oxigénio para produzir energia, parecem bactérias aeróbicas. Têm o seu próprio ADN, não têm núcleo, e os seus ribossomas, as enzimas que sintetizam proteínas, são semelhantes aos ribossomas de Bacteria e diferentes dos outros ribossomas da célula eucariota. O mesmo acontece com os cloroplastos, os organelos das plantas onde ocorre a fotossíntese.

Semelhanças como estas sugerem que as células eucariotas descendem de um Archea que foi hospedeiro de parasitas bacterianos. A doença do legionário, causada pela Legionella pneumophila, é um exemplo famoso de parasitose intracelular. Esta bactéria cresce dentro dos macrófagos humanos e também prolifera dentro de amibas, um dos nossos primos eucariotas. Há cerca de dois mil milhões de anos, a julgar pela idade das rochas mais antigas onde se conhece vestígios de eucariotas, uma célula Archea terá sido infectada de forma semelhante por uma célula do domínio Bacteria. Terão proliferado juntas até que, com o passar das gerações, a relação se tornou simbiótica e nasceram os Eukaria.

A ausência de resposta a esta questão não é uma falha na teoria da evolução. Até porque a questão está respondida. A resposta é tentativa e muitos detalhes estão por explicar, mas se considerarmos a dificuldade da tarefa isto não é de estranhar. Já é difícil perceber o que os micróbios fazem hoje. Deslindar o que andavam a fazer há dois mil milhões de anos atrás é um feito considerável. E se tivermos em conta que nada disto faria sentido sem a teoria da evolução, parece muito mais um triunfo que uma falha.

É a explicação, e não a sua ausência, que mostra o muito que ainda temos de fazer para compreender bem a evolução. Conseguimos prever mudanças graduais pela acumulação de pequenas modificações. Como em qualquer disciplina. Compreendemos a variação das frequências de genes em populações, o movimento das placas tectónicas o desgaste de um pneu. A teoria da evolução que temos hoje dá-nos bons modelos para acontecimentos frequentes, ou até raros, desde que ocorram uma vez em dezenas, centenas ou milhares de gerações. Porque com o passar de milhões de anos tudo isto se torna comum e previsível.

Mas a origem dos eucariotas deveu-se a acontecimentos que só ocorreram umas poucas vezes em milhares de milhões de anos. Esse tipo de coisas é muito difícil prever. Tal como não podemos prever um terremoto ou o instante em que o pneu vai rebentar, se estivéssemos prestes a presenciar a origem dos eucariotas não o conseguiríamos prever. Só depois de observar os seus efeitos é que podemos tentar explicar o que se passou.

E enquanto que o terremoto e o rebentamento do pneu são acontecimentos salientes, os primeiros eucariotas eram idênticos a muitos outros Archea que na altura hospedavam parasitas bacterianos. Isto responde à outra pergunta do António Parente. «Existem registos fósseis dos filos?». As grandes diferenças entre estes filos só aparecem com o passar das gerações. Quando recuamos até à divergência inicial as diferenças são sempre modestas.

* Segundo o sistema de três domínios proposto por Carl Woese em 1990. Noutros sistemas são considerados reinos.

1- Comentário em A importância de ser aborrecido.

domingo, fevereiro 22, 2009

Treta da Semana: Portugal Místico.

Finalmente, um «portal de temas esotéricos em português de Portugal»(1). Pode parecer contraditório divulgar o esoterismo na Internet, visto a palavra referir ensinamentos secretos reservados apenas a adeptos selectos de uma disciplina. Mas não é. Não é porque, aos olhos de quem não foi iniciado no esoterismo, estes documentos parecem um perfeito disparate. É um plano baldrickiano para esconder os segredos mais profundos do universo à vista, e chacota, de qualquer um.

O portal aborda temas como a «Biotipologia Humana», que classifica as quase sete mil milhões de pessoas do mundo em quatro temperamentos. Quatro. É para verem como somos uma espécie monótona. «A classificação dos quatro temperamentos [teve] a sua origem no estudo dos Quatro Elementos: Água, Terra, Fogo e Ar»(2). Numa disciplina menos esotérica já teriam descoberto que isto não são elementos. A terra e o ar são misturas de compostos, a água é uma substância molecular e o fogo é um aspecto visível da combustão. E elementos de verdade há muito mais. Mesmo que usassem só os estáveis ficavam com quase oitenta temperamentos. É claro que a tabela periódica não tem nada a ver com a nossa personalidade. Mas como isto é esoterismo tanto faz. Proponho por isso modernizar temperamentos antiquados como este

«BIOTIPO HEPÁTICO (colérico)
[...]O temperamento do biotipo hepático é honestíssimo, cujas características são a fidelidade, a dedicação, protegendo o seu pai ou amigos. Possui memória investigativa o que o leva a aceitar um conhecimento novo só após estudá-lo. É intuitivo.»
(2)

substituindo-os por algo mais moderno:

BIOTIPO SÓDICO (cáustico)
O temperamento sódico é muito impulsivo. Caracteriza-me por reagir violentamente com a bebida mas tem uma atitude positiva. Se acompanhado do tipo clórico pode dar tempero a qualquer festa, mas cuidado com os exageros. São conhecidos pelos problemas de hipertensão, principalmente os que causam aos outros.


Também gostei do artigo que ensina a renovar a energia do lar. Nada de conselhos aborrecidos como pôr lâmpadas fluorescentes ou desligar os aparelhos que ficam em standby. Vai directo ao que é importante.

«A entrada principal da casa é indicada sempre pelo norte. Se isto não for possível, coloque ao norte uma imagem do Arcanjo Mikael, o protetor dos lares contra assaltos, energias negativas e outros males, ou uma imagem de um Buda de costas para a porta, ou ainda de um elefante de presas viradas para cima de costas para a porta.
A energia da casa gira naturalmente no ambiente. A sua saturação permanece nos cantos; portanto remova dos cantos, traças, teias de aranha e outros insectos. Um hábito que temos ao limpar nossa casa, depois que varrermos, é o de colocar a sujidade num canto. Isto não é apropriado.»
(3)

Quanto à sujidade concordo que o caixote do lixo é mais apropriado. Quanto ao resto, prefiro arriscar a saturação de energia nos cantos. Porque as alternativas são abrir um buraco para a sala do vizinho ou ficar com a casa a parecer a loja dos chineses.

Mas gostei do espirito ecuménico deste esoterismo. «Não esqueça de ter em mente sempre uma oração apropriada às suas crenças.»(3) Seja a Jahve ou ao Duende das Peúgas Sem Par, não importa. O que conta é a intenção. Porque o efeito, na verdade, é sempre o mesmo.

1- Portugal Místico
2- Portal Místico, Biotipologia Humana
3- Portal Místico, Renove a Energia do Lar

sábado, fevereiro 21, 2009

Moral objectiva.

