A priori, só depois...
No seguimento da nossa conversa sobre o conhecimento, a realidade, a ciência e o que mais calhar, o Desidério apresentou duas frases para ilustrar dois tipos diferentes de conhecimento. O empírico e outro em que «basta raciocinar» (1):
«1) Se Sócrates era um ser humano, era um ser humano.
2) Sócrates era mais pesado do que Platão.»
A verdade da segunda tem que ser determinada pela experiência, de forma empírica. Eu prefiro “observação”, no sentido de «examinar com atenção e minúcia». Uns têm ideia que “empírico” ou “experimental” é só no laboratório, e outros que “experiência” pode ser uma mera sensação. Isto atrapalha a discussão com criacionistas (não se pode criar a vida em laboratório) ou malta new age (eu sinto que funciona e assim está provado por experiência). O conceito de exame atento e minucioso é fundamental nestes casos. Mas numa companhia mais sã aceito o termo “experiência”, e concordo que é necessária para saber se Sócrates pesa mais que Platão.
O problema é a distinção entre as duas frases: «a partir do momento em que as pessoas aprendem a pensar e falar português, basta pensar para saberem que a afirmação 1 é verdadeira.» Sim, mas a partir do momento em que saibam que Sócrates pesa 75 kg e Platão 62 kg também basta pensar para saberem que a afirmação 2 é verdadeira. Em ambos os casos têm que saber algo sobre o qual possam pensar, e esse algo, seja o que for, vem da experiência.
A experiência pode vir muito antes do raciocínio, e até sem conhecimento. Foi a ideia mais revolucionário do século XIX. Talvez de sempre. Antes de Darwin assumia-se que o pensamento vinha primeiro. A Palavra tinha criado tudo, e essas coisas. Darwin mostrou que primeiro foi um processo experimental de tentativa cega e muito erro, mas capaz de aproveitar o que, por acaso, acertava. A evolução não é conhecimento mas gera, testa, experimenta e produz mecanismos que têm conhecimento e discutem conhecimento em blogs.
Em última análise a evolução é a base experimental da minha afirmação que não há conhecimento sem experiência. O a priori do Desidério deve-se a décadas de aprendizagem, à sua experiência, e a quatro mil milhões de anos de experiências cegas que produziram o cérebro humano. Mas isso é irrelevante:
«O que Ludwig afirma é que mesmo para saber que 1 é verdadeira, tenho de saber o significado das palavras, conhecimento este que é claramente empírico. Pois é. Só que isso é irrelevante. Seria como afirmar que para fazer matemática temos de beber biberão.»
O biberão não faz parte da matemática, enquanto que o Português inclui forçosamente o significado das palavras. Mas percebo a ideia. A verdade de uma proposição é determinada a priori se segue do que está na proposição, sem precisar de mais nada. Aceito a definição de bom grado. Mas isto não é acerca do conhecimento. É acerca das proposições e da linguagem.
Imaginem uma língua na qual “Sócrates” refere um filósofo com 75 kg e «Platão» outro filósofo com 62 kg. A verdade da frase 2 é a posteriori em Português mas a priori nessa língua. Qualquer pessoa que saiba essa língua sabe o peso dos seres que as palavras referem, pois faz parte do sentido das palavras. E em Português a verdade de «Um filósofo com 75 kg é mais pesado que um filósofo com 62 kg» podia ser determinada a priori. Mas o conhecimento é o mesmo. Só muda o que está incluído em cada afirmação ou o que fica de fora.
A distinção que o Desidério defende é útil, e determinar o que é verdade a priori pode ser difícil ou até impossível, como Gödel provou (a priori). Mas “verdades” a priori é o que os computadores calculam. As linguagens de programação, a lógica e a matemática destacam-se porque, nestas, o que se prova a priori prova-se seguindo regras simples de manipulação de símbolos sem exigir conhecimento. O conhecimento só vem quando damos significado aos símbolos ligando-os à realidade. E isso é sempre a posteriori.
Se o “Sócrates” da frase 1 for o meu cão a frase 1 é à mesma verdadeira a priori. Mas é inútil enquanto conhecimento porque não corresponde à realidade.
1- Desidério Murcho, 2-1-08, Conhecimento não empírico
Ok. Vou adicioná-lo para o ler com mais regularidade. :)))
ResponderEliminarContudo, este seu texto não casa com o que disse no comentário que fez do texto de M. no De Rerum Natura.
ResponderEliminarAbraço
Caro Francisco,
ResponderEliminarO De Rerum tem tantos comentários que não consigo seguir. Experimentei deixar uns poucos e acabei por desistir...
Mas se bem me lembro foi o comentário da falsificabilidade (foi?). Penso que o que é preciso aí é distinguir o conhecimento que pomos em palavras (que é o que eu e o Desidério temos discutido) do conhecimento implicito.
Por exemplo, no meu cérebro há um modelo neuronal do que é tocar guitarra. Não é verdadeiro nem falso, nem falsificável. É um conjunto de neurónios eventualmente capazes de produzir aqueles sons na guitarra.
Quando lidamos com linguagens temos dois tipos de verdadeiro e falso. A correspondência à realidade, que é determinada sempre pela semântica, é conhecimento e exige observação. E a coerência, que em muitas línguas pode ser determinada por processos exclusivamente sintáticos e, por si só, não é conhecimento. Os computadores são prova disso.
Ludwig,
ResponderEliminarCreio que neste teu argumento, se percebi bem, atribuis a veracidade da primeira frase porque a semantica assim o implica, e depois deste em pós-modernista, a tentar atribuir significados arbitrários a palavras, de forma a moldar a verdade da segunda afirmação.
Pois neste aspecto concordo mais com o que o Desidério Murcho afirma no post dele. O teu "observável" tenta vedar o conhecimento aos cegos. Mas, o conhecimento, tal como o D.M. explica, também pode vir do raciocinio, sem "observação". Os processos neurológicos do cerebro que despoletam a capacidade de raciocinio, não são mais que cadeias infinitas de informação que despoletam reacções. Essa informação vem dos sentidos, e como tal, toda provem de um input, mas, a capacidade de raciocinio é questionável que venha das "observações" sensoriais. Senão, como explicas que alguem cego e surdo (e mudo) consiga viver e interagir com o mundo? Não passa pela mesma experiência sensorial que os demais, pelo que a realidade devia ser diferente para a dita pessoa, e comunicar com ela devia ser impossível, mas, não é!
Uma sugestão... Analise-se algum do conhecimento humano, e explica-me como pode ser "observado" antes de ser raciocinado.
-O PI.
-O teorema de pitágoras.
-A teoria da relatividade.
-A impossibilidade de a^n=b^n+c^n para n>2 e a, b e c diferentes de 0.
Todos estes casos parecem-me ser conhecimento deduzido, sem observações prévias que o confirmem.
... a menos que aceites o "biberão" do D.M. como sendo a base de toda a realidade. :-)
António,
ResponderEliminar« depois deste em pós-modernista, a tentar atribuir significados arbitrários a palavras, de forma a moldar a verdade da segunda afirmação.»
Não era pós modernismo porque não estava a dizer nada acerca dos factos. O que eu estava a (tentar) mostrar é que a diferença entre o a priori e o a posteriori não é uma diferença de conhecimento, mas uma diferença de linguagem. Porque o a priori presume que se conhece a linguagem, e a verdade de uma proposição justifica-se a priori porque o que se conhece da linguagem basta para determinar a verdade da proposição.
Ora isto não diz nada acerca do conhecimento ser a priori ou não. Diz apenas quanto conhecimento é que se tem que ter para compreender a linguagem.
Quanto ao resto, a ver se tenho tempo hoje para um post...
Caro Ludwig
ResponderEliminarCom tanta polémica, devo ter baralhado os autores. Suponho que a sua tese fundamental afirma que todo o conhecimento é empírico, embora depois pareça reconhecer alguns conhecimentos "a priori", recorrendo a algumas teorias que nem sempre são compatíveis.
Apenas quero dizer que sem conhecimento de objectos abstractos/gerais/formais não podíamos conhecer os objectos reais/concretos/singulares, cujos conceitos realizam os primeiros, acrescentando-lhes as determinações da existência. Deste modo, deslocamos a problemática e não precisamos ficar prisioneiros da problemática da filosofia da consciência.
Um abraço
Caro Francisco,
ResponderEliminarÉ claro que o conhecimento explicito exige conceitos, abstracção, formalismo. Linguagem. E isto por definição.
O que eu oponho é que se possa separar o puramente conceptual do resto e dizer que o primeiro é conhecimento sem precisar de qualquer observação (do exame atento das coisas a conhecer).
Mais especificamente neste caso, não concordo que a distinção entre a priori e a posteriori tenha a ver com conhecimento. Mas talvez seja deva voltar ao assunto e explicar melhor...
Mas é que tem tudo a ver...
ResponderEliminarO conhecimento aprioristico resulta sempre de conhecimento prévio...
Ludwig,
ResponderEliminarExiste ainda outra questão. É que duas pessoas na posse da mesma informação, deduzam coisas diferentes, e por vezes antagónicas. Outras, deduzem-nas de forma incompleta.
Newton e Einstein, com praticamente a mesma informação e meios (talvez com "formação" diferente), intuiram dois modelos, em que um, é um caso particular de outro. O que ambos souberam, muitas pessoas hoje com a mesma informação, e mais algum tempo de análise, expandiram para um modelo mais complexo. Eu, ainda não conheci ninguém que envelhecesse mais rápido do que eu por andar pelo universo à deriva, mais devagar que a Terra, ou alguém que envelhecesse menos por andar quase à velocidade da luz, nem o Einstein o "observou", mas, deduziu que assim era. Ter uma base por onde se conclui isto, é conhecimento à posteriori, mas, não o é do facto em sí. Esse foi conhecimento à priori, deduzido analiticamente por Einstein. Por isso é que digo que a tua questão com o conhecimento à priori é um mau enquadramento da mesma. Tem de haver "algum" conhecimento à posteriori como base, mas, nesse aspecto vou mais longe que o biberão do D.M., todo o conhecimento começa com a audição do ritmo cardiaco maternal, e as primeiras sensações dentro do utero, que são a base do nosso sistema nervoso.
Por isso me parece que a tua posição não é tão clara quanto isso. O que é que alegas afinal: Que todo o conhecimento é à posteriori, e não há conhecimento à priori? Ou há conhecimento à priori, mas, com base em conhecimento prévio gerado por observação e experiencia, portanto à posteriori? Negas ou não a possibilidade de se garar algum conhecimento à priori?
«Newton e Einstein, com praticamente a mesma informação e meios (talvez com "formação" diferente),»
ResponderEliminarAntónio:
Isto é erradíssimo. Einsteins chegou à relatividade restrita porque dispunha de uma informação NADA irrelevante, que estava indisponível para Newton: as equações de Maxwell.
João Vasco,
ResponderEliminarNão querendo aligeirar a questão, não resisto...
Partir das equações de Maxwell e generalizar, deduzindo os equivalentes para o universo, é necessário vêr isso pelo prisma de uma garrafa de Grants. :-)
Tenho de corrigir o exemplo... Mas de forma menos especifica.
As equações de Maxwell eram conhecidas de todo o meio cientifico da altura, tal como todo o trabalho de Newton, mas, nessa mesma altura e com a mesma informação Einstein deduziu, sem observação prévia um conjunto de informação, que não fora nunca observado.
António:
ResponderEliminarEinstein deduziu a relatividade a partir das equações de Maxwell.
As equações de Maxwell falam num fenómeno oscilatório - ondas electromagnéticas (luz) - que se propagam a velocidade c.
Mas não falam em nenhum referencial. Isto é bizarro porque de acordo com a relatividade de Galileu, qualquer velocidade depende do referencial. Se tu estás num carro, o volante está a velocidade 0 no teu referencial, e a velocidade X no referencial da estrada. Não existe uma velocidade "pura" do volante.
Mas as equações de Maxweel falam numa velocidade "pura" da propagação da luz: c.
Acontece que as equações de Maxwell estavam constantemente a bater certo: dificilmente podiam estar erradas.
Então haveria duas opções: ou c correspondia à velocidade com que a luz se propagava num meio (indistinguível do vácuo), no referencial de repouso desse meio; ou a luz propaga-se a c no vácuo qualquer que seja o referencial.
A segunda opção é obviamente bizarra. Queria dizer que se tu ligasses uma lanterna dentro do carro, a luz andaria à mesma velocidade para ti e para quem tivesse na estrada. Facilmente entendes que isso implica que o próprio tempo e espaço dependem do referencial.
Por isso (quase) todos os físicos da altura escolheram a primeira opção. A luz propaga-se no éter com velocidade c face ao éter, sendo o éter indistinguível do vazio, a não ser por permitir que a luz lá passe (assume-se que uma onda não se propaga no vazio).
Einstein escolheu a segunda, e a experiência mostrou que escolheu a opção certa. A velocidade da luz é independente do referencial. A relatividade de Galileu está errada. O tempo e o espaço alteram-se consoante o referencial por forma a que a velocidade da luz seja constante.
Newton não poderia ter deduzido isto, pois nem sequer dispunha das equações de Maxwell, que foram o ponto de partida.
Na verdade, pelas equações de Maxwell é possível fazer o raciocínio de Einstein. Se estiveres no referencial do fotão, na frente de onda, se o tempo passar, como o campo electrico não muda, não induzes variação do campo magnético, e não tens o fenómeno oscilatório a que chamamos luz. A única maneira de poder haver luz, pensou Einstein e bem, é que o tempo não passe no referencial da própria luz. E isto decorre naturalkmente das suas contas para que ela ande sempre à mesma velocidade qualquer que seja o referencial (embora a velocidade varie com o meio, mas isso é diferente).
João Vasco,
ResponderEliminarE agora a pergunta dos 250000 Euros... :-)
Ao fazer o que fez, o conhecimento gerado por Einstein foi à priori ou à posteriori?
(Não estamos a falar das bases. Estamos a falar da Relatividade em sí)
Há uma coisa que necessito que me seja clarificada antes de ler o resto do post. De qual Socrates é que estamos a falar?
ResponderEliminarÉ que se for do noss José então a 1 afirmação não é falsa é só absurda!!!
(desculpem eu sei que estavam todos a falar a sério, mas não resisti)
António:
ResponderEliminarA teoria de Einstein era meramente especulativa. Seria possível que o éter existisse e que o electromagnetismo de Maxwell assumisse sempre o referencial de repouso do éter (pelo que não se aplicaria ao referencial da frente de onda, por exemplo).
Foi por observação que a teoria de Einstein passou de especulação a conhecimento, por assim dizer.
João Vasco,
ResponderEliminarA observação confirmou, à posteriori, o conhecimento, ou informação que foi criada à priori. O modelo mesmo sem confirmação é conhecimento, é informação. Tal com a questão de deus existir ou não. Creio que, por acreditar que deus não existe, e a existir parece que ninguém o consegue provar, todo o conhecimento que existe sobre a questão é à priori, e sempre o será, e por muito falso que seja o conhecimento teológico, não deixa de ser informação, e que nunca será observável.
A questão à priori/posteriori, parece mais a questão do ovo e da galinha. O que é que surge primeiro? A informação ou a observação? Em muitos casos é a observação, mas, o conhecimento cientifico é quase todo feito de teorização seguida de experiencia/observação. A teorização em sí é informação, é útil, e mesmo se for falsa é válida para o processo e por isso, é conhecimento gerado à priori.