domingo, janeiro 06, 2008

Conhecimento.

Nesta última rodada o Desidério deixou-me um pouco confuso. Começa por afirmar que «Uma verdade é analítica se, e só se, podemos saber a priori que é verdadeira.»(1) Fiquei surpreendido mas estou de acordo. É isso mesmo. Só é verdade a priori se for analítica, e vice versa. Mas baralhou-me que o parágrafo seguinte afirmasse «Pode ser que todo o conhecimento a priori seja conhecimento de verdades analíticas, mas tal coisa não se segue dos conceitos de a priori e de analiticidade.» Parece-me contradizer o «se, e só se».

Mas deixo ao Desidério explicar na próxima rodada se há proposições sintéticas cuja verdade seja justificável a priori, e aproveito para resumir a minha posição e tentar esclarecer as dúvidas do António e do Francisco Saraiva de Sousa (2). Eu proponho que o conhecimento diz respeito* à adequação do modelo simbólico** àquilo que se quer conhecer. Para conhecer X temos que criar um modelo que descreva adequadamente X, e quanto mais adequado for o modelo melhor conhecemos X. Para isto precisamos de raciocínio, porque é preciso lidar com o modelo simbólico, e precisamos de observações (experiências, dirá talvez o Desidério) para que o modelo de X não acerte ou falhe só por sorte. Todo o conhecimento é uma conjunção destes dois aspectos.

A primeira objecção, a que o Desidério levantou, é que há frases cuja verdade é justificável por mais nada que o seu significado. «Nenhum casado é solteiro», por exemplo. E há outras que exigem algo mais, como «nenhum casado é feliz». Eu concordo com a distinção, mas em ambos os casos precisamos de conhecimento para decidir. Precisamos saber o que é solteiro, casado, feliz, ser, e assim por diante. E todo esse conhecimento é do mesmo tipo. Ser a priori ou a posteriori apenas caracteriza a frase conforme o seu significado é suficiente ou insuficiente para determinar a sua verdade. Mas isto não sugere que haja tipos diferentes de conhecimento. Afinal, o conhecimento do significado da frase é do mesmo tipo que qualquer outro conhecimento.

Outra objecção é a matemática. Uma demonstração matemática é uma sequência de passos que substituem expressões por expressões sinónimas. É tudo a priori, no sentido de que a expressão final é equivalente à inicial. E é evidente que a matemática nos dá conhecimento. O erro é pensar que a matemática é só isto.

Imaginem que um génio louco inventa um conjunto de símbolos e regras para os manipular. Dedica a vida a demonstrar complexas transformações, propriedades de famílias de sequências e combinações de regras duma complexidade mirabolante. Por si só, isto não é conhecimento. É tudo a priori, é tão complexo quanto quisermos, mas se não tem significado nenhum não é conhecimento.

É óbvio que a matemática não é assim. O “2” e o “+” e o “=” não são apenas símbolos mas têm significado. E esse significado depende de algo empírico. De contar coisas ou agrupar coisas em conjuntos ou de palavras que se referem a coisas e acontecimentos. A matemática é conhecimento porque é raciocínio e observação, senão era como o jogo do génio maluco. O conhecimento matemático é conhecimento porque é tão empírico como qualquer outro.

Este é um ponto importante, e recorrente, nesta discussão com o Desidério. No último post ele afirma «Por exemplo, não se consegue tornar verdade por estipulação que dois mais dois é sete. O que podemos tornar verdade por estipulação é que a palavra “sete” quer dizer quatro, e nesse caso dois mais dois é sete, mas isto é uma confusão entre linguagem e referência porque "sete" agora quer dizer quatro.»(2). Não é confusão nenhuma. É isso mesmo. Sem o aspecto empírico dos símbolos (o seu significado) não há conhecimento. Nem sequer verdade no sentido que interessa.

Em suma, estes dois aspectos, a observação e a manipulação dos símbolos e conceitos, são indissociáveis no conhecimento. São aspectos diferentes e podemos distinguir exemplos de um e de outro, mas não há dois tipos de conhecimento porque não há conhecimento sem a conjugação de ambos.