A alegada falta de uma “moral objectiva” é uma critica comum ao ateísmo. Mas nunca fica claro o que querem os críticos dizer com isso, nem como um deus resolveria esse suposto problema. O Jónatas Machado dá mais um exemplo ao afirmar, sem justificação, que «O único que pode estabelecer critérios morais objectivos é um Deus eterno, infinito, omnipotente e omnisciente.»(1)

No sentido mais forte, “objectivo” quer dizer referente ao objecto. A carga do electrão é uma propriedade objectiva neste sentido. Mesmo que desaparecessem todos seres sensíveis do universo, todos os sujeitos, os electrões continuariam a ter a mesma carga. Mas se desaparecessem todos os sujeitos não haveria moral. Não pode haver moral objectiva, neste sentido forte, porque só os sujeitos têm valores. Os objectos, enquanto tal, não se portam nem mal nem bem. Além disso, se a moral fosse objectiva neste sentido não era preciso deuses para nada. As coisas já seriam, por si, boas ou más, e postular um deus como fundamento da moral seria como postular um deus como fundamento para a carga do electrão. Há quem o faça, mas é disparate.

Noutro sentido mais fraco, “objectivo” quer dizer simplesmente que não varia de sujeito para sujeito. E isto sim é uma parte importante da ética. Os valores morais devem ser objectivos no sentido em que uma acção moralmente correcta para um dos intervenientes tem que ser moralmente correcta para todos. Não posso dizer que é moral eu fazer uma coisa aos outros enquanto defendo ser imoral que ma façam a mim se as circunstâncias se inverterem.

Mas mesmo com esta noção de objectividade é disparate assentar a moral num deus. A moral só é objectiva por ser universal e invariante de sujeito para sujeito. Se o Jónatas quer eleger um sujeito como fonte única da moral então propõe uma moral subjectiva, e não importa que esse sujeito seja um deus ou que o escrevam com letra maiúscula.

Fundamentar as regras de conduta na vontade de um deus é rejeitar a ética. Por muito benevolente que esse deus seja, ou o que ele ordena é objectivo no sentido de não variar de sujeito para sujeito e então já seria moral mesmo que ele não o ordenasse, ou o que ele ordena não cumpre este requisito de objectividade e é imoral. Seja como for, não é o deus que pode dar a moral. “Não matarás” é uma boa regra moral se for uma regra universal aplicada a todos os sujeitos em certas condições. Mas se vem de um deus que volta e meia massacra quem lhe apetece não é uma regra moral. É um capricho de um ditador sem escrúpulos.

Na prática, o que os crentes como o Jónatas propõem é ainda pior. Apesar do que o Jónatas afirma, não é verdade que ele tenha contacto directo com o seu suposto deus. O que ele propõe como fonte da moral são normas que, além de subjectivas, nem sequer foram elaboradas com uma motivação ética. Foram escolhidas por alguns lideres religiosos para fins políticos e num contexto social muito diferente do nosso. Daí o recurso a ameaças de retribuição divina, histórias de castigos terríveis e coisas dessas.

«Todos estamos sujeitos ao castigo de Deus. [...] Ora, um Deus justo julga o mal. Daí o julgamento sobre a humanidade no dilúvio, sobre Sodoma e Gomorra, sobre os povos, sobre todos nós no juizo final também anunciado por Deus.[...] Na morte de Jesus Cristo, Deus encarnado, Deus castigou todo o pecado. Na sua ressurreição, a morte, que era consequência do pecado, foi vencida.»(1)

Isto não é moral. Isto são tretas para manter o rebanho na linha.

1- Comentários em Cultura? Religião?

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

A importância de ser aborrecido.

O Google Street View é um projecto controverso da Google que acrescenta ao Google Maps e Google Earth fotografias panorâmicas de ruas de várias cidades. A controvérsia vem de acusações de invasão de privacidade da parte de algumas pessoas cujas casas foram fotografadas. A mais recente foi a do casal Christine e Aaron Boring (1), que levaram a Google a tribunal por alegado “sofrimento mental” e prejuízos decorrentes da desvalorização da sua propriedade.

Concordo que é preciso cuidado com a informação pessoal na Internet e que o motor de pesquisa Google é uma ameaça potencial à nossa liberdade de manter a vida pessoal separada da vida profissional ou pública. Mas não são fotografias às casas, tiradas de um carro a circular na via pública, que ameaçam a nossa privacidade. Principalmente quando o Google Street View desfoca as matrículas e as caras das pessoas que apareçam na imagem (2).

Neste caso a juíza rejeitou todas as alegações dos queixosos, e com razão. Agregar e disponibilizar informação é uma coisa útil que a lei não deve impedir. Protege-se a pessoal exigindo apenas que esta informação não possa ser associada a uma pessoa sem o seu consentimento informado. Por isso coisas como os cartões de cliente dos supermercados ou os chips nas matrículas preocupam-me mais que um carro da Google passar aqui pela rua e fotografar o meu prédio.

Mas admito que a razão principal para este post foi o nome dos queixosos. Pôr a Google em tribunal por lhes fotografar a casa em vez de pedir para apagar a fotografia é mesmo coisa de aborrecidos.

1- BBC, 19-2-09, Judge dismisses Google lawsuit
2- Aqui um exemplo, Times Square em NY.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Cultura? Religião?

A propósito do senhor que decapitou a esposa, alguns comentadores sugeriram que foi por motivação religiosa, outros por questões culturais. Uns propuseram que o islão é mais perigoso que o cristianismo e outros que nem por isso (1). No fundo, todos têm alguma razão. Por um lado porque a religião é um fenómeno cultural e, por outro, porque cada religião é tão nefasta quanto a deixarem ser. Nenhuma é intrinsecamente melhor ou pior que outra.

Mesmo quem acredita que existe algum deus percebe que não é nos deuses que os crentes encontram a sua religião. É nas pessoas. Nos sacerdotes, nos pais, nos amigos e vizinhos. Até os livros sagrados foram escritos por gente. Gente humana, não divina. Se deixassem que cada criança procurasse o seu deus à vontade, sem lhe incutir dogmas ou crenças, as religiões desapareciam numa geração. Provavelmente continuaria a haver crenças, mas todo o aparato de mullahs e bispos, de farás e não farás, de suras e epístolas, tudo isso precisa de transmissão (ou infecção) cultural. Não vem de cada crente e muito menos de cada deus.

Quando Muzzammil Hassan decapitou a sua esposa fê-lo por motivos culturais e por motivos religiosos. Isto não quer dizer que todos os paquistaneses e todos os muçulmanos sejam assim. Nem os paquistaneses têm todos a mesma cultura nem os muçulmanos têm todos a mesma religião. Mesmo quando partilham uma etiqueta religiosa, pessoas diferentes têm, na prática, religiões diferentes.

