quarta-feira, janeiro 02, 2008

A priori, só depois...

No seguimento da nossa conversa sobre o conhecimento, a realidade, a ciência e o que mais calhar, o Desidério apresentou duas frases para ilustrar dois tipos diferentes de conhecimento. O empírico e outro em que «basta raciocinar» (1):

«1) Se Sócrates era um ser humano, era um ser humano.
2) Sócrates era mais pesado do que Platão.»


A verdade da segunda tem que ser determinada pela experiência, de forma empírica. Eu prefiro “observação”, no sentido de «examinar com atenção e minúcia». Uns têm ideia que “empírico” ou “experimental” é só no laboratório, e outros que “experiência” pode ser uma mera sensação. Isto atrapalha a discussão com criacionistas (não se pode criar a vida em laboratório) ou malta new age (eu sinto que funciona e assim está provado por experiência). O conceito de exame atento e minucioso é fundamental nestes casos. Mas numa companhia mais sã aceito o termo “experiência”, e concordo que é necessária para saber se Sócrates pesa mais que Platão.

O problema é a distinção entre as duas frases: «a partir do momento em que as pessoas aprendem a pensar e falar português, basta pensar para saberem que a afirmação 1 é verdadeira.» Sim, mas a partir do momento em que saibam que Sócrates pesa 75 kg e Platão 62 kg também basta pensar para saberem que a afirmação 2 é verdadeira. Em ambos os casos têm que saber algo sobre o qual possam pensar, e esse algo, seja o que for, vem da experiência.

A experiência pode vir muito antes do raciocínio, e até sem conhecimento. Foi a ideia mais revolucionário do século XIX. Talvez de sempre. Antes de Darwin assumia-se que o pensamento vinha primeiro. A Palavra tinha criado tudo, e essas coisas. Darwin mostrou que primeiro foi um processo experimental de tentativa cega e muito erro, mas capaz de aproveitar o que, por acaso, acertava. A evolução não é conhecimento mas gera, testa, experimenta e produz mecanismos que têm conhecimento e discutem conhecimento em blogs.

Em última análise a evolução é a base experimental da minha afirmação que não há conhecimento sem experiência. O a priori do Desidério deve-se a décadas de aprendizagem, à sua experiência, e a quatro mil milhões de anos de experiências cegas que produziram o cérebro humano. Mas isso é irrelevante:

«O que Ludwig afirma é que mesmo para saber que 1 é verdadeira, tenho de saber o significado das palavras, conhecimento este que é claramente empírico. Pois é. Só que isso é irrelevante. Seria como afirmar que para fazer matemática temos de beber biberão.»

O biberão não faz parte da matemática, enquanto que o Português inclui forçosamente o significado das palavras. Mas percebo a ideia. A verdade de uma proposição é determinada a priori se segue do que está na proposição, sem precisar de mais nada. Aceito a definição de bom grado. Mas isto não é acerca do conhecimento. É acerca das proposições e da linguagem.

Imaginem uma língua na qual “Sócrates” refere um filósofo com 75 kg e «Platão» outro filósofo com 62 kg. A verdade da frase 2 é a posteriori em Português mas a priori nessa língua. Qualquer pessoa que saiba essa língua sabe o peso dos seres que as palavras referem, pois faz parte do sentido das palavras. E em Português a verdade de «Um filósofo com 75 kg é mais pesado que um filósofo com 62 kg» podia ser determinada a priori. Mas o conhecimento é o mesmo. Só muda o que está incluído em cada afirmação ou o que fica de fora.

A distinção que o Desidério defende é útil, e determinar o que é verdade a priori pode ser difícil ou até impossível, como Gödel provou (a priori). Mas “verdades” a priori é o que os computadores calculam. As linguagens de programação, a lógica e a matemática destacam-se porque, nestas, o que se prova a priori prova-se seguindo regras simples de manipulação de símbolos sem exigir conhecimento. O conhecimento só vem quando damos significado aos símbolos ligando-os à realidade. E isso é sempre a posteriori.

Se o “Sócrates” da frase 1 for o meu cão a frase 1 é à mesma verdadeira a priori. Mas é inútil enquanto conhecimento porque não corresponde à realidade.

1- Desidério Murcho, 2-1-08, Conhecimento não empírico

16 comentários:

  1. Ok. Vou adicioná-lo para o ler com mais regularidade. :)))

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  2. Contudo, este seu texto não casa com o que disse no comentário que fez do texto de M. no De Rerum Natura.
    Abraço

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  3. Caro Francisco,

    O De Rerum tem tantos comentários que não consigo seguir. Experimentei deixar uns poucos e acabei por desistir...

    Mas se bem me lembro foi o comentário da falsificabilidade (foi?). Penso que o que é preciso aí é distinguir o conhecimento que pomos em palavras (que é o que eu e o Desidério temos discutido) do conhecimento implicito.

    Por exemplo, no meu cérebro há um modelo neuronal do que é tocar guitarra. Não é verdadeiro nem falso, nem falsificável. É um conjunto de neurónios eventualmente capazes de produzir aqueles sons na guitarra.

    Quando lidamos com linguagens temos dois tipos de verdadeiro e falso. A correspondência à realidade, que é determinada sempre pela semântica, é conhecimento e exige observação. E a coerência, que em muitas línguas pode ser determinada por processos exclusivamente sintáticos e, por si só, não é conhecimento. Os computadores são prova disso.

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  4. Ludwig,

    Creio que neste teu argumento, se percebi bem, atribuis a veracidade da primeira frase porque a semantica assim o implica, e depois deste em pós-modernista, a tentar atribuir significados arbitrários a palavras, de forma a moldar a verdade da segunda afirmação.

    Pois neste aspecto concordo mais com o que o Desidério Murcho afirma no post dele. O teu "observável" tenta vedar o conhecimento aos cegos. Mas, o conhecimento, tal como o D.M. explica, também pode vir do raciocinio, sem "observação". Os processos neurológicos do cerebro que despoletam a capacidade de raciocinio, não são mais que cadeias infinitas de informação que despoletam reacções. Essa informação vem dos sentidos, e como tal, toda provem de um input, mas, a capacidade de raciocinio é questionável que venha das "observações" sensoriais. Senão, como explicas que alguem cego e surdo (e mudo) consiga viver e interagir com o mundo? Não passa pela mesma experiência sensorial que os demais, pelo que a realidade devia ser diferente para a dita pessoa, e comunicar com ela devia ser impossível, mas, não é!

    Uma sugestão... Analise-se algum do conhecimento humano, e explica-me como pode ser "observado" antes de ser raciocinado.
    -O PI.
    -O teorema de pitágoras.
    -A teoria da relatividade.
    -A impossibilidade de a^n=b^n+c^n para n>2 e a, b e c diferentes de 0.

    Todos estes casos parecem-me ser conhecimento deduzido, sem observações prévias que o confirmem.
    ... a menos que aceites o "biberão" do D.M. como sendo a base de toda a realidade. :-)

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  5. António,

    « depois deste em pós-modernista, a tentar atribuir significados arbitrários a palavras, de forma a moldar a verdade da segunda afirmação.»

    Não era pós modernismo porque não estava a dizer nada acerca dos factos. O que eu estava a (tentar) mostrar é que a diferença entre o a priori e o a posteriori não é uma diferença de conhecimento, mas uma diferença de linguagem. Porque o a priori presume que se conhece a linguagem, e a verdade de uma proposição justifica-se a priori porque o que se conhece da linguagem basta para determinar a verdade da proposição.

    Ora isto não diz nada acerca do conhecimento ser a priori ou não. Diz apenas quanto conhecimento é que se tem que ter para compreender a linguagem.

    Quanto ao resto, a ver se tenho tempo hoje para um post...

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  6. Caro Ludwig

    Com tanta polémica, devo ter baralhado os autores. Suponho que a sua tese fundamental afirma que todo o conhecimento é empírico, embora depois pareça reconhecer alguns conhecimentos "a priori", recorrendo a algumas teorias que nem sempre são compatíveis.
    Apenas quero dizer que sem conhecimento de objectos abstractos/gerais/formais não podíamos conhecer os objectos reais/concretos/singulares, cujos conceitos realizam os primeiros, acrescentando-lhes as determinações da existência. Deste modo, deslocamos a problemática e não precisamos ficar prisioneiros da problemática da filosofia da consciência.
    Um abraço

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  7. Caro Francisco,

    É claro que o conhecimento explicito exige conceitos, abstracção, formalismo. Linguagem. E isto por definição.

    O que eu oponho é que se possa separar o puramente conceptual do resto e dizer que o primeiro é conhecimento sem precisar de qualquer observação (do exame atento das coisas a conhecer).

    Mais especificamente neste caso, não concordo que a distinção entre a priori e a posteriori tenha a ver com conhecimento. Mas talvez seja deva voltar ao assunto e explicar melhor...

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  8. Mas é que tem tudo a ver...
    O conhecimento aprioristico resulta sempre de conhecimento prévio...

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  9. Ludwig,

    Existe ainda outra questão. É que duas pessoas na posse da mesma informação, deduzam coisas diferentes, e por vezes antagónicas. Outras, deduzem-nas de forma incompleta.
    Newton e Einstein, com praticamente a mesma informação e meios (talvez com "formação" diferente), intuiram dois modelos, em que um, é um caso particular de outro. O que ambos souberam, muitas pessoas hoje com a mesma informação, e mais algum tempo de análise, expandiram para um modelo mais complexo. Eu, ainda não conheci ninguém que envelhecesse mais rápido do que eu por andar pelo universo à deriva, mais devagar que a Terra, ou alguém que envelhecesse menos por andar quase à velocidade da luz, nem o Einstein o "observou", mas, deduziu que assim era. Ter uma base por onde se conclui isto, é conhecimento à posteriori, mas, não o é do facto em sí. Esse foi conhecimento à priori, deduzido analiticamente por Einstein. Por isso é que digo que a tua questão com o conhecimento à priori é um mau enquadramento da mesma. Tem de haver "algum" conhecimento à posteriori como base, mas, nesse aspecto vou mais longe que o biberão do D.M., todo o conhecimento começa com a audição do ritmo cardiaco maternal, e as primeiras sensações dentro do utero, que são a base do nosso sistema nervoso.
    Por isso me parece que a tua posição não é tão clara quanto isso. O que é que alegas afinal: Que todo o conhecimento é à posteriori, e não há conhecimento à priori? Ou há conhecimento à priori, mas, com base em conhecimento prévio gerado por observação e experiencia, portanto à posteriori? Negas ou não a possibilidade de se garar algum conhecimento à priori?

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  10. «Newton e Einstein, com praticamente a mesma informação e meios (talvez com "formação" diferente),»

    António:

    Isto é erradíssimo. Einsteins chegou à relatividade restrita porque dispunha de uma informação NADA irrelevante, que estava indisponível para Newton: as equações de Maxwell.

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  11. João Vasco,

    Não querendo aligeirar a questão, não resisto...
    Partir das equações de Maxwell e generalizar, deduzindo os equivalentes para o universo, é necessário vêr isso pelo prisma de uma garrafa de Grants. :-)

    Tenho de corrigir o exemplo... Mas de forma menos especifica.
    As equações de Maxwell eram conhecidas de todo o meio cientifico da altura, tal como todo o trabalho de Newton, mas, nessa mesma altura e com a mesma informação Einstein deduziu, sem observação prévia um conjunto de informação, que não fora nunca observado.

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  12. António:

    Einstein deduziu a relatividade a partir das equações de Maxwell.

    As equações de Maxwell falam num fenómeno oscilatório - ondas electromagnéticas (luz) - que se propagam a velocidade c.

    Mas não falam em nenhum referencial. Isto é bizarro porque de acordo com a relatividade de Galileu, qualquer velocidade depende do referencial. Se tu estás num carro, o volante está a velocidade 0 no teu referencial, e a velocidade X no referencial da estrada. Não existe uma velocidade "pura" do volante.

    Mas as equações de Maxweel falam numa velocidade "pura" da propagação da luz: c.
    Acontece que as equações de Maxwell estavam constantemente a bater certo: dificilmente podiam estar erradas.

    Então haveria duas opções: ou c correspondia à velocidade com que a luz se propagava num meio (indistinguível do vácuo), no referencial de repouso desse meio; ou a luz propaga-se a c no vácuo qualquer que seja o referencial.

    A segunda opção é obviamente bizarra. Queria dizer que se tu ligasses uma lanterna dentro do carro, a luz andaria à mesma velocidade para ti e para quem tivesse na estrada. Facilmente entendes que isso implica que o próprio tempo e espaço dependem do referencial.

    Por isso (quase) todos os físicos da altura escolheram a primeira opção. A luz propaga-se no éter com velocidade c face ao éter, sendo o éter indistinguível do vazio, a não ser por permitir que a luz lá passe (assume-se que uma onda não se propaga no vazio).

    Einstein escolheu a segunda, e a experiência mostrou que escolheu a opção certa. A velocidade da luz é independente do referencial. A relatividade de Galileu está errada. O tempo e o espaço alteram-se consoante o referencial por forma a que a velocidade da luz seja constante.


    Newton não poderia ter deduzido isto, pois nem sequer dispunha das equações de Maxwell, que foram o ponto de partida.

    Na verdade, pelas equações de Maxwell é possível fazer o raciocínio de Einstein. Se estiveres no referencial do fotão, na frente de onda, se o tempo passar, como o campo electrico não muda, não induzes variação do campo magnético, e não tens o fenómeno oscilatório a que chamamos luz. A única maneira de poder haver luz, pensou Einstein e bem, é que o tempo não passe no referencial da própria luz. E isto decorre naturalkmente das suas contas para que ela ande sempre à mesma velocidade qualquer que seja o referencial (embora a velocidade varie com o meio, mas isso é diferente).

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  13. João Vasco,

    E agora a pergunta dos 250000 Euros... :-)
    Ao fazer o que fez, o conhecimento gerado por Einstein foi à priori ou à posteriori?
    (Não estamos a falar das bases. Estamos a falar da Relatividade em sí)

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  14. Há uma coisa que necessito que me seja clarificada antes de ler o resto do post. De qual Socrates é que estamos a falar?
    É que se for do noss José então a 1 afirmação não é falsa é só absurda!!!

    (desculpem eu sei que estavam todos a falar a sério, mas não resisti)

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  15. António:

    A teoria de Einstein era meramente especulativa. Seria possível que o éter existisse e que o electromagnetismo de Maxwell assumisse sempre o referencial de repouso do éter (pelo que não se aplicaria ao referencial da frente de onda, por exemplo).

    Foi por observação que a teoria de Einstein passou de especulação a conhecimento, por assim dizer.

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  16. João Vasco,

    A observação confirmou, à posteriori, o conhecimento, ou informação que foi criada à priori. O modelo mesmo sem confirmação é conhecimento, é informação. Tal com a questão de deus existir ou não. Creio que, por acreditar que deus não existe, e a existir parece que ninguém o consegue provar, todo o conhecimento que existe sobre a questão é à priori, e sempre o será, e por muito falso que seja o conhecimento teológico, não deixa de ser informação, e que nunca será observável.
    A questão à priori/posteriori, parece mais a questão do ovo e da galinha. O que é que surge primeiro? A informação ou a observação? Em muitos casos é a observação, mas, o conhecimento cientifico é quase todo feito de teorização seguida de experiencia/observação. A teorização em sí é informação, é útil, e mesmo se for falsa é válida para o processo e por isso, é conhecimento gerado à priori.

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