quarta-feira, outubro 31, 2007

A treta do copyright: o mito do criador.

Muitos vêem a criatividade artística como provindo do indivíduo. O autor merece direitos exclusivos porque cria a obra. A sociedade é um mero conjunto de consumidores, está em dívida para com o criador e, por isso, tem que lhe conceder direitos sobre a representação daquilo que este criou. Deixo para depois o problema ético desses direitos. Neste post ponho em causa a premissa que o copyright compensa a criatividade individual da qual a sociedade beneficia sem dar nada em troca.

Primeiro, o copyright premeia a distribuição comercial em massa. Esta depende mais da publicidade e da comunicação social que da criatividade do artista. Em segundo lugar o copyright cobre a expressão da ideia. O texto, a gravação da música, a película com o filme. Ou seja, representações que dependem da tecnologia, de convenções linguísticas e da cultura que é de todos. Camões usou a cultura e a língua da sua sociedade de forma excepcional, mas os textos que escreveu foram como esculturas na areia. Moldou numa forma criada por si aquilo que era de todos.

Mas estes são apenas problemas de implementação. Mesmo aceitando que o copyright não cobre a verdadeira inovação pode-se vê-lo como uma recompensa justa pela criação de ideias novas. A sociedade dá ao autor um direito exclusivo sobre partes de um bem público, como a linguagem, porque a sociedade está em dívida para com o autor. O autor criou uma ideia que beneficia a sociedade e a sociedade tem o dever de beneficiar o autor.

Mas imaginem que Shakespeare nascia na Amazónia ou Bach na Sumatra. O resultado não era umas peças de teatro geniais sobre a vida dos Yanomamo nem a celebração em música barroca dos rituais dos Karo. Diz-se que para criar um ser humano é preciso uma aldeia, mas isso é só para o básico. Comida, roupa, um sítio para dormir e alguém que o ensine a falar e sobreviver. Para criar um génio artístico é preciso uma sociedade muito mais complexa. É preciso escrita, escolas, espectáculos, pessoas que apreciem arte e, acima de tudo, o acesso ao registo de muitas criações culturais anteriores.

Até os maiores génios precisam de receber muito da sua sociedade para poderem criar o que criam. O que está certo. Afinal, a sociedade serve para o proveito de cada um. E é um privilégio viver numa sociedade em que se pode ouvir Bach. Mas maior privilégio ainda é ser Bach numa sociedade que lhe pode dar o que ele precisa. E a maioria não é Bach. A maioria recebe tanto ou mais da sociedade em troca de muito menos.

Este é o problema fundamental de usar o copyright para pagar a alegada dívida da sociedade ao autor. Não há dívida, porque o autor precisa que a sociedade lhe dê a educação, os recursos e o acesso às obras daqueles que o precederam. E não é justo que seja exclusivo do autor aquilo que ele cria usando as ideias de todos.

terça-feira, outubro 30, 2007

É o quê?

No Blasfémias, o João Miranda escreveu:

«O ensino privado e o ensino público competem com armas desiguais. O ensino público tem os seus custos de funcionamento e de investimento pagos pelo Estado. O ensino privado tem que pagar os custos de investimento e de funcionamento com as receitas que consegue atrair. O ensino público tem preço zero para o cliente, o ensino privado cobra propinas ao cliente.
Tendo em conta a total desigualdade de armas, é notável que algumas escolas privadas consigam aparecer no topo dos rankings.»
(1)

A ideia é que o ensino privado é tão mais eficiente que mesmo sem o financiamento público consegue ter resultados melhores. E é verdade que o sector privado é mais eficiente. Mas importa ver em quê.

O sector privado é mais eficiente a dar dinheiro aos donos. É para isto que o sector privado serve. Todas as empresas privadas visam produzir um só produto: o lucro para os accionistas. O resto é acidental. A bolacha, o automóvel, a operação plástica ou a média de 13 no exame nacional são meros efeitos secundários do processo de gerar lucro.

A privatização é uma boa ideia quando o objectivo coincide com a maximização do lucro. Se o objectivo é educar os filhos dos ricos o ensino privado garante a qualidade de educação que optimiza o lucro. Quanto mais ricos os pais melhor será este efeito secundário da produção de dividendos, e temos a garantia que os dividendos serão gerados com eficiência. Se não, fecha-se a escola, monta-se um centro comercial e os miúdos que vão estudar para casa.

Mas se o objectivo é garantir que todos tenham acesso à educação a situação é diferente. O sector privado é notoriamente ineficiente a prestar serviços a quem não os pode pagar.

1- João Miranda, 29-10-07, Rankings e a questão do "público vs. privado"

segunda-feira, outubro 29, 2007

Concentrado rende mais.

