sábado, janeiro 12, 2008

Propriedades e existência.

Uma das «provas» que Deus existe assenta em confundir a existência com uma propriedade. Anselmo (1033-1109) disse que Deus é aquilo que é mais perfeito que qualquer outra coisa. Como um Deus que não existe será menos perfeito que um Deus que existe, segundo Anselmo, Deus tem que ter a propriedade de existir. O problema é que existência não é uma propriedade.

Imaginem um Ludwig idêntico a mim em tudo. Mesmo tamanho, forma, pensamentos, e que até está no mesmo sítio que eu ao mesmo tempo que eu a fazer o mesmo que eu. Evidentemente, não pode ser outra coisa senão eu. Se a existência for uma propriedade e esse Ludwig não existir então pode ser outra coisa porque já tem uma propriedade diferente. Um é o Ludwig que existe, o outro é exactamente igual só que não existe. Mas isso é absurdo. É igual a mim e está onde eu estou a fazer o mesmo que eu mas não existe? Não faz sentido.

Faz mais sentido considerar a existência como sendo a instanciação de propriedades em vez de uma propriedade em si. Isto não resolve o problema de saber o que é a realidade, pois continua por definir o que é isso da instanciação. Mas torna o conceito de existência mais claro. Por exemplo, mostra que não faz sentido falar em dois Ludwig exactamente iguais em tudo excepto que um existe e outro não. Se todas as propriedades estão instanciadas então existe. Se não estão, então não existe. Seja como for, se é igual em tudo é o mesmo e não dois.

Também é útil para sair de labirintos retóricos como os do leitor JC, que entre muitas outras coisas escreveu:

«Você cai numa flagrante contradição negando ao imaginado a condição de existente só porque o imaginado pode não existir na realidade empírica, fora da mente. Mas, afinal, mesmo que apenas na mente, o imaginado existe ou não existe?»(1)

O Homem Aranha existe? Se «Homem Aranha» designa um personagem fictício de banda desenhada, então sim. Todas as propriedades de tal personagem estão instanciadas, tais como estar desenhado em livros, ter sido inventado por alguém, fazer parte de histórias e assim por diante. E se as suas propriedades estão instanciadas então essa coisa existe. Existe um personagem de banda desenhada chamado Homem Aranha. Mas se «Homem Aranha» designa um ser humano com poderes de aranha então não existe. As propriedades dessa coisa não estão instanciadas num ser.

O mesmo se passa com Deus ou o bicho papão. Em muitas cabeças há cérebros a instanciar as propriedades de ideias acerca de tais entes. São pensados, sentidos, temidos, e assim por diante. As ideias existem. Mas as propriedades de um bicho que rapta as crianças que se portam mal ou de um deus que criou o universo não estão instanciadas. Essas coisas não existem.

Isso da realidade empírica e não empírica é só para baralhar. Há uma realidade. Os cérebros existem, os pensamentos existem, a fantasia existe. A confusão também existe. Aos montes. Mas fazer confusão e pensar que existe aquilo acerca do qual se tem fantasias não justifica inventar uma “realidade” à parte só para disfarçar a confusão.

1- 9-1-08, Ciência e as outras coisas.

14 comentários:

  1. ludwig krippahl:

    Boto este curto comentário apenas porque você me referiu no seu post. Não comento exaustivamente porque não tenho por actividade interessante comentar, falar, opinar ou discutir acerca de tretas, que me parece ter sido para onde as coisas rumaram.

    De qualquer modo, julgo que o criador do “Homem Aranha” não pensou que o personagem pudesse chegar a reunir as qualidades necessárias, por exemplo, para se candidatar a um trabalho de limpador de janelas. Não sendo crente, julgo saber também que até os criadores da entidade omnipotente e omnisciente designada por deus não cuidam que ela ande por aí envergando fatos Armani.

    Concordo que “a confusão também existe”. Nas mentes de muita gente, por muito lado, em muitas actividades. A ciência também não está imune a confusões de diverso tipo, e até na actividade bancária, por exemplo, há quem confunda a meritória actividade de bancário com a de banqueiro.

    Desejo-lhe que passe um óptimo dia.

    JC (o tal que não é o Cristo, nem tem crista e embirra com cristalizados, mas que por restrição do número de caracteres teve de assinar abreviado).

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  2. JC,

    Se a confusão o incomoda (se...) ajude a desfazê-la. Explique, por exemplo, que vantagem há em considerar que o Homem Aranha existe numa realidade não empírica, em vez de simplesmente considerar uma realidade, na qual o Homem Aranha é um personagem fictício.

    Esclareça também se acha que há diferença entre a realidade em que diz que o Homem Aranha existe e a realidade em que diz que Deus existe, e, se houver, como é que sabe que há.

    E, já agora, em que realidade coloca os milhares de outros deuses que não são o Judaico-Cristão.

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  3. Ludwig:

    Parabéns pela clareza :)

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  4. Ludwig

    Tem razão quando afirma que a existência não é um predicado ou atributo de particulares. Neste ponto tem a companhia de filósofos ilustres como Frege, Russell, Kant e Hume.

    Todavia, filósofos como Anselmo, Descartes, Mackie, Kripke e Kaplan subscrevem a posição contrária à expressa no parágrafo anterior o que mostra ser uma questão contorversa e ainda em aberto.

    Na actualidade, há versões modernas do argumento teológico, umas mais bem conseguidas do que outras.