Mas isto não isenta de culpa essas religiões. Apesar de hábitos e tradições culturais poderem ser nefastos mesmo sem ser religiosos, as religiões agravam qualquer defeito por tornar mais difícil corrigi-lo e por disfarçá-lo de virtude ou de obrigação moral. Uma pessoa que cresça numa cultura que considera a homossexualidade repugnante, por exemplo, vai ter dificuldade em aceitá-la quando for adulto. Mesmo que seja homossexual. Mas para condenar outrem pela sua orientação sexual ou defender que se proíba o reconhecimento legal destas relações é preciso mais que um mero costume. É preciso aquela convicção infundada de moralidade superior que as religiões dão tão facilmente.

E para actos hediondos como decapitar a esposa é preciso mais. É preciso uma certeza inabalável, porque quem tem dúvidas não corta cabeças. Só o faz quem tem a certeza absoluta que age correctamente mesmo quando tudo lhe indica o contrário. E essa certeza perante a contradição, essa fé, também vem quase sempre das religiões.

Infelizmente, isto não quer dizer que umas religiões sejam melhores que as outras, se entendemos as religiões como instituições e conjuntos de dogmas. Qualquer religião é potencialmente nefasta porque prolifera exacerbando as atitudes mais intolerantes da cultura hospedeira. Tudo o que destaca o crente nessa religião e o afasta das outras religiões vai perpetuar aquela instituição. Em contraste, tudo o que o tornar receptivo e tolerante a outras ideias ou valores dilui a religião na cultura onde se insere. Daí que as religiões protestem constantemente contra tudo o que nos faça aceitar as diferenças dos outros.

Só podemos distinguir as religiões boas das más se entendermos “religião” como aquilo que o crente pratica. A sua crença pessoal, despojada de pretensões dogmáticas ou institucionais. Nesse sentido, uma religião é tão melhor quanto menos influenciar a vida do crente e daqueles que o rodeiam. Porque a crença num deus que manda em tudo só permite uma atitude decente e civilizada se o crente primeiro pensar no que faz e só depois afixar a etiqueta “por vontade de Deus” àquilo que já tinha concluído estar certo. Porque se fizer o contrário vão rolar cabeças.

1- Comentários em Ooops...

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Ah, seus piratas!...

Hoje foi o segundo dia do julgamento do Pirate Bay, um fórum e tracker* visitado por mais de vinte milhões de pessoas por dia onde se troca informação acerca de ficheiros partilhados. Nestes primeiros dois dias a acusação tem estado a apresentar o seu caso contra o Pirate Bay, fruto de três anos de investigação originada pelas queixas da IFPI**. Mais ou menos...

Hoje o promotor Håkan Roswall admitiu que, afinal, o Pirate Bay não tem nem nunca teve conteúdos que violem direitos de cópia. O fórum é um sítio onde utilizadores divulgam e comentam os ficheiros e o tracker é um servidor que gere a indexação dos ficheiros. Como resultado desta admissão o promotor retirou todas as queixas respeitantes à cópia ilícita, que perfaziam metade das queixas contra o Pirate Bay (1). Segundo a IFPI, isto foi uma boa estratégia porque «simplifica a acusação e permite focar no assunto principal, que é tornar disponível trabalhos sob copyright»(2). Ficou por explicar porque é que só se lembraram disso no segundo dia do julgamento e não durante os três anos de investigação.

Roswall também ficou espantado por descobrir que os programas de bittorrent se podem ligar a trackers que não sejam o do Pirate Bay, e que os mesmos ficheiros de indexação podem ser usados com vários servidores. Ou seja, a acusação não pode estabelecer que os ficheiros que apresentam como prova tenham sido descarregados de endereços indicados pelo tracker do Pirate Bay. Podem igualmente ter sido obtidos por índices guardados noutros dos muitos trackers bittorrent que há pelo mundo fora. Talvez seja outra “simplificação” que a acusação devia ter feito durante os três anos de investigação. Isso, e perceber um pouco melhor como funciona esta rede de partilha.

Neste momento os gestores do Pirate Bay são acusados apenas de cumplicidade com a disponibilização de conteúdos protegidos. São acusados de serem cúmplices de um crime que alguém, algures, terá cometido, quando a acusação não pode provar quem cometeu nem que tenha sido com a ajuda do Pirate Bay.

O advogado de defesa Per E. Samuelsson também ficou surpreendido. «É muito raro ganhar metade de um caso logo ao fim do primeiro dia e meio, e é evidente que a acusação ficou profundamente perturbada pelo que nós dissemos ontem»(2).

O problema é que o Pirate Bay apenas facilita a troca de informação acerca de quem tem ficheiros para partilhar. Todos os ficheiros partilhados são trocados directamente entre os utilizadores, sem intervenção dos trackers. A sua “cumplicidade” é análoga à de publicar moradas de bibliotecas e de casas de fotocópias. Os “criminosos” são as dezenas de milhões de pessoas que trocam ficheiros entre si. E se esses tivessem de pagar a indemnização que a acusação pede calhava alguns cêntimos por cabeça, demonstrando que esta lei não só é impossível de implementar com justiça como é fundamentalmente ridícula.

*Na rede bittorrent, um tracker é um servidor que mantém listas actualizadas dos endereços de quem partilha quais ficheiros.
** International Federation of the Phonographic Industry

Quem quiser, pode assistir ao espectáculo quase em directo, e em Inglês, neste canal de Twitter e neste blog. Ou numa data de outros sítios...


1- ZeroPaid, 17-2-09, Day #2 of The Pirate Bay Trial - Half of Charges Dismissed
2- IFPI, 17-2-09, Statement - Amended charges will simplify case against The Pirate Bay

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Ooops...

Hassans

Muzzammil Hassan migrou do Paquistão para os EUA há 25 anos. Teve sucesso e tornou-se num próspero homem de negócios em Buffalo, NY. Em 2004 fundou a Bridges TV, uma estação de televisão com a qual queria realizar o desejo de todos os muçulmanos americanos de «praticar a sua religião em paz e mudar a imagem negativa que muitos americanos não-muçulmanos têm do Islão»(1).

Na passada sexta feira o plano sofreu um percalço quando Muzzammil Hassan decapitou a sua mulher por esta o ter acusado de violência doméstica e ter obtido uma ordem judicial de protecção contra o marido (2).

1- VoA News, 16-11-04, Muslims in America Reach Out
2- Chesler Chronicles, 13-2-09, Beheaded in Buffalo: The Honor Killing of Asiya Z. Hassan

A foto foi retirada do artigo HASSAN CHOP. A legenda original é «The couple in happier times, before Hassan removed his wife’s head».

domingo, fevereiro 15, 2009

Treta da Semana: O valor das pontas.

A confusão de dois conceitos de vida humana atrapalha a compreensão dos problemas éticos do aborto, da eutanásia, da investigação em células estaminais, do estado vegetativo persistente e outros que ocorram nas pontas da vida, no seu inicio ou fim. Porque, infelizmente, o conceito que nos ocorre sempre primeiro é o menos relevante.

Quando pensamos em vida humana pensamos no estado em que nos encontramos. Neste momento sou um ser humano vivo; houve um tempo em que não o era e a certa altura deixarei de o ser. A vida humana é um estado que muda. E daqui parte-se para grandes discussões sobre a dignidade humana do paciente terminal, o estatuto ontológico do embrião e afins. Discussões inevitavelmente polémicas pela arbitrariedade dos critérios com que se decide quando começa ou acaba esse estado de vida humana. Mas, além de impossíveis de resolver, estes problemas são eticamente irrelevantes. Tanto faz qual é o estatuto do embrião ou o momento exacto em que um paciente em estado vegetativo deixa de ter uma vida humana.

Não avaliamos a jantarada com os amigos discutindo se começou às 20:14 quando nos sentámos ou às 20:16 quando o empregado trouxe as ementas. Ou se acabou quando bebemos o café ou quando recebemos o troco. Não importa a dignidade da sobremesa nem o estatuto ontológico das entradas porque o valor da jantarada está na jantarada toda. Naquela parte do meio e não nas minudências das pontas.

No desenvolvimento embrionário podemos saber rigorosamente quando surgem os primeiros neurónios, quando começa a bater o coração e quando os pulmões se tornam funcionais. E num paciente em coma podemos medir que partes do cérebro estão activas e relacioná-las com certas capacidades. Mas nada disso determina quando começa ou acaba o estado de vida humana sem precisarmos de algum critério arbitrário e, mesmo com esse critério, não é isto que diz o valor dessa vida. É tão inútil como saber o momento exacto em que o empregado trouxe os cafés.

O que devemos fazer nestes problemas é considerar a vida toda e o efeito de cada decisão no valor dessa vida. No caso da Eluana não valia a pena discutir a classificação do estado em que ela se encontrava. O único facto relevante era que deixar lá o tubo a alimentá-la não lhe daria uma vida melhor que retirar o tubo e deixá-la morrer. Todo o valor da sua vida esteve no período antes do acidente que a deixou num estado vegetativo permanente. O resto é mera semêntica.

No caso de um embrião criado para investigação a escolha é entre criar um embrião humano que vive alguns dias ou não criar esse embrião humano. O valor daquela vida é nulo mas também é nulo o valor de não a criar. A escolha é indiferente para aquele organismo e é irrelevante o estatuto que lhe atribuirmos. O aborto de um embrião implantado no útero materno é diferente porque aí a escolha é entre uma vida humana, várias décadas de vida, ou a sua eliminação. Essa diferença é grande. Mas, mais uma vez, não importa o estatuto do embrião naquela altura porque a vida naquela altura não é grande coisa. Ninguém recorda com saudade as suas primeiras dez semanas de gestação.

O estatuto do embrião na caixa de Petri pode ser igual ao estatuto do embrião no útero da mãe. A dignidade do paciente a quem a medicina consegue dar uma vida de valor pode ser a mesma do paciente que a medicina não pode ajudar. Ou não. Tanto faz. O estatuto é arbitrário e a dignidade demasiado vaga para que se possa decidir. Felizmente, esta questão é tão irrelevante como o sexo dos anjos. O que importa é avaliar as consequências e determinar se a escolha tem impacto numa vida humana. Não no estado momentâneo mas naquele pedaço de existência subjectiva que todos reconhecemos ter valor.

sábado, fevereiro 14, 2009

Cafés de Ciência

Parte da iniciativa Laboratórios Abertos, do IST, os «Cafés de Ciência» vão ser debates informais sobre alguns problemas científicos com implicações morais e sociais. Na próxima segunda feira, dia 16, o tema será a investigação em células estaminais. A Palmira convidou-me e lá estarei, às 17:00, para conversarmos com a Cláudia Lobato da Silva e o Francisco Santos, que são os peritos nesta área. Eu fui convidado para falar sobre os aspectos éticos, e aproveito a deixa para escrever sobre uma treta que tem dificultado a discussão de problemas como este, o aborto, a eutanásia e outros. Mas isso fica para amanhã.

Vai haver mais debates ao longo da semana, sobre outros temas. A Palmira dá mais detalhes no De Rerum Natura.

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Mas... qual detrimento? *

Há uns dias Manuel Morujão, porta voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), argumentou que o estado devia combater a crise em vez de dar direitos iguais aos homossexuais (1). Agora diz que o estado deve «encontrar o esquema legal que achar, mas não em detrimento da família e do casamento» e que «Quem propõe isto não quer ameaçar ninguém, mas é uma falácia, é um engano. É acenar com uma bandeira facilitista» (2).

Não sei que ideia o senhor padre faz do casamento, mas garanto-lhe que não é a lei que me dissuade de trocar a minha mulher por um barbudo qualquer. Nem me parece que, alterada a lei, ela arranje logo uma namorada. Jeitosa. E bi-sexual. Hmm...

Permitir que pessoas do mesmo sexo se casem não prejudica ninguém nem será implementado em detrimento dos casais heterossexuais. Esses continuam a ter os mesmos direitos que têm agora. Não é ameaça nem falácia nem engano. E se é facilitismo facilitar a vida ao discriminado combatendo a discriminação, então viva o facilitismo. Mas Morujão preocupa-se com as gerações vindouras (que por alguma razão, que certamente não tem nada a ver com Freud, estão atrás e não à frente) «O que estamos a dizer às gerações que estão atrás de nós? Que sejam o que quiserem? Que escolham num menu de identidades aquilo que querem ser?».

Se a pergunta não fosse retórica a resposta seria sim. Claro. Sejam o que quiserem ser. Certamente que para decidir a nossa própria identidade cada um de nós está mais habilitado do que o pároco. Ou até do que toda a Conferência Episcopal, conferindo e episcopando a vida dos outros. Mas como pergunta retórica parte de um pressuposto errado. Eu sou heterossexual. Sempre fui. Gosto de miúdas. Mas nunca escolhi ser assim. Nunca foi uma opção. Nunca me deparei com alternativas. Ser heterossexual é como ter dois braços e pêlos no nariz. É pior, porque os pêlos ainda os posso cortar. E quem é homossexual também não o é por escolha.

“Casamento” tem vários significados, conforme a tradição, religião ou atitude de cada um. E aceito que alguns não queiram mudar o seu conceito de casamento. Mas um dos usos deste termo é técnico e jurídico. E é apenas esse que se quer corrigir, para não discriminar alguns casais em função do sexo. De resto continuam todos livres de entender “casamento” como bem quiserem.