E a treta não é excepção. No site português da Pro Music vários artistas partilham a sua visão dos direitos de cópia. Na dissertação mais recente a Luciana Abreu segue a análise de pensadores como Luís Represas e Boss AC, cujo estudo revelou que copiar um CD é o mesmo que roubar carros ou calças. Mas Luciana vai mais longe, proferindo num curto parágrafo mais disparates que os seus doutos colegas em textos muito mais longos.

«Se tal fosse possível, não me imaginaria a copiar um pão para comer, ou fazer download de gasolina para o meu carro… tudo isto representa o trabalho de alguém para que tu possas usufruir de algo. Qual a diferença com a música? Nenhuma! É a profissão de muitos… Não colabores com a pirataria, ajuda a desenvolver respeito pelo trabalho dos artistas.»(1)

Traduzindo. O copyright é mais importante que acabar com a fome. Os derivados do petróleo são uma obra a proteger. O pão, que foi inventado no neolítico, ainda não está no domínio público. E isto não tem diferenças com a música. Nem sem a música. Não podemos usufruir sem pagar porque alguém trabalha para que possamos usufruir. E partilhar sem pagar é pirataria. Sabe-se hoje que o maior flagelo do alto mar é precisamente a partilha gratuita de composições artísticas. No sentido lato.

É super-hiper-mega-ri-treta.

1- Pro-Music, Luciana Abreu. e também outras opiniões

domingo, outubro 28, 2007

Treta da Semana: Watson e o racismo.

James Watson afirmou-se pessimista em relação ao futuro de África porque as políticas de auxílio assumem que os africanos são tão inteligentes como os europeus. Segundo Watson as observações revelam o contrário, e não podemos esperar que povos evoluindo em regiões diferentes sejam dotados da mesma inteligência. Neste episódio há várias tretas a apontar. E a mais grave é chamar-lhe racismo.

O racismo é imoral porque atenta contra os direitos das pessoas. O apartheid, a escravatura, a discriminação, avaliar as pessoas de acordo com a cor da pele ou ascendência. Mas afirmar que os pigmeus são mais altos que os suecos não é racismo. É apenas um disparate. Não atenta contra os direitos de ninguém, e chamar racismo a um disparate como o que Watson proferiu é irresponsável e perigoso.

É irresponsável porque passa a responsabilidade para a natureza. Se o racismo é propor diferenças entre raças então devemos ser racistas se houver diferenças entre as raças. E é perigoso porque parece legitimar o racismo. É que salta à vista que há diferenças entre vários grupos de pessoas.

Outro disparate é dizer que Watson insultou alguém ao afirmar esta diferença na inteligência. Não é de espantar que crianças subnutridas a crescer em zonas de guerra sem acesso a educação sejam menos inteligentes que outras mais afortunadas. As condições de vida influenciam a inteligência e as pessoas de pele escura em África vivem bem pior que as pessoas de pele clara na Europa. Também na Europa e nos Estados Unidos há correlação entre a cor da pele e a educação e nível de vida. O tom médio do professor universitário português é bastante mais claro que o do servente de pedreiro. Parece-me mais racista ignorar o problema ou fingir que não afecta a inteligência. Mesmo que alguns digam disparates vale a pena discutir o assunto abertamente em vez de ficar tudo calado com medo de ofender.

O verdadeiro disparate de Watson foi atribuir esta diferença de inteligência à evolução. Não há evidências que seja preciso mais inteligência para se reproduzir com sucesso fora de África e a maior parte da diversidade genética da nossa espécie está em África. Esta generalização para um continente tão diverso em ambiente e genes é uma grande argolada, principalmente para um perito em genética. Mas é como disparate que isto merece ser criticado. O que Watson propõe não é racista, imoral, nem insultuoso. É simplesmente falso.

E nem é necessariamente falso em todos os casos. É absurdo separar a nossa espécie pelo tom da pele, mas é teoricamente possível distinguir milhares de populações pelos seus genes. Há diferenças pequenas mas estatisticamente significativas entre muitos grupos étnicos. E é inevitável que haja diferenças médias na aptidão para o basquetebol, a matemática, a poesia, ou a inteligência, seja lá o que isso for. Era uma grande coincidência as médias serem todas iguais.

É um erro chamar racismo ao que Watson disse. Em parte porque eventualmente hão de surgir evidências de uma diferença real e vai parecer que afinal o racismo tem razão. Mas principalmente porque o racismo é um erro moral e não um erro de facto. Não importa se somos iguais ou diferentes. O que importa é que temos os mesmos direitos fundamentais seja como for.

sábado, outubro 27, 2007

Da erva à pipoca em 9000 anos.

Em 1939 George Beadle propôs que o milho descendia do teosinto, uma erva nativa do vale do rio Balsas, no sul do México. As imagens abaixo mostram o teosinto e maçarocas desta planta, de milho e do cruzamento entre as duas. A grande diferença morfológica entre estas plantas levou muitos a rejeitar que o milho fosse teosinto domesticado.