* Este “diz respeito” é propositadamente vago. Podemos discutir se o conhecimento é o modelo adequado, se é a adequação do modelo ou se é a informação que nos permite tornar o modelo adequado. Por enquanto não me interessa esmiuçar isto porque, para este efeito, tanto faz.

** Simbólico porque estamos a falar apenas daquele conhecimento explícito que codificamos em palavras, equações, etc. Não estou a falar de saber digerir uma maçã ou saltar à corda. Peço desculpa pelas notas de rodapé, mas na filosofia um tipo tem que ter muito cuidado com o que diz.

1- Desidério Murcho, 5-1-08, Linguagem e a priori
2- A priori, só depois...

7 comentários:

  1. Em suma: defende duas teses:
    1) Todo o conhecimento é conhecimento empírico. (Concordo com este tese reformulada: Todo o conhecimento é (visa ser), em última análise, conhecimento empírico. Mas como termos acesso à "realidade" sem conhecimentos prévios mediados por uma linguagem que nos antecede e nos sobrevive?)
    2) O conhecimento é uma conjugação de modelos simbólicos e "observações" ou "experiências" mediadas pelo "raciocínio" ou um "princípio activo" (o sujeito?).
    Estas teses supõem uma terceira:
    3) A verdade pode ser definida como uma adequação dos modelos simbólicos com a "realidade", de resto uma versão da teoria clássica da correspondência.
    Existem na sua formulação alguns termos não definidos: modelo simbólico, símbolos, conceitos, realidade, raciocínio, etc. E, para todos os efeitos, ao destacar o plano do modelo simbólico, está a dar a primazia à linguagem no processo de produção de conhecimentos, sem articular a dimensão simbólica e a dimensão conceptual, sendo tentado a reduzir tudo à significação ou, quem sabe?, ao sentido. Mas todo o conhecimento é dito na e pela lingua(gem)! Trabalhamos com enunciados de diversos tipos e não com "dados brutos" ou "princípios extraterrestres". O conhecimento pode ser visto como "capital" que se reproduz... Ou como uma processo de produção teórica: uma prática de transformação de certos conhecimentos prévios noutros conhecimentos mais avançados, transformação operada pelo uso de métodos, técnicas, teorias, etc. E, nesse processo, vamos do abstracto para o concreto, aquilo a que chama conhecimento empírico. Uma teoria não fornece o conhecimento concreto de objectos concretos, mas "guia" ou possibilita esse conhecimento sintético.
    A matemática desafia a sua perspectiva e, por isso, redu-la a conhecimento empírico. Mas será a matemática uma ciência? Ainda não percebi porque razão a matemática deve ser encarada como uma ciência. Precisa clarificar este aspecto da sua filosofia da matemática.
    Deixo estas improvisações, próximas daquilo que fazemos diariamente quando investigamos qualquer X. Os filósofos já se debruçaram sobre estas questões. Gosto das referências. Popper, Bachelard, Kuhn, Lakatos, Goodman, Cassirer, uma infinidade deles.
    Um abraço

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  2. Procurei não criticar as suas vacilações de terminologia, porque tem muitas, o que dificulta a apreensão das suas ideias.
    Vacilou muito com a matemática a ponto de põr em causa a sua noção de conhecimento. Se usa a "significação" como critério que possibilita distinguir e demarcar a ciência e a metafísica, deve ler Popper e outros. O neopositivismo foi; já não é, graças a Deus. Além disso, conheço muitos cálculos matemáticos fabulosos que ainda não foram "aplicados". Podem não ser conhecimento, mas abrem novas vias ao conhecimento. Se o levarmos a sério, a matemática, pelo menos a pura, não é conhecimento de nenhum fragmento da realidade. Mas ela pretende sê-lo? A matemática é mais um meio de produção usado para produzir conhecimentos. :))

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  3. Olá amigos!
    Feliz 2008.
    Estou com um post novo. O Santuário. Sobre o verdadeiro Jesus Cristo.
    Grande abraço!

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  4. Caro Francisco,

    Penso que estou de acordo com tudo, incluindo as críticas à terminologia. A terminologia é sempre um problema quando se discute qualquer coisa, até porque cada àrea tem a sua. Mas quanto aos termos não definidos, a minha tese é precisamente que muitos terão que ser moldados empiricamente, pelo uso. É questão de paciência :)

    Só algumas notas acerca dos seus comentários. A verdade por correspondência é a que eu defendo, sim. Parece-me ser a unica forma de evitar uma «verdade» que seja mera sintaxe.

    E eu não digo que a matemática é uma ciência. Enquanto conhecimento é conhecimento empírico, porque não há outro. Mesmo as demonstrações de teoremas que nunca foram aplicados a nada são conhecimento empírico porque há ai mais que raciocínio puro. Há significado. Há correspondência entre aqueles simbolos e coisas ou conceitos adquiridos por experiência. Mas a matemática não é uma ciência (fica para o próximo post).

    Finalmente, por observação, por exame atento e minucioso do que queremos conhecer, quero mesmo indicar essa necessidade incontornável de ter um modelo para interpretar os dados e ter dados para construir o modelo. É um ciclo virtuoso que só funciona com ambas as partes, e é por isso que eu tenho alguma relutância em usar o termo "experiência". Na giria filosófica é adequado, mas no uso mais comum pode ser confundido com uma mera sensação ou algo do género.

    Mas a terminologia é um problema menor. Não que seja menos importante, mas porque vai-se resolvendo com o tempo :)

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  5. Ludwig,

    A minha falta de formação filosófica e alguma dificuldade de abstracção neste caso, continua a deixar-me com muitas dúvidas sobre o que dizes.
    - Não nego que a base de evolução do conhecimento é empirica. Por exemplo: alguém estava debaixo de uma arvore e levou com uma maçã que caiu. À Ocorrencia 1000000 dessa situação alguém disse "isto é a gravidade em acção!", o que deixa 999999 milhões de ocorrencias da mesma informação sem levar à mesma conclusão. É verdade que há observação do fenómeno que leva a uma conclusão, mas, a conclusão foi diferente em 999999 vezes em relação a essa. O que me leva a perguntar o que é que de empirico tem esse conhecimento gerado pela milionésima vitima do flagelo da maçã caida? A prova posterior é empirica, mas, até lá já foi gerado conhecimento à priori.
    O mesmo se passa com o rolar esferas com a mesma massa especifica, mas, pesos diferentes, por uma calha. Antes dessa experiência já o conhecimento tinha sido gerado!
    - Criar um modelo matemático de um fenómeno é a mesma coisa. Explica como prever os resultados de uma experiencia, mesmo que não seja executada. Esse conhecimento deixa de ser conhecimento só porque não foi "observado"?
    - A estatistica gera conhecimento sobre algo que se vai observar no futuro, independente da observação efectiva. O modelo é conhecido e anteriormente "observado" e por isso empirico, mas, não o é para a ocorrencia especifica de um jogo em curso. Neste caso é conhecimento à priori ou à posteriori?, no teu modelo?

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  6. António,

    A priori e a posteriori são termos que se aplicam à justificação de proposições. A proposição é a priori se o significado em si já justifica dizer que é verdade.

    Quem aplicou isto ao conhecimento foi o Desidério. Eu acho que não faz sentido aplicar esta distinção ao conhecimento.

    Seja como for, a justificação faz parte do conhecimento. Só posso legitimamente dizer que sei algo se puder justificar o que afirmo.

    Por isso o modelo por si só não é conhecimento, mesmo que por acaso acerte, porque é preciso justificar a afirmação que o modelo corresponde ao que é modelado. E essa justificação carece sempre de algo empírico.

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  7. Ludwig,

    Compreendido. Já percebi qual a diferença da tua posição em relação ao que o Desidério defende.
    Neste caso creio que tenho de mudar a minha percepção da questão.

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