A argumentação da CEP contra esta proposta de lei é um disparate pegado. É a crise que não tem nada a ver, são ameaças que não existem e uma antropologia fictícia onde cada um escolhe que sexo prefere. Mas até compreendo que se preocupem tanto com isto. Com isto, e em condenar o sexo fora do casamento, a masturbação, a contracepção e qualquer prática sexual mais imaginativa. Não querem que os jovens seminaristas namorem. Proíbem o casamento e o sexo aos padres. E passam a vida toda de adultos a tentar reprimir os seus impulsos sexuais. Não admira nada que quando chegam a bispos estejam tão obcecados com a vida sexual dos outros. Penso que esta “polémica” desaparecia num instante se deixassem os padres ter namoradas. Ou namorados.

* O título era para ser “O que eles querem sei eu.” Mas depois lá vinham os comentários emproados acerca da falta de respeito. Vêm à mesma, mas assim posso dizer que podia ter sido pior...

1- Treta da Semana: A falta de razão de Manuel Morujão.
2- Ecclesia, 10-2-09, Bispos preparam Nota Pastoral sobre o casamento

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Parabéns aos dois.

Hoje celebramos o bicentenário de Darwin. Não o celebramos como um deus, messias ou santo. Também não o celebramos pela teoria da evolução que temos hoje. Quem não sabe por vezes chama-lhe “darwinismo”, mas esta teoria moderna é muito mais do que Darwin podia ter imaginado. Celebramos o nascimento de Darwin porque foi um cientista excepcional cujas ideias nos lançaram em século e meio de novas descobertas e explicações. E pelo seu contributo para separar a superstição da ciência. Antes de Darwin, a ciência parecia condenada a ser uma camada fina de compreensão por cima de um profundo mistério religioso. Uma criação milagrosa e incompreensível para contemplar pasmado entre orações.

Décadas antes da Origem das Espécies já Laplace tinha dado um passo na direcção certa. Quando apresentou a Napoleão o seu trabalho sobre a formação das estrelas e do sistema solar, o imperador perguntou-lhe porque não mencionara Deus na sua obra. Laplace respondeu que não precisava dessa hipótese. E é verdade. Se explicamos a queda dos corpos pela gravidade, acrescentar “e Deus fez a gravidade” não serve de nada nem se justifica. Mas uma coisa é a física e outra é a origem dos seres vivos. A nossa origem. Que as estrelas se formem sozinhas ainda vá mas, aparentemente, só tem piada ter um deus se formos feitos à sua imagem.

Quando Darwin explicou o processo que forma seres como nós a partir de seres mais simples inverteu a procura pela explicação última das coisas. Antes de Darwin parecia que o fundamento de tudo tinha de ser infinitamente complexo e incompreensível, o mistério típico das superstições que dizem apenas “é assim” mas nunca explicam como. Darwin mostrou uma explicação no outro lado, no lado das coisas mais elementares e dos processos mais simples. No lado da natureza e não no lado dos milagres.

Os teólogos têm lutado contra isto porque as suas doutrinas deixaram de fazer sentido. Não precisamos dessas hipóteses. E defendem que se a sua superstição não faz sentido a nossa vida também não faz. «Estamos a comemorar duas datas principais de Darwin(200 anos de nascimento e 150 do seu livro mais significativo) que vão ser inundadas de dados científicos embrulhados em ideologia triunfante de falta de sentido para tudo o que é a história da humanidade», escreveu recentemente o padre Aires Gameiro (1).

A teoria da evolução tem sentido como explicação e, pelo menos para alguns, compreender a realidade como ela é faz parte do sentido da vida. Não vale a pena conciliar a doutrina religiosa com a teoria da evolução porque não precisamos dessa hipótese. A teoria da evolução funciona bem sem qualquer deus. E para dar sentido à nossa existência não adianta fingir que fomos criados para um propósito, como uma ferramenta ou peça de decoração. A nossa vida tem o sentido que lhe dermos. Graças a Darwin, hoje podemos compreender que a forma como chegámos aqui e o que fazemos daquilo que somos são dois problemas diferentes.

Mas este dia não é só importante por causa de Darwin. A Joaninha também faz anos hoje. Parabéns aos dois.

1- Agência Ecclesia, 10-2-09, Darwin e Lurdes: mera coincidência de datas?. O artigo tem outra treta engraçada. Sugere que Deus mandou aparições a Lourdes para compensar o que Darwin estava a fazer...

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Um bom exemplo.

No seu blog, o Mats dá um exemplo. Segundo o Mats, «[o] ponto deste exemplo é para mostrar que os darwinistas não estão de facto à procura da verdade dos factos, mas sim à procura de evidências que suportem a sua fé nas suas presuposições naturalistas.»(1) Vejamos então o exemplo.

«Imagina que estás numa visita ao Instituto “SETI” quando uma transmissão vinda de uma galáxia distante faz-se soar pelas salas. As seguintes palavras ecoam: “Saudações Terráqueos“. Imagina só a comoção que isso não traria nos cientistas [...] Agora imagina que tu interrompes as celebrações e dizes o seguinte: “Desculpem-me, mas como é que vocês podem afirmar com toda a certeza que receberam sinais de inteligência extra-terreste? [...] Não é dificil de imaginar o que aconteceria a seguir. Dois seguranças apareceriam do nada, agarravam-te pelos braços, e acompanhavam-te até à saída. Durante o processo, os darwinistas da SETI olhariam uns para os outros, e estariam em silêncio tentando esconder o óbvio desconforto trazido pelas tuas palavras.»

É um bom exemplo. Não para o Mats porque o valor de um exemplo é fundamentar uma conjectura num facto, valor esse que desaparece quando se inventa o “exemplo”. Mas ao tentar apoiar a sua conclusão numa ficção o Mats dá um bom exemplo da dificuldade do criacionismo em distinguir realidade e fantasia, e de quanto os criacionistas ignoram a ciência que criticam.

Há uns milhares de anos um nómada ignorante inventou uma história acerca dum deus que criara tudo em meia dúzia de dias. "Tudo", neste caso, era apenas o pouco que o nómada conhecia. Das bactérias às galáxias, a maior parte ficou de fora. E nem era uma história original, só mais uma de muitas parecidas. Mas a moda pegou e agora é uma das fábulas que os criacionistas consideram “exemplos”. Gostam muito de se basear em histórias fingindo que são factos. Volta e meia metem uma citação da Bíblia, como se isso provasse alguma coisa, ou disfarçam os buracos no criacionismo inventando milagres alegando que foi mesmo assim que se passou. E como sabem? Leram num livro, numa história que outros inventaram.

Este exemplo do Mats mostra também como é confusa a sua ideia de ciência.

«Nós podemos apenas imaginar o que aconteceria se a SETI recebesse uma mensagem que disse: “Saudações, Terráqueos. Daqui fala o Senhor Jesus Cristo, o Criador de todas as coisas. É só para dizer que Eu vos amo muito.” Eles, baseados na sua fé, haveriam de tentar encontrar “outras explicações” para esta mensagem, uma vez que segundo os seus princípios, não há nenhum Criador. Como é que eu sei disso? Porque eles fazem exactamente isso com a Mensagem que o Senhor Jesus Cristo deixou por Escrito (Bíblia), na mensagem que Ele deixou em nós (consciência), e na mensagem que Ele deixou no universo.»

Se recebessem uma mensagem alegando ser de Jesus primeiro determinariam a origem do sinal. Não por fé ou por princípios mas por triangulação, que daria evidências sólidas do sinal originar fora do sistema solar. Para determinar se era mesmo Jesus que falava teriam de se guiar pelo conteúdo da mensagem. Mas, ao contrário do Mats, não era uma questão de ter fé que quem diz ser Jesus necessariamente é. “Sou Jesus” qualquer um pode dizer, por isso não é coisa que identifique o remetente da mensagem. Mas mapas ou descrições da Palestina do tempo de Jesus, suficientemente detalhadas para conduzir a novas descobertas arqueológicas, seriam evidência de um conhecimento profundo da época. E uma explicação do processo de criação do mundo ou alguns milagres poderiam dar evidências claras da ter muito mais poder que nós.

Os cientistas não rejeitam o criacionismo por fé ou por “princípios”. Rejeitam essa treta porque não acreditam em histórias da carochinha. Para aceitar uma hipótese exigem dados consistentes com essa hipótese e, ao mesmo tempo, incompatíveis com as hipóteses alternativas. E as histórias escritas num livro (ou as histórias que o Mats inventa) não são evidências adequadas porque histórias podemos inventá-las como quisermos.

1- Mats, 10-2-09, “Saudações, Terráqueos”.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Quando a realidade imita o disparate...

A Amtrak organizou um concurso de fotografia, Picture Our Train. Duane Kerzic quis participar e levou a sua máquina fotográfica para Penn Station, em Nova Iorque, para fotografar os comboios. E por isso foi detido por dois polícias ao serviço da Amtrak.

Uma notícia ideal para o Stephen Colbert.



Via Schneier on Security.

domingo, fevereiro 08, 2009

Treta da Semana: Mortos vivos.

Henrietta Pleasant nasceu em 1920 no estado da Virginia, EUA. Casou com David Lacks e, legalmente, morreu de cancro cervical no dia 4 de Outubro de 1951. George Otto Grey, o seu oncologista, preservou e comercializou células do tumor da Henrietta. Esta linhagem imortal de células, chamada HeLa em honra da dadora, é hoje uma ferramenta importante na investigação médica. Ao contrário da maioria das células humanas, estas células cancerosas reproduzem-se ilimitadamente, por isso esta parte da Henrietta nunca morrerá. E estima-se que hoje em dia, por laboratórios em todo o mundo, haja mais células vivas da Henrietta Lacks que alguma vez houve antes dela morrer.

A ética do que Grey fez é discutível. Em 1951 assumia-se que todas as amostras eram propriedade dos médicos, e a lei permitia que ele fizesse o que queria com as células da paciente. Hoje em dia não seria assim, e fazer isto sem a autorização da própria ou da família não seria aceitável. Mas numa coisa estão todos de acordo. Apesar do tumor viver, Henrietta Lacks está morta. Porque em 1951 extinguiu-se irreversivelmente a sua capacidade de se sentir viva.

Eluana Jolanda Giulia Englaro nasceu em 1970 em Lecco, na Itália. Em Janeiro de 1992 um acidente de viação deixou-a em coma irreversível. Nestes dezassete anos que Eluana está em coma o seu pai tem lutado para que a deixem morrer, desejo que ela tinha manifestado se uma situação como esta ocorresse. E Eluana, no que importa, já está tão morta como Henrietta. As suas células vivem, mas da Eluana já não haverá mais nada. Ambas perderam para sempre a capacidade de viver as suas vidas, a capacidade de ter algo subjectivo que é o único critério eticamente relevante para distinguir a vida e a morte.

No dia 13 de Novembro de 2008 o supremo tribunal Italiano autorizou o pai de Eluana a terminar a alimentação artificial e deixar o resto da filha morrer. Mas esta decisão foi oposta pela Igreja Católica. É uma organização de princípios que não pode permitir que os desejos da paciente e os sentimentos da família se sobreponham ao poder da Igreja. No passado dia 6, o governo de Berlusconi, contra a recomendação do presidente Giorgio Napolitano, assinou um decreto proibindo que se interrompa a alimentação e hidratação artificiais a pacientes que disso dependam, quaisquer que sejam as circunstâncias. Segundo Berlusconi, a medida justifica-se porque Luana «poderia, em teoria, ter um filho»(1).

A Igreja Católica pressionou o governo de um país democrático a alterar a lei só para prolongar o sofrimento absurdo de uma família e inchar o ego de alguns líderes religiosos. É o que acontece quando se esquece que a ética é respeitar as pessoas e se vai na cantiga de quem diz ter um amigo imaginário caprichoso.

1- ANSA, 6-2-09, Napolitano says no to Eluana decree.

sábado, fevereiro 07, 2009

O objecto da crença.

Uma conversa com o João Vasco e o Cordeiro Lobo (CL), enterrada sob trezentos e tal comentários num post da semana passada (1), mostrou mais uma vez que um problema em discutir crenças é perceber o que se quer dizer com “crença”. Acreditar, estar convicto, é considerar algo verdadeiro. Pode ser num sentido lato, que inclui verdade como correspondência à realidade (a Terra é redonda), consistência (um número ímpar não é divisível por dois) ou até mesmo a partilha de um juízo de valor (não se deve maltratar crianças). Mas não se pode acreditar em algo que não se possa considerar verdade. Ou seja, algo que não seja uma proposição.

Não posso acreditar na cadeira. Posso me sentar na cadeira, partir a cadeira ou atirar a cadeira, mas “acredito na cadeira” não faz sentido porque a cadeira não é verdade nem mentira. Posso acreditar que ela existe, acreditar que está ali. Se ela falar até posso acreditar no que me diz. Mas só posso acreditar em proposições. A cadeira em si não pode ser objecto de uma crença.

Há quem afirme, como o CL, que «não tem qualquer sentido acreditar na não existência do que quer que seja» porque «É um absurdo a inexistência de algo, real ou meramente imaginário, poder ser objecto de pensamento ou de crença.»(1) Isto está errado. A hipótese “o rei da França não tem barba” refere algo que não existe. Mas a nossa linguagem permite referir coisas não existem ou até coisas que não podem existir, como o número que é maior que todos os outros ou um triângulo circular. E isto é irrelevante porque aquilo que a hipótese refere não depende de acreditarmos nela. Acreditar na inexistência do rei da França não é absurdo. É simplesmente aceitar como verdade a hipótese “o rei da França não existe”, que é razoável desde 1793*.

Esta confusão entre o objecto da crença, que é a hipótese, e aquilo que a hipótese refere serve para falsificar justificações para várias crenças. Cremos verdadeira a afirmação “o paciente tem uma infecção bacteriana” se as evidências lhe derem mais suporte que às alternativas. Sinais como febre e velocidade de sedimentação, sintomas como dores e cansaço, etc. Mas para justificar crer que “o paciente tem uma desarmonia na aura”, os tretólogos dizem não precisar de evidências porque o objecto desta crença é de outro tipo. É espiritual e não científico. Isto é falso, porque os objectos destas crenças são ambos proposições acerca da realidade. São do mesmo tipo.

Com a religião há o mesmo problema. Em rigor, não se pode crer em deuses mesmo que existam. Seria como crer em cadeiras. Não são um objecto legítimo de crença. “Acredito em deus” quer apenas dizer que a pessoa acredita em certas hipóteses acerca desse deus. Que existe, que foi crucificado, que vai voltar e assim por diante. E como essas hipóteses são acerca da realidade estas crenças são do mesmo tipo que as crenças científicas. São do tipo de crer que a hipótese corresponde à realidade.

Crenças noutros tipos de proposição justificam-se de forma diferente. Se o enunciado do exame de lógica diz que P é uma proposição verdadeira eu acredito sem exigir evidências. Até porque “P” não refere nada. Se me propõem um juízo de valor eu aceito-o ou rejeito-o – acredito ou não acredito – comparando-o com os meus valores e não com dados objectivos, visto que estes não podem comprovar um “deve ser”. Mas estas crenças justificam-se de forma diferente porque recorrem a diferentes noções de verdade para avaliar as proposições em causa.

Quando a noção de verdade é a correspondência com a realidade o critério para crer numa hipótese tem que ser sempre o peso das evidências, seja qual for o objecto da hipótese. Seja infecção bacteriana, desarmonia da alma, existência de um deus ou de um rei da França, só se justifica concluir que a hipótese está de acordo com a realidade se as evidências a favorecem em detrimento das alternativas.

Realmente, há diferença entre não acreditar que Deus existe e acreditar que Deus não existe. Mas não é por ser impossível acreditar que algo não existe. Isso não tem problema. A diferença é que para a primeira basta que as evidências não favoreçam a hipótese que esse deus existe enquanto que para justificar a segunda é preciso que as evidências favoreçam a hipótese que esse deus não existe. O critério é mais exigente mas não é absurdo nenhum. E é isso que as evidências indicam, no caso do deus cristão. O peso das evidência sugere que as hipóteses de Jesus ter ressuscitado, de esse deus amar as crianças que pisam minas e importar-se com os preservativos são tão treta como a hipótese que a barba do rei da França é azul.

* Correcção: avisaram-me agora por email que o último rei da França, Luís Filipe I, abdicou em 1884 1848.

1- Sócrates e Jesus.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Legal, 3.

Na Grã-Bretanha, a Performing Rights Society for Music (PRS) está a combater uma das maiores ameaças à cultura e à criatividade artística. É que a pirataria, o roubo a que eufemisticamente chamam “partilha”, não é só a cópia de ficheiros. É também várias pessoas ouvirem o mesmo rádio, no local de trabalho, sem licença dos detentores dos direitos (1). Piratas.

A PRS já pôs em tribunal a Kwik-Fit, uma cadeia de oficinas que deve £200.000 em licenças porque os mecânicos trazem rádios portáteis para o trabalho. E chegam a estar dois ou três a ouvir a mesma coisa enquanto reparam automóveis. A associação de caridade que recuperou a Dam House, uma mansão medieval em Lancashire, também não queria pagar as duas licenças que deve por os voluntários ouvirem rádio enquanto trabalham e o coro do colégio vizinho cantar no salão de chá uma vez por ano. Para não falar do canil de Stokenchurch, cuja dona põe o rádio a tocar para acalmar os cães. Dezenas de cães. E sem licença.

Algumas pessoas dizem-se preocupadas com a táctica da PRS, que enviou quase seiscentas mil cartas a pequenas empresas intimando-as a pagar. Dizem que é um abuso da lei porque as empresas pequenas não têm meios para contestar a exigência em tribunal. Dizem que é só por isso que trezentas e cinquenta mil já pagaram. Disparate. Quem não deve não teme, e esta medida é o garante da cultura e da nossa própria civilização. É um direito do detentor do copyright decidir quanta gente ouve cada rádio.

Por cá, soube há pouco, o problema é ainda mais grave. Os meus filhos contaram-me que ontem na aula de música o professor os organizou em grupos e cantaram para os colegas ouvirem. E deixou-os escolher qualquer música. De qualquer editora. Com certeza que a escola não tinha as licenças necessárias. Isto é pior que roubar às editoras a recompensa que merecem por terem contratado aqueles artistas porque ensina crianças, logo na segunda classe, a desrespeitar a propriedade cultural. Se os pais não os corrigirem, estes miúdos crescem convencidos que a música canta-se quando se quer mesmo que alguém esteja a ouvir e que arte e cultura são coisas para partilhar com os outros.

Desculpem, mas hoje o post tem que ficar por aqui. Tenho que os ir acordar para lhes berrar mais uma vez que a música é só para ouvir de CDs originais e sózinhos. Se querem ouvir os dois ao mesmo tempo têm que pagar a licença. Cá em casa não tolero piratarias.

1- Times Online, All shook up: small traders hit by music snoops. Via ZeroPaid.

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

E o problema é ...?

A propósito do primeiro aniversário do Portal Ateu, o Alfredo Dinis escreveu um post curioso de título «O problema fundamental do ateísmo». O curioso é que não se percebe qual é o problema.

«O ateísmo militante, como é o do Portal Ateu, tem um problema fundamental. Se a sua crítica da religião for irrelevante, como é a constante crítica baseada em factos anedóticos, o seu efeito na religião é positivo, uma vez que critica o que de facto é criticável [...] Se, pelo contrário, a crítica da religião feita pelo ateísmo militante for objectiva e inteligente, e se dirigir a aspectos realmente fundamentais, uma tal crítica só pode ser benéfica para a religião, uma vez que desafia os crentes a reavaliar criticamente esses aspectos.»(1)

Ora, se este ateísmo é bom por um lado e bom por outro parece-me que o problema não estará no ateísmo.

Um problema é confundir crença com religião. As crenças são pessoais. Um crente pode acreditar que a hóstia se transforma no corpo de Jesus e outro ao lado acreditar que é só uma bolacha de farinha num ritual meramente simbólico. Mas as religiões são instituições. O catolicismo diz que a hóstia se torna no corpo de cristo e não o propõe como uma crença opcional. Eu concordo que é bom criticar qualquer crença porque a crença ou ganha fundamento por resistir à crítica ou cede o lugar a uma crença melhor. Mas a avaliação crítica é inconveniente para as religiões porque não podem mudar de crença tão facilmente.

Outro problema é assumir que há uma distinção objectiva entre os «factos anedóticos» e os «aspectos realmente fundamentais» das religiões. Se fingirmos que só há uma religião podemos criar essa ilusão, pois aí o fundamental é apenas o que a religião oficialmente diz para se acreditar. Mas se considerarmos todas as religiões a ilusão desaparece. Para um católico o Papa é fundamental e o criacionismo anedótico. Mas para o evangélico é precisamente o contrário. E para o ateu é anedótico o que não for devidamente fundamentado, o que põe no mesmo saco a suposta origem divina do Corão e a alegada ressurreição de Jesus.

Mas o problema principal é não compreender o objectivo dos ateus. É mesmo esse. Motivar os religiosos a avaliar criticamente as suas crenças. Porque o crente que o fizer verá que tem apenas duas opções. Se decide julgar a sua crença religiosa por critérios objectivos que sejam igualmente válidos para pessoas com ou sem qualquer fé então torna-se ateu. De todas as opiniões que se pode formar acerca de qualquer religião o ateísmo é a única que trata essa religião da mesma maneira que trata as outras. Nem o agnosticismo consegue isso porque, tal como os crentes, também os agnósticos são ateus em relação a todas as religiões excepto uma pequena minoria.

E a alternativa que preserva a crença religiosa tem que invocar critérios subjectivos, mostrando ao crente que o fundamento da sua religião é apenas a sua preferência pessoal. Segue aquela religião porque é dessa que gosta mais, tal como prefere este clube ou aquele estilo de música. E isto também é bom. Este exercício de liberdade pessoal elimina o problema da religião se arrogar de ter valor normativo propondo que aceitar o seu dogma é uma virtude que todos devem almejar. Ou de se arrogar de ser factualmente verdadeira e fonte de conhecimento, como se algum padre conseguisse distinguir a água benta da água por benzer.

Aquilo que para o Alfredo é um “problema fundamental do ateísmo militante” para mim é uma virtude. Fazer pensar acerca das crenças. Porque o mundo que eu quero não é um mundo de ateus. Isso era uma chatice e limitava-me a um par de posts por semana. O que eu quero é um mundo onde o dogma religioso seja visto como um gosto em vez de um facto. Quero um mundo onde a fé seja uma preferência em vez de a julgarem uma virtude. E quero um mundo onde as religiões se submetam à escolha livre de cada um em vez de submeter liberdades e pessoas ao supostos caprichos de deuses imaginários.

1- Alfredo Dinis, O problema fundamental do ateísmo. A propósito do primeiro aniversário do Portal Ateu.

domingo, fevereiro 01, 2009

Treta da Semana: Freeport, a ZPE e a TVI.

Este não é sobre o Sócrates, a mãe, a carta rogatória ou a procuradora dizer que sabe onde está o primo mas que não pode dizer onde senão ele foge. Não sei se houve marosca, não me admira que tenha havido, mas este post também não é sobre isso. É sobre esta notícia da TVI.

«O ministro da Presidência, Pedro Silva Pereira, garante que só a má fé permite pensar que a zona de protecção do estuário do Tejo foi alterada por causa do Freeport. [...mas...] O que é fantástico nessa alteração é que a medida coincide com o Freeport, como se de uma sombra se tratasse. Vejamos bem: a alteração da Zona de Protecção Especial [ZPE] do estuário do Tejo é uma espécie de desenho do contorno do Freeport. Relação aliás que está expressa no documento do Instituto da Conservação da Natureza que justifica os novos limites da zona de protecção, em que se afirma explicitamente que se propõe a alteração da zona protegida para poder haver uma «intervenção urbanística de requalificação da área», leia-se Freeport.» (1)

A alteração da ZPE coincide razoavelmente com o Freeport. A figura abaixo mostra uma imagem da zona como é hoje, no painel superior, e parte do mapa anexo ao DL 140/2002, que regulamentou a alteração, representando a zona antes da construção do Freeport. Em ambos os paineis está assinalada a localização do Freeport e da fábrica da Crown Cork & Seal de Portugal.

Freeportgate

A notícia dá a impressão que se cortou um pedaço de paisagem natural protegida para haver uma «intervenção urbanística» dessa área, «leia-se Freeport». Mas o texto do DL 140/2002, descrevendo o novo limite da ZPE nessa região, dá uma impressão bem diferente.

«... acompanhando o traçado da EN 118 até ao seu entroncamento na EN 119, passando a seguir aquela rodovia até ao início da área da antiga fábrica da Firestone, que contorna até voltar a encontrar a EN 119, seguindo-a até ao início da antiga fábrica da ORMIS, actual Crown Cork & Seal Portuguesa, que igualmente contorna, passando a seguir depois por uma linha paralela à EN 119, à distância de 50 m ...»(2)

Ou seja, este decreto-lei retirou da ZPE as fábricas da Firestone e antiga ORMIS, corrigindo o erro original de incluir na zona protegida partes da cintura industrial de Alcochete. O Freeport coincide com uma parte retirada à ZPE porque foi construído no sítio da fábrica abandonada da Firestone. Isto não legitima a empreitada. Mesmo com a alteração da ZPE, o seu impacto extravasa a área que ocupa e é contrário às directrizes que visam proteger a zona (3). Mas a notícia é uma treta porque dá a entender que o Freeport é a única explicação para a alteração da ZPE. E temo que tenham escrito isto com intenção de enganar o leitor. Só um jornalista muito incompetente é que seria capaz de investigar o assunto sem descobrir que já havia uma fábrica no sítio do Freeport.

É mais uma razão para se regular a liberdade de expressão criticando o que se ouve em vez de restringindo o que se diz, porque é trivial enganar dizendo só parte da verdade. E é algo impossível de regular. A solução é o leitor ou ouvinte assumir a responsabilidade de duvidar do que lhe dizem.

1- TVI, 31-1-09, As coincidências com alteração da ZPE.
2- DL-140/2002, Documento em formato pdf
3- Um post do Ricardo Santos Pinho no 5 Dias, O caso Freeport de Alcochete (II), resume a história do processo e transcreve a carta da Quercus protestando a autorização do Freeport. O post inicial da série é O caso Freeport de Alcochete (I).