    Pode ver uma breve síntese dessas teorias em

    http://plato.stanford.edu/entries/ontological-arguments/

    O Desidério Murcho falou em tempos no blogue De Rerum Natura do argumento de Gödel mas sem o descrever. Penso que gostará de ver a elegância desse argumento e uma discussão ácerca dele. Para quem gosta de filosofia é excelente.

    Pode encontrá-lo em

    http://www.stats.uwaterloo.ca/~cgsmall/ontology.html

    Bom Domingo.

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  5. Ludwig

    Fiquei confusa: queres discutir a existência de Deus, as realidades que não as empíricas ou só se a existência é uma propriedade, baseado num filósifo/teólogo de um tempo em que ainda não havia blogues (entre outras coisas)? Se queres que te diga, acho que puseste Deus aqui só para enganar e causar confusão (não eras capaz!).

    O homem-aranha tem uma existência diferente de um Ludwig: a existência imaginada, de um personagem que se sabe não ser real. Tem existência no imaginário de todos, mas não no mundo real dos humanos. A não ser que consideres um homem que se veste de homem aranha e afirme ser o homem aranha é o homem aranha. Isso é existir? Isso é ser o homem aranha?

    As características não corpóreas existem ou não? O teu sistema de valores, a tua moral, os teus sentimentos não são completamente verificáveis experimentalmente. Nem são como os bonecos do homem aranha, porque não os puseste todos no papel. E no entanto existem. Mais: definem-te (e são relativamente fluidos, com uma constância associada). Mas existem só quando os demonstras, quando ages segundo eles? E se decidires deitar-te a dormir e não fazer nada para o resto da tua vida? E depois de morreres, continuam a existir (ou não existiam em primeiro lugar?).

    A democracia existe? É empírica? Ou é só um conceito sem existência real? Mas e se existe um regime com essas características, já passa a ter existência real?

    Digo eu que se entra de novo essencialmente em retórica. E com retórica pode defender e atacar-se quase tudo e chegar-se a praticamente qualquer conclusão. Por exemplo, "democracia" tem várias definições. Curiosamente a grega, a original não é igual à que se usa hoje em dia (era mais uma reunião de condomínio onde só os proprietários é que mandavam e os outros nem mandar bocas podiam).

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  6. JC

    Parece-me (mas não juro) que "JC (o tal que não é o Cristo, nem tem crista e embirra com cristalizados)" é grande economia de caracteres! Penso eu de que.

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  7. Abobrinha:

    O Ludwig não está a negar a existência do Homem-Aranha. Está apenas a defender o mesmo que dizes: «O homem-aranha tem uma existência diferente de um Ludwig: a existência imaginada, de um personagem que se sabe não ser real. Tem existência no imaginário de todos, mas não no mundo real dos humanos.»

    É este o ponto do Ludwig. É precisamente isso que ele quer esclarecer.


    Porque quando se diz "Deus existe na cabeça dos crentes, isso é indiscutível", como se fosse um argumento muito forte contra os ateus, na verdade esta-se a caír em sofismas que o Ludwig aqui desmistifica.
    O Pai Natal também existe na cabeça de quem acredita nele, mas não é isso que se discute.
    A generalidade dos crentes acredita que Deus é mais que o Pai Natal, e que (ao contrário do Pai Natal) existiria mesmo que ninguém acreditasse nele. É disso que os ateus discordam.

    Ale+m do Daniel Dennet vejo muito poucos ateus a duvidarem que Deus exista na cabeça dos crentes. E mesmo este último acredita queDeus existe na cabeça de alguns, mas muito, muito, menos do que aqueles que dizem acreditar. Mas isso é outra conversa...

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  8. Digo mais: embora eu não consiga encontrar, lembro-me de um texto neste blogue em que o Ludwig dizia que era ateu, mas acreditava em Deus.
    Depois esclareceu que acreditava em Deus como no Pai Natal: sabia que existia nas mentes e acções dos crentes.

    Depois esclareceu que mesmo que soubesse que existia - sem ser nas fantasias alheias - não o adoraria.

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  9. Mesmo os crentes também devem ter algumas reservas no que respeita à adoração. Caso contrário o Senhor não sentiria a necessidade de andar sempre a ameaçar toda a gente com o inferno e as pragas e o catano.

    Gajo chato fonix!

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  10. Nah! Isso é por causa dos ateus! E é mesmo só para chatear!

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  11. Um post que não prova a existência nem sequer a não existência de Deus...

    o sr. Ludwig Krippahl consegue provar que Deus não existe ontologicamente? Duvido...

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  12. Caro df,

    Leia este.

    João e Abobrinha,

    Eu penso que estamos de acordo, mas eu prefiro não falar de existências diferentes mas da existência (só há um tipo) de seres diferentes.

    Assim o homem-aranha-personagem-de-banda-desenhada existe, enquanto o homem-aranha-mesmo-a-sério não existe. O mesmo com Deus-personagem-da-bíblia-que-muita-gente-julga-ser-real e Deus-o-de-verdade-que-criou-esta-cena-toda.

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  13. Ludwig

    Esquivaste-te de todas as outras definições que eu fiz.

    Nem tudo é só corpóreo, também há coisas não palpáveis (se bem que eu prefira as palpáveis, if you know what I mean).

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  14. Abobrinha,

    Não é relevante. Tudo isso são propriedades. Substitui o unicórnio por fantasma e é a mesma coisa.

    Uma coisa existe se as suas propriedades estão instanciadas. O amor existe. O amor encarnado às bolinhas azuis não existe porque essa propriedade não está instanciada.

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