Image:Corn parents1.jpg Maize-teosinte

Mas nos últimos anos a genética eliminou as dúvidas. O milho tem quase os mesmos genes que o teosinto e o cruzamento destas variantes resulta em plantas férteis. Pertencem à mesma espécie. Também se compreendeu como uma população aparentemente homogénea pode esconder tal diversidade genética.

Temos células que expressam combinações diferentes de genes, diferenciando-se para desempenhar funções específicas. Nervos, músculos, sangue, ossos. Mas não há um contínuo de formas intermédias. Uma célula que seja meio nervo e meio osso só atrapalha. Por eliminar os organismos menos aptos a evolução gerou sistemas descontínuos de regulação. Numa gama de condições o sistema responde de uma forma. Ultrapassados certos limites o resultado é muito diferente. Nervo, ou músculo. Mas sem mistura.

Esta resposta descontínua confere resistência às variações. Desde que caiam naquela gama de possibilidades o resultado é o mesmo. A população pode parecer homogénea e ter uma grande diversidade genética porque muitas variantes genéticas produzem o mesmo fenótipo. Além disso, muitas mutações novas não têm consequências e espalham-se pela população. É como empurrar o interruptor com mais ou menos força. Desde que mexa e não se parta, a luz acende.

Numa população geneticamente homogénea a selecção teria que esperar muitas gerações por mutações vantajosas, porque a maioria das mutações é neutra ou prejudicial. Mas quando os humanos começaram a seleccionar o teosinto pelo seu valor nutritivo deram vantagem a combinações de genes que já estavam presentes na população. Nenhuma planta individual tinha o que era preciso para ser milho, e a maioria era fraco alimento. Mas os genes do milho estavam lá quase todos, espalhados pela população.

Era só preciso reuni-los na mesma planta, e ao seleccionar os melhores espécimens de cada geração os humanos fizeram proliferar os genes e combinações que tornaram o teosinto numa das principais culturas alimentares de hoje. Por isso bastou nove mil anos, e as poucas mutações que surgiram no milho são quase todas em factores de transcrição, proteínas que determinam quais os genes que são activados.

É um bom exemplo de como o criacionismo é treta. Em vez de atribuir o milho a um milagre de Quetzalcoatl explica como se formou esta variante do teosinto. É uma demonstração experimental de como transformar um organismo noutro muito diferente. Mostra a diversidade genética que uma espécie pode ter. Os criacionistas fingem que a evolução ocorre no indivíduo e que as mutações só fazem perder informação, mas a realidade é que as mutações alimentam esta diversidade genética que permite combinar genes de teosinto até ter milho.

Principalmente, mostra que as mutações criam funções novas. Há seis genes novos no milho que controlam a activação de outros genes. Descendem por mutação de análogos no teosinto, mas, ao contrário do que os criacionistas insistem, as mutações não os estragaram nem lhes diminuíram a funcionalidade. As mutações nestes factores de transcrição fazem activar no milho combinações de genes diferentes das activadas no teosinto. É por isso que plantas geneticamente tão parecidas são morfologicamente tão diferentes.

Imagens retiradas da Wikipedia (Corn Parents) e do Doebley Lab, da Universidade de Winsconsin (foto por John Doebley).

Fonte: S. F. Matheson, They selected teosinte...and got corn. Excellent!, Quintessence of Dust.

sexta-feira, outubro 26, 2007

A treta do copyright: definição.

Tenho andado a repetir-me acerca disto. Mais nos comentários mas também nos posts, o que já deve aborrecer alguns leitores. Como não posso exigir que cada leitor novo leia a treta toda que escrevi antes decidi congelar o assunto em porções individuais que servirei sempre que peçam o prato do costume.

Este primeiro post explica o que oponho e porque uso o termo copyright. Sou contra leis que concedam o direito exclusivo a representações de uma ideia em virtude de ser o primeiro a divulgar a ideia ou de ter comprado esse direito legal. Copyright é mais prático, significa literalmente o direito de cópia e alude à implementação mais extrema deste tipo de leis, nos EUA.

Não sou contra os direitos de autor, que incluem o direito ao reconhecimento, à repúdia da obra mal executada, à divulgação e expressão e outros direitos morais que podem até ser protegidos por lei. Nem sou contra a regulação comercial. Se a lei obriga a pagar aos autores pela venda de receitas, jogadas de Xadrez, CDs de música ou roupa é um problema administrativo. Interessa-me tanto como o licenciamento de pastelarias ou a concessão de barracas de praia.

O importante para mim é o direito universal a qualquer ideia ou forma de expressão. Defendo que é um direito de cada um de nós pensar o que quiser e comunicá-lo com qualquer combinação de símbolos, gestos, sons ou imagens mesmo que use expressões já usadas por outros. Não é um direito absoluto. Admito ceder perante ameaças mais graves e restringir expressões que incitem crimes de ódio, que resultem de abusos de crianças, de tortura, que violem a privacidade de outros ou algo desta ordem que se possa sobrepor ao direito de expressão.

Mas privar alguém da liberdade de comunicar o que entender da forma como entender carece de uma justificação mais forte que proteger um modelo de negócio ou incentivar a criação artística. Essas considerações podem justificar a regulação comercial mas não justificam a censura.

quinta-feira, outubro 25, 2007

Googlem isto.

Este é mais engraçado que os concursos do blog mais coiso e tal isto ou aquilo. O World’s Fair propõe encontrar 5 termos no Google que devolvam no primeiro lugar um post ou endereço do blog. Aqui vão uns termos que o Google julga melhor encaixar neste blog:

que treta (duh...)

mafaguinho

mamilos de lontra (obrigado ao matarbustos por este)

treta criacionismo

E para ter apenas e somente este blog como resultado, único no Google inteiro:

calafrático.

Fontes:
The World's Fair exceptional "I rank number one on google" meme!!, via Pharyngula.

quarta-feira, outubro 24, 2007

A tal coisa do roubo...

A associação de empresas discográficas do Canadá (CRIA) está a pressionar o governo para que torne possível processar indivíduos que descarreguem músicas sem autorização, o que de momento não é ilegal nesse país. Mas há quem se oponha.

Nomeadamente, a Coligação de Criadores de Música do Canadá. Processar os fãs enche os bolsos a muitos advogados e pode prolongar o tacho dos distribuidores mas não é boa ideia para quem ainda quer ter fãs. E pelo menos no Canadá os músicos já perceberam isso.

Para os músicos o fundamental é que a audiência goste e queira comprar. Se os processam e ameaçam o pessoal chateia-se, mas se um milhão gosta de ouvir, mesmo de borla, há de haver muitos que vão querer pagar. Ao músico, claro. E essa é a diferença fundamental. A Sony, EMI, Universal e Warner não têm fãs. Para eles só há clientes e potenciais arguidos. E nem são categorias mutuamente exclusivas.

Mais detalhes pelo Miguel Caetano no Remixtures: Músicos canadianos contra processos por partilha de ficheiros e DRM

E aqui o site da Canadian Music Creators Coalition.

Criar, descobrir, e comunicar.

O leitor «Pensar Custa» pediu-me que comentasse um post acerca de invenção e descoberta. O post não está disponível, mas queria reconhecer a fonte da ideia para este. Parece simples distinguir criação e descoberta. Cria-se o que não existia até ser criado e descobre-se o que já existia antes de ser descoberto. Mas é mais difícil do que parece.

Por exemplo, um número primo com oitenta mil dígitos não é coisa que se crie. Ou existe e se descobre ou não existe e não o podemos inventar. E «existe» mesmo que nunca tenha sido escrito em lado nenhum. O mesmo com as peças de Xadrez. Não crio nada de novo por dispor as peças de forma a garantir um empate, mesmo numa configuração nunca antes vista. Qualquer forma de dispor as peças já «existe» implicitamente nas regras do Xadrez como todos os números já «existem» nas convenções da matemática.

E é o mesmo se substituir as peças de Xadrez por quadrados coloridos e aumentar o tabuleiro. Há quem diga que eu criei a imagem abaixo, mas apenas descobri uma configuração de cores num tabuleiro de 400 por 400 que faz ver o mesmo que eu a quem a interpretar da mesma forma que eu. E é tão pouco criativo que a máquina fotográfica faz o trabalho quase todo.



Quando um homem primitivo esmagou a cabeça do adversário com uma pedra usou apenas uma combinação de elementos que estavam, literalmente, ali à mão e que podiam ser combinados das formas que a natureza permite. O martelo foi descoberto por entre as possibilidades da natureza. O que ele criou foi a ideia de um martelo para esmagar cabeças. É isso que criamos. Ideias. O resto é descoberta.

Todos os textos em Português estão implícitos nas regras gramaticais e no vocabulário que partilhamos. Todas as representações de imagens e sons estão implícitas nas forma como vemos e ouvimos, e todos os ficheiros de computador nas combinações de zeros e uns. Podemos descobrir qualquer representação destas, mas não as podemos criar. Tal como os números ou as posições do Xadrez.

Eu crio ideias na minha mente. Mesmo pouco originais, pelo menos aqui dentro quem cria sou eu. Mas este texto descobri-o pelas regras do Português. É um de muitos que podem ser gerados com este vocabulário e gramática que partilhamos, e que eu vasculhei, escrevendo, apagando e rescrevendo até achar que tinha qualquer coisa inteligível.

E ao ler isto, se tudo correr bem, o leitor cria na sua mente estas ideias. É isso que é algo novo, que vai além da mera combinação de elementos. Por pura inspiração ou quando interpretamos uma representação, é esse elemento subjectivo que é criado e não descoberto. É o que faz de um monte de pixels uma árvore ou de vibrações no ar uma música. Comunicar ideias não é mais que descobrir combinações de elementos que levem os outro a criar as mesmas ideias.

As ideias pertencem a quem as cria. As minhas são minhas, as vossas são vossas. Mesmo iguais estão em cérebros diferentes, e cada um tem o seu. Mas não podemos pegar em ideias e enfiá-las em cabeça alheia. Para comunicar dependemos de peças de Xadrez -- palavras, cores, acordes, números -- que podemos dispor e combinar de acordo com regras partilhadas. E essas são de todos. As peças, as regras, e todas as combinações que descobrimos.

terça-feira, outubro 23, 2007

Treta da Semana: Jesus terapeuta.

O profeta Isaias anunciou o Messias, que iria vergar todas as nações perante o poder de Israel. Veio Jesus e prometeu aos seus apóstolos que haveria guerras, e terremotos, e grandes desgraças até que todos ouvissem o evangelho e chegasse o fim do mundo. Então viria o Messias buscar os eleitos para os levar para o Céu. Tudo isto, segundo Jesus, ocorreria antes daquela geração passar (Mateus, 24:34).

Passaram-se dois mil anos e três vintenas de gerações. Hoje, mais calmo, Jesus entretém-se a dar dicas à Alexandra Solnado. Explica-lhe como comunicar com o Eu Superior, como fazer limpezas espirituais em presença e à distância e até «O que é a densidade, porque estamos tão densos e como reverter o processo»(1). Se virem a Alexandra a flutuar como um balão já sabem. É porque deixou de ser tão densa. Milagre. E é evidente que a Alexandra Solnado é uma pessoa muito especial, pelo menos segundo a própria:

«O curso para Terapeutas é um pedido de Jesus desde o primeiro Livro. Foi, entretanto criado em Março de 2004 com o objectivo de formar profissionais com os recursos que estão a ser utilizados com grande sucesso neste projecto e para dar vazão à crescente procura destas terapias por parte das pessoas em geral.»

O omnipotente Criador do Universo esteve encravado com isto durante dois mil anos. Finalmente veio a Alexandra para pôr o projecto a andar.

Isto dava vontade de rir se não fosse tão triste. A intenção inicial deste post era gozar um pouco com a Leontina Almeida e a sua Terapia Energética da Era do Aquário (2). Mais uma a aldrabar tótós com disparates, pensei eu. Mas depois de ler a introdução mudei de ideias. Peço desculpa pela citação longa, mas queria partilhar isto:

«O meu nome é Leontina Almeida, tenho 46 anos e nasci em Lisboa.

O meu percurso espiritual iniciou-se quando em 2001 a empresa onde eu trabalhava como secretária encerrou, logo de seguida surgiram-me propostas de emprego na mesma área, mas quando eu pensava em aceitar alguma delas apoderava-se de mim um sentimento fortíssimo de pânico, ainda fui trabalhar durante um mês, mas não me sentia bem. Como não tinha meios de subsistência próprios e sentindo-me completamente desorientada entreguei ao Céu e pedi a Deus que me indicasse o meu caminho, pois não sabia o que fazer. Passado pouco tempo vi na televisão a Alexandra Solnado a falar sobre o seu primeiro livro 'Este Jesus Cristo que Vos Fala', nesse instante senti um sentimento muito profundo em relação a ela e tive um ímpeto de ir comprar o livro tendo-o lido completamente no dia a seguir [...]

Continuei a frequentar todos os cursos da Alexandra e a ler os livros que iam saindo [...]

Terminei os cursos no final de 2006 completamente transformada tanto eu como a minha vida, tudo fluía facilmente, passei a atrair para a minha vida tudo o que necessitava sem o menor esforço, os meus antigos amigos desapareceram completamente e passei a atrair pessoas maravilhosas com quem partilho a minha vida onde existe uma cooperação profunda.

Para poder subsistir economicamente desde 2001 a 2006, foi necessária muita fé e também reduzir as minhas despesas ao mínimo indispensável, tendo alterado completamente a minha maneira de viver...»


Graças à fama (merecida) do pai a Alexandra Solnado tem publicidade à borla na televisão, publica livros com o que Jesus lhe diz e até tem um «Projecto Alexandra Solnado» onde, «entre outras, dedica-se também à vertente de investigação, nomeadamente no campo da sobreposição de encarnações»(3). Entretanto a Leontina Almeida ficou sem emprego, sem os amigos, sem o dinheiro, está completamente dependente de quem lhe tirou tudo e até acha que lhe fizeram um favor. E continuam os cursos de formação de metástases.

Tenho defendido que não devemos respeitar as crenças mas que devemos respeitar as pessoas. A Alexandra Solnado confirma a primeira parte. No entanto, admito que me faz duvidar da segunda.

1- Projecto Alexandra Solnado, Terapia da Alma, Cursos
2- http://www.leontina.infinito.com.pt/
3- Projecto Alexandra Solnado, Terapia da Alma, a autora

segunda-feira, outubro 22, 2007

Certeza e agnosticismo.

O leitor que assina «Catelius» comentou:

«Paradoxal. Como os filósofos e cientistas SABEM definitivamente que não se pode saber nada em definitivo? He he he. Além do mais, SEI que 2 + 2 são 4. É axiomático, seja tudo isto aqui simulação ou não. Sei que 10/2=5. De igual modo, SEI que todas as casas pretas são pretas.
Assim sendo, a Terra é redonda, seja ela uma simulação ou não.»


Se defino que x = 5 sei que x = 5, mas não é grande novidade. Saber por definição dá certeza absoluta sem informar. Por outro lado, saber que uma proposição corresponde à realidade é mais informativo mas tem sempre algum risco. Até o «penso logo existo» é arriscado. Exige que pensar seja um acto de um ser que existe. Mas quem sabe se os pensamentos simplesmente acontecem sem existir um eu que os pense.

Pelos dois sentidos de «saber» sei definitivamente que não posso saber nada definitivo acerca da realidade. Definitivamente porque é consequência da definição dos termos. E não posso saber em definitivamente o que é a realidade porque só controlo o que eu defino. A realidade pode sempre surpreender.

Isto em teoria, porque a prática é diferente. Bertrand Russell explicou uma vez como era agnóstico e ateu:

«As a philosopher, if I were speaking to a purely philosophic audience I should say that I ought to describe myself as an Agnostic, because I do not think that there is a conclusive argument by which one prove that there is not a God.
On the other hand, if I am to convey the right impression to the ordinary man in the street I think I ought to say that I am an Atheist, because when I say that I cannot prove that there is not a God, I ought to add equally that I cannot prove that there are not the Homeric gods.»
(1)

Um mais um é dois por definição de «um», «dois», e «mais», mas a verdade que daqui sai é a que lá pusemos. O que dá algo de novo, e útil, é aplicar a regra à realidade, mas isso já não é garantido. Podemos saber que juntando um pato ao pato que já temos ficamos com dois patos. Mas se a um cardume juntamos outro cardume ficamos com um cardume. Maior, mas à mesma um e não dois. E se algo é mais pato ou mais cardume já não é decisão nossa. Filosoficamente, todas as verdades garantidas são triviais e qualquer afirmação que não seja trivial pode ser falsa.

Mas não é prático viver como se não soubesse que Zeus é fantasia, como se duvidasse que há realidade ou a deixar-me atropelar por faltar a prova irrefutável de haver carros na estrada. Não posso provar que Deus não existe mas também não vos posso provar que eu existo. Filosoficamente é interessante, mas, na prática, posso ter tanta certeza destas coisas como de qualquer outra. E se estiver enganado logo mudo de ideias quando for caso disso.

1- Bertrand Russell, 1947, Am I An Atheist Or An Agnostic?

domingo, outubro 21, 2007

Erros e ciência, parte 2.

Qual é a forma da Terra?

A- É um cubo.
B- É uma esfera.
C- Não se pode saber ao certo.

Não é cubo nem esfera, por isso as primeiras são falsas. Mas a última, como diria Pauli, nem isso consegue ser. Há erros piores que outros e «não sei» é pior que algumas certezas falsas.

A primeira parte parece-me pacífica. Não importa só se se erra, mas por quanto se erra. O modelo da Terra esférica, mesmo errado, erra menos que a maioria das alternativas. Nisto quero apenas apontar uma consequência que costuma passar despercebida. Quem alega uma Verdade absoluta apresenta o problema como escolher entre falso e verdadeiro, como uma de apenas duas possibilidades. Deus existe ou Deus não existe, por exemplo. Mas uma Verdade digna desse V tem que corresponder exactamente à realidade. É o zero de uma gama infinita de erros, à partida infinitamente improvável. É também pouco credível que a descrição exacta da realidade seja tão vaga como estas «Verdades» normalmente são.

A segunda parte é mais polémica. Por vezes mais vale uma certeza falsa que um «não sei». Primeiro, tenho que distinguir certeza e fé. Por certeza quero dizer rejeitar as hipóteses contrárias. Neste momento tenho a certeza que não há tigres cá em casa porque puz de parte a possibilidade de haver aqui tigres. Nem estaria a escrever isto se tivesse a mais pequena dúvida, e ter certeza é apenas não ter dúvidas.

A fé é a vontade de ter certeza. Um crente religioso pode duvidar da existência do seu deus. Perdeu a certeza e a fé fá-lo angustiar por essa perda. Sente que duvidar é faltar a uma obrigação ou perder algo de valioso. Para quem tem fé a dúvida é uma dificuldade a ultrapassar.

Eu tenho certeza sem fé. Qualquer indício de tigres cá em casa e acaba-se a certeza. O pavor será por causa do tigre e não por perder a certeza. Esta distinção é importante porque a confiança que temos num modelo é independente da relutância em mudar de modelo quando as evidências o contradizem. A fé, o apego a um modelo, é uma grande treta. Mas a certeza pode ser útil e um erro menor que a incerteza.

A ciência exige que se mude de opinião sempre que necessário, por isso nunca se justifica ter fé no que a ciência diz. E a ciência é falível, por isso alguns dizem que também não se justifica ter certezas. Mas a indecisão sai caro. Imaginem não saber se têm tigres em casa. É por isso que defendo a certeza nos modelos que a ciência estabelece como fiáveis por se destacarem das alternativas.

Justifica-se o «não sei» quando vários modelos explicam igualmente bem o que se observou e fazem previsões diferentes. Não sei se vai chover para a semana que vem. Mas em casos como a evolução, a relatividade ou os malefícios do tabaco é insensato escolher «não sei» ou qualquer alternativa tirada do chapéu. Mesmo falível e inexato, este conhecimento científico merece certezas. Mesmo que a Terra não seja esférica, à falta de um modelo melhor é preferível ter certeza deste.

É por isso que eu tenho a certeza que muitas crenças são disparate. Jesus não era um deus, Júpiter não quer saber da minha vida amorosa, as cartas não prevêem o futuro e ninguém tem auras coloridas de acordo com a sua personalidade. Não tenho fé nisto. Assim que haja indícios do contrário grito Tigre!, pego nos miúdos e fujo de casa. Mas enquanto isso não acontece não vale a pena andar com ah, não sei, não se pode ter certezas e coisas dessas. Pode, e deve. Mesmo que tenha que admitir que me enganei, prefiro ter certezas que ficar atolado na indecisão.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Erros e ciência.

Perguntaram a um pastor como distinguia as suas ovelhas das dos vizinhos quando as levava todas a pastar. É fácil, respondeu, basta ver quais são as mais gordas. Mas porque é que as suas são mais gordas? Não... as mais gordas é que são as minhas.

A ciência erra. Muito. Quase tudo o que a ciência afirmou até agora já sabemos ter sido incorrecto. E o resto deve ser só uma questão de tempo. Por isso muitos desconfiam da ciência e propõem alternativas. Crenças, tradições, intuição, invenção pegada, o que for. Tudo serve para fugir aos erros da ciência. Mas é treta.

A ciência é a melhor forma de compreender a realidade. Não por graça do espirito santo ou por artes mágicas, mas porque constantemente lhe acrescentamos o que funciona melhor e lhe tiramos o menos bom. Basta ver quem corrigiu todos os erros da ciência. A ciência. E apesar de nunca ter acertado em cheio na realidade, esteve sempre mais perto que os outros. De todas as crenças erradas, as que a ciência propôs eram sempre as menos erradas da altura.

Mas há quem diga que o melhor é não ter crenças. Se não acreditamos em nada já não erramos. Errado. Um erro é qualquer decisão que frustra os objectivos. Se o objectivo é cortar o pão em fatias finas é um erro cortá-lo em fatias grossas e é um erro atirá-lo pela janela. Se o objectivo é compreender a realidade é um erro acreditar numa hipótese falsa. Mas também é um erro rejeitar uma hipótese informativa, mesmo que não esteja totalmente correcta, e ficar sem hipótese nenhuma.

Não se escapa do erro com o «ah, não se sabe» do agnosticismo nem com o «eu cá não acredito» a que chamam cepticismo. Como explicação, «não sei» é sempre uma resposta errada. E o cepticismo aceita o que as evidências suportam. Não permite a certeza absoluta nem a crença inabalável, mas não justifica rejeitar só para ser do contra.

O erro por omissão pode ser pior que uma crença falsa. Acreditar que as doenças são causadas por «desequilíbrios de energia» é um disparate. Mas rejeitar a medicina moderna é um perigo. Mesmo que seja imperfeita e incompleta, antibióticos, desinfectantes, vacinas e cirurgias são muito melhor que nada.

Devemos estar atentos ao erro de acreditar em algo que não é verdadeiro. Mas esse é fácil de corrigir. Basta alterar a crença quando as evidências o justifiquem para ficar cada vez mais perto da realidade. Erro pior é não aceitar explicação nenhuma só por falta de certeza. É o mistério, o inexplicável, o sobrenatural, o milagre e o «não se sabe». A ciência funciona porque aceita ideias falsas e assume a responsabilidade de as corrigir. As alternativas não funcionam porque não têm ideias ou porque não as corrigem.

terça-feira, outubro 16, 2007

Mais contras e quase um pró.

Na discussão sobre copyright é ideia recorrente que «Quem executa um trabalho deve ser remunerado por ele», como mencionou um comentador anónimo. Nada disso. Se me der na cabeça varrer a rua onde moro executo um trabalho que beneficia muitos mas que ninguém tem o dever de remunerar. O mesmo se me der para compor uma canção ou escrever um blog (só que o beneficio é menor).

Pior ainda seria a lei deixar-me vedar a rua e cobrar passagem só porque a varri. E é nisso que o copyright se tornou, numa lei que permite vedar partes do que é de todos, como palavras, gramática, acordes, notas musicais, frases ou imagens, e cobrar a quem lá for só por uma varridela que ninguém encomendou. Basta eu escrever uma treta qualquer que fico com direitos exclusivos sobre essa parte da língua Portuguesa. Tiro uma foto ao Tejo e sou o dono desse padrão de tons de azul, verde, castanho, e cinzento oleoso. É absurdo.

Deve ser remunerado quem vende o seu trabalho, e é o comprador que tem o dever de o remunerar. Mas nesta transação voluntária o copyright pesa contra o autor. Quando o autor trabalha por contracto normalmente tem que ceder os direitos exclusivos sobre a obra além de vender o seu trabalho, e isto só faz sentido para favorecer o intermediário.

Quem vai a um concerto ou ouve uma música não se importa que outros também a oiçam. O artista não precisa de ter nem ceder direitos exclusivos para negociar uma obra com os fãs. Se quer dez mil euros para gravar o álbum e mil fãs estão dispostos a pagar dez euros cada um está o caso resolvido. E se depois um milhão de pessoas gostarem do álbum certamente que o artista vai beneficiar.

O direito exclusivo de cópia é uma garantia para o distribuidor. Como faz negócio de revenda não quer que os seus clientes obtenham o produto por outras vias. É por isso que o copyright surgiu, é por isso que foi mudando até a forma que tem agora, é por isso que o Rato Mickey ainda é propriedade quarenta anos depois da morte do seu criador. E é por isso que são os distribuidores a processar pessoas. Os artistas simplesmente mudam a forma de fazer negócio agora que a distribuição é mais fácil. E estão a ganhar mais com isso.

Sou a favor de alguma regulação. O João Vasco deu o exemplo do cinema, onde os custos são elevados. O António aponta o problema de fazerem cópias de um CD e venderem-nas na feira. Há vantagens em regular estas actividades. Mas não é preciso um direito exclusivo de cópia. Na música talvez bastasse o vendedor ter que divulgar quanto de cada venda reverte para o artista. Com esta informação o mercado encontrava o equilíbrio mais justo de remunerações sem direitos exclusivos e monopólios.

Não faz sentido procurar «prós» no copyright como o temos. Qualquer vantagem de dar direitos exclusivos sobre a expressão de uma ideia é irrelevante face às desvantagens e à imoralidade de o fazer. É como defender a escravatura por diminuir o desemprego. Mas a ideia original é boa. É justo, e benéfico para todos, que os autores partilhem do sucesso comercial das suas obras. No entanto a legislação deve apenas guiar o mercado sem coagir a compra e sem esquecer que o sucesso comercial não é um direito fundamental. Não se justifica defendê-lo à custa da liberdade de expressão ou do direito à privacidade.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Os contras e os contras.

O Mário Miguel sugeriu que eu fizesse um resumo imparcial dos prós e contras do copyright. Acho que metade da sugestão é boa, por isso aqui vai.

Como referiu o leitor que assina «Bocas», o direito de cópia tem sido deturpado. Hoje fala-se deste como propriedade intelectual. O direito de propriedade é crucial para que não nos privem do que é nosso. Para nos sentirmos seguros em casa e não ficarmos sem o carro. Mas roubarem-me as calças é diferente de usarem calças iguais às minhas. Copiar não é roubar, e as ideias não são propriedade, como explicou Thomas Jefferson há mais de um século:

«If nature has made any one thing less susceptible than all others of exclusive property, it is [...] an idea, which an individual may exclusively possess as long as he keeps it to himself; but the moment it is divulged, it forces itself into the possession of every one, and the receiver cannot dispossess himself of it.»

Um grande problema do copyright hoje é fazer das ideias coisas com dono, em nome do falso direito de proibir a divulgação ou usufruto e em detrimento do verdadeiro direito de criar, comunicar e pensar.

Mas mesmo que se corrija este erro e se trave o avanço dos «direitos» do autor sobre os direitos dos outros é preciso retroceder e recalibrar o incentivo. Primeiro, considerar o que queremos incentivar. Não foi a arte que mudou no final do século XIX e levou a implementar o copyright. Foi a industrialização na impressão de livros e partituras, depois litografias, discos, filmes, e assim por diante. Foi a distribuição e comercialização que teve que ser regulada, porque sem esta regulação nenhum distribuidor ia pagar aos autores.

É esta mudança que temos que compreender. Antes do século XX, quem pagava aos artistas fazia-o porque apreciava a arte. Não era uma compra, era uma forma de participar no processo artístