quinta-feira, janeiro 10, 2008

O tratado.

No Esquerda Republicana, o Ricardo Alves lamenta que não haja referendo acerca do tratado de Lisboa. No post «Esperemos que haja democracia» o Ricardo escreve que «Há mais de vinte anos que os cidadãos aguardam que os deixem dizer uma palavra sobre a União Europeia» (1). A hipérbole perdoo. O resto não.

A democracia é muito mais que votar. É a independência dos ramos do estado, a aplicação imparcial da lei, a protecção das minorias e dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão e associação, e assim por diante. E, quando se vota, normalmente elege-se quem represente os eleitores. Há mais de vinte anos que os cidadãos elegem quem organiza a União Europeia. Quem assinou o tratado de Lisboa foi eleito democraticamente para representar os cidadãos. A afirmação do Ricardo não é apenas exagerada. É falsa.

A partir de 2014 as votações no Conselho Europeu serão decididas por maioria dupla de 55% dos estados membros que incluam 65% da população da União Europeia, excepto se as medidas forem opostas por menos de 4 países, caso esse em que se dispensa o requisito da maioria da população para impedir que poucos estados mais populosos bloqueiem as decisões. É este o tipo de coisas no tratado de Lisboa, e é por isto que a democracia tem que ser representativa. Não se consegue pôr centenas de milhões de pessoas a decidir estas coisas por referendo. Tem que se eleger representantes que negoceiem os detalhes. Se os eleitores não gostam do resultado, pois que elejam outros representantes que façam tudo de novo. O processo é reversível.

Além da ineficácia, os referendos também são uma forma irresponsável de decidir. Para que o eleitorado exprima a sua opinião sincera ninguém pode ser responsabilizado pelo voto, que tem que ser secreto e livre de consequências. Mas não é isso que queremos numa decisão que afecta todos. Quem decide deve ser responsável e responsabilizável. A decisão de cujas consequências ninguém tem culpa é asneira garantida.

A falta de responsabilidade faz os partidos aproveitar para fazer do referendo um concurso de popularidade. Quem ficar do lado que teve mais votos, seja pelo que for, fica mais popular. Se referendarem a questão «Devemos dar todos um tiro no pé?» há de haver quem fica do lado do sim só a ver se ganha votos. Porque se ficar tudo a coxear ninguém é responsável. Ganhámos. Fez-se a vontade dos eleitores.

Finalmente, o problema que o Ricardo ilustra. A razão principal para não haver referendo acerca disto, independentemente do que os políticos prometeram. Uma questão técnica complexa com uma grande rede de consequências para centenas de milhões de pessoas vai ser reduzida a meia dúzia de chavões demagógicos e enganadores. Pela democracia! Abaixo a pobreza! Qualquer coisa com soberania e identidade nacional! E assim por diante, até uma data de gente votar sem saber no quê. Isso não é democracia. É treta.

1- Ricardo Alves, 8-1-08, Esperemos que haja democracia

10 comentários:

  1. Para além de serem uma forma irresponsável de decidir, são uma forma cobarde.

    O governo é eleito para tomar decisões, e eu quando voto escolho quem considero que irá tomar melhores decisões que eu por vários motivos, como conhecer melhor a envolvente do país, ter melhor conhecimento de como funciona a maquina democratica etc, escolho.

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  2. Ludwig

    Há mais que muitas tretas no meio disto. Vou ver se consigo fazer sentido.

    Pelo referendo:

    1. Este tratado é (é?) uma constituição simplificada ou "complificada". Constituição essa que foi referendada e chumbada por vários países. O que é que esta não tem que a outra tinha, para poder não ser referendada?

    2. A Europa corre o risco de tornar-se uma Utopia. Algo longe dos cidadãos, porque estes não sentem que lhes sejam explicadas as coisas nem lhes seja dada a opção de participar.

    3. O tratado ou constituição ou mini-constituição pode ser uma coisa complexa, mas algo aqui deu a sensação que foi complicado ao máximo para esconder o que quer que seja que pretende decidir. Ou isso ou o pessoal só se andou a esforçar para receber uma caneta de presente do Sócrates. Em português: muita gente tem a ideia de que foi enganada deliberadamente. Ora os políticos já têm essa fama, escusavam de se fazer ao proveito!

    4. Foi promessa eleitoral... de vários governos, para falar verdade.

    Contra o referendo:

    1. A maioria das pessoas (pior que não ser capaz de compreender) não quereria saber o que está em causa;

    2. Qualquer que fosse a causa de não se compreender o que está no tratado, o mais provável seria votar de acordo com a popularidade do governo. Isso resolvia-se acrescentando uma opção em está ou não contente com este governo. E mesmo assim não garanto

    3. A nossa posição como promotores do tratado era delicada, pelo que era possível que não fosse boa ideia referendarmos o mesmo. Mais que não seja porque não ficou claro de início e seria dar uma no cravo e outra na ferradura

    Há mais, muitos mais argumentos para os dois lados (sem o exagero, populismo e declarações inflamadas de que falas). Eu tenho uma posição um pouco esquizofrénica: tanto acho que sim como que não!

    No meio disto tudo, sinceramente, não acho tão importante decidir isto mas mais fazer os cidadãos sentir que fazem parte de algo novo e revolucionário. Algo único na História da humanidade. Antes que eu mesma me lance em declarações inflamadas (estive a escrever no meu estabelecimento, por isso estás a ver que pode sair asneira), algo que não é perfeito. Ainda (e alguma vez será?).

    MAs do mesmo modo que os cidadãos têm que se envolver e compreender a Europa que se está a desenhar, os dirigentes não se podem esquecer de onde vêm e para onde vão. E têm que ir para onde seja melhor para todos e não para onde uma espécie de consciência colectiva manda. Em que essa consciência não tenha a noção de que a Europa não é um exercício teórico de Sociologia, uma Utopia... mas uma verdadeira construção humana.

    (OK, ainda ficou um bocado inflamado, mas acho que deu para entender a ideia)

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  3. Ludwig

    Equeceste-te de um dos propósitos fundamentais da democracia.

    Dar a ilusão à população que tem algum controlo sobre a sua vida.

    Enquanto houver eleições livres, as pessoas acreditam que o seu voto conta, e vão votar na espectativa de estar a participar na vida comunitária.

    Este embuste é propositado, e qualquer observação, mesmo que superficial, quanto à alternância dos partidos conclui fácilmente que, na prática, fica tudo na mesma.

    Os referendos servem o mesmo propósito. Manter a ilusão que o povo (nós) controlamos algo.

    Isto não é coisa menor.

    Assim que o povo se apercebe que não controla porra nenhuma, a sociedade costuma desintegrar-se.

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  4. Miguel

    Lá está: democracia não pode ser só votar por votar. Há direitos e deveres e há falhas do lado de quem está no poder e de quem escolhe (falo por mim, por exemplo).

    Pois se a pessoa vota num grupo para formar governo, vota com base num programa eleitoral... em teoria, porque eu nunca li o programa de ninguém. E porque é que eu nunca li o programa eleitoral de ninguém (fora ser um bocado calaceira): porque aquilo não vale nada! É mas não é, mas depois deixa de ser de um momento para o outro.

    Mesmo um programa eleitoral não se vota cada uma das medidas, o que pode ser bom porque a ditadura da maioria (outro nome para democracia) às vezes não é um bom sistema. Basta ir a uma reunião de condomínio para ver isso (boa: lembrei-me que a minha já devia ter sido marcada).

    Desinteressadas as pessoas daquilo que se decide em política (por acharem que não têm o mínimo controlo sobre ela), restar-nos-á ler as revistas cor de rosa para saber com quem namora o Sócrates ou quando casa o outro com a Carla Bruni?

    E depois há afirmações como o de um trabalhador ao pé de uma fábrica que ia deslocalizar: "mas isto é uma democracia ou um capitalismo?". Ou chamar fascismo a decisões de saúde pública: os conceitos misturam-se e não são claros para ninguém. Daí a minha visão política no post das galochas.

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  5. Ludwig, parabéns! Foi o post com mais treta por frase que já escreveste e olha que a competição era feroz, a começar pelas tretas sobre educação! Mas essas ficam para outra vez. Vamos a estas. Desculpa a extensão do comentário, mas são tretas que a merecem:

    “A democracia é muito mais que votar. É a independência dos ramos do estado, a aplicação imparcial da lei, a protecção das minorias e dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão e associação, e assim por diante.”

    É verdade, mas a verificação das condições tem de ser cumulativa, não basta dizer que isso. Importa verificar se todas elas – e não é garantido em relação a muitas delas estão a funcionar.

    “E, quando se vota, normalmente elege-se quem represente os eleitores. Há mais de vinte anos que os cidadãos elegem quem organiza a União Europeia. Quem assinou o tratado de Lisboa foi eleito democraticamente para representar os cidadãos.”

    Claro. A democracia representativa é importante. E funciona bem no dia a dia. Não podemos andar a referendar toda e qualquer norma. Só que, claro, a organização da União Europeia não é qualquer norma. É uma norma constitucional da Europa e consequentemente do próprio Estado português. Justifica-se, pois um cuidado diferente e uma forma de decisão mais exigente e mais participada do que a trivial, de todos os dias, democracia representativa. Bem andaram pois os partidos que, há procura de representação, prometeram o referendo sobre esta matéria, nas últimas eleições

    ”A partir de 2014 as votações no Conselho Europeu serão decididas por maioria dupla de 55% dos estados membros que incluam 65% da população da União Europeia, excepto se as medidas forem opostas por menos de 4 países, caso esse em que se dispensa o requisito da maioria da população para impedir que poucos estados mais populosos bloqueiem as decisões. É este o tipo de coisas no tratado de Lisboa, e é por isto que a democracia tem que ser representativa. Não se consegue pôr centenas de milhões de pessoas a decidir estas coisas por referendo. Tem que se eleger representantes que negoceiem os detalhes. “

    Os detalhes estão negociados. Agora falta a validação. Essa devia ser por democracia directa, ou seja referendo. Acontece isto diariamente: contratos são negociados por representantes e uma vez “negociados os detalhes” são aprovados ou não por quem efectivamente detém o poder. No caso, nós todos.

    “Se os eleitores não gostam do resultado, pois que elejam outros representantes que façam tudo de novo. O processo é reversível.”

    No caso, há efectivamente um abuso de funções e de confiança já que os representantes se comprometeram com o referendo do tratado. E todos sabemos que as razões para não referendar são outras: é o medo de não passar, não só aqui mas um pouco por toda a Europa. O teatrinho de fantoches dos líderes europeus a puxarem orelhas ao Sócrates por eles sequer pensar em fazer referendo não é só falso e patético. Pior que isso, é sintomático: tem implícita a noção de que é melhor não referendar, não apenas em Portugal mas sobretudo nos grandes países da Europa, onde os resultados anteriores fazem temer um mau resultado.

    ”Além da ineficácia, os referendos também são uma forma irresponsável de decidir. Para que o eleitorado exprima a sua opinião sincera ninguém pode ser responsabilizado pelo voto, que tem que ser secreto e livre de consequências. Mas não é isso que queremos numa decisão que afecta todos. Quem decide deve ser responsável e responsabilizável. A decisão de cujas consequências ninguém tem culpa é asneira garantida.”

    Não acontece isto em qualquer eleição? Isto não é uma crítica à democracia directa, mas sim a todas as forma democráticas. Ou voltamos ao braço no ar ou temos más decisões. Pois claro.

    ”Finalmente, o problema que o Ricardo ilustra. A razão principal para não haver referendo acerca disto, independentemente do que os políticos prometeram. Uma questão técnica complexa com uma grande rede de consequências para centenas de milhões de pessoas vai ser reduzida a meia dúzia de chavões demagógicos e enganadores. Pela democracia! Abaixo a pobreza! Qualquer coisa com soberania e identidade nacional! E assim por diante, até uma data de gente votar sem saber no quê.”

    Outro problema da democracia no seu geral e não da democracia directa. Ou alguém acredita que os eleitores conhecem os programas eleitorais dos partidos nas eleições representativas? E resta saber para que é que serviria conhecer esses programas se na realidade os representantes fazem aquilo que lhes apetece sem respeitar as promessas eleitorais que fizeram….como por exemplo a de referendar este tratado. Não só, mas também.

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  6. Ludwig:

    Além de subscrever muitas das críticas que o ncd te faz, que fazem bastante sentido, acrescento este apontamento:

    «Há mais de vinte anos que os cidadãos elegem quem organiza a União Europeia. Quem assinou o tratado de Lisboa foi eleito democraticamente para representar os cidadãos»

    Quem organizou a assinatura do tratado de Lisboa é um governo que foi eleito com base num programa. Um dos pontos chave desse programa era a realização de um referendo à constituição europeia.

    Uma coisa é um governo propor que vai rectificar a constituição, ganhar eleições e não fazer referendo.
    Outra coisa é um governo prometer que vai fazer referendo, e depois rectificar a constituição. Aqui a legitimidade democrática é muito diferente...

    Bem sei que isso era a constituição, e agora é "um tratado". Mas isso é o pretexto mais hipócrita que poderia ter sido utilizado: todos admitem que as mudanças de um face a outro são meramente cosméticas. Um artifício para contornar a vontade popular.

    A verdade aqui é que os portugueses foram traídos: votaram num governo que lhes devolveria a decisão de aderir ou não à constituição europeia, e saiu-lhes um governo que tomou essa decisão por eles, usando a desculpa rasca que agora é um tratado e não uma constiuição que está em jogo (depois do primeiro ministro ter admitido que é "[sua] opinião" que são basicamente a mesma coisa).

    Bem sei que todos os governos quebram promessas, e isto não é propriamente uma novidade na nossa democracia. Mas não deixa de ter alguma gravidade...

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  7. NCD,

    Na democracia representativa quem toma a decisão é identificável e responsabilizável. E é esse que detém o poder, pois foi-lhe delegado pelos eleitores. É assim que funciona.

    A tal validação do contrato não faz sentido. Os deputados na assembléia discutem uma lei, afinam os detalhes etc, e depois vai a referendo? Sempre? Claro que não. Não são questões de opinião pessoal ou que se esclareçam devidamente no tempo de antena, e por isso é preciso delegar o poder de decisão em quem os eleitores julgam mais habilitado.

    João,

    Eu não vejo as promessas eleitorais como mais que uma expressão das intenções. Sabemos que podem mudar de ideias, e contamos que o façam se for aconselhável fazê-lo.

    Vejo muita gente argumentar que se deve referendar porque o governo prometeu. Mas ainda não vi objecções sérias e concretas ao tratado. E parece que vocês concordam que nem os programas eleitorais o pessoal lê, quanto mais este tratado...

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  8. Ludwig:

    «Mas ainda não vi objecções sérias e concretas ao tratado.» Por acaso já vi imensas. Mas isso nem quer dizer que eu votasse contra. Na verdade ainda teria de reflectir, procurar mais argumentos contra e a favor, e ponderar muita coisa até tomar uma decisão.

    Mas esse argumento é um péssimo argumento porque aquilo que se está a criticar foi o facto de não nos terem permitido tomar essa decisão, e não o facto de terem tomado a decisão errada.


    Sobre as promessas eleitorais: há casos em que são explicitamente uma declaração de intenções. Quando o PS disse que ia criar 150 000 empregos, isso era um objectivo. Um pouco como dizer "vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para atingir esta meta".

    Depois, se ela não foi atingida, é possível discutir se a promessa foi cumprida ou não. Fizeram mesmo tudo o que estivesse ao vosso alcance? E se tivessem tomado políticas diferentes? E se o objectivo seria totalmente inalcansável em primeiro lugar?
    Essa discussão poderá ser complexa e difícil, quem sabe.

    Um caso muito diferente é o caso da promessa de se referendar a constituição. Essa é uma promessa que está plenamente nas mãos do governo cumprir.
    Se Sócrates realmente quisesse ser fiel à vontade do eleitorado, se fosse fiel ao espírito da democracia, te-lo-ia feito.

    Seria pior para Portugal e para a Europa? Isso será discutível, não sei. Mas sem dúvida que foi pouco democrático, e parece-me justamente censurável.

    Creio que as tuas críticas ao texto do Ricardo não colhem.

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  9. Já agora:

    http://margensdeerro.blogspot.com/2008/01/outlier-as-palavras-e-os-actos.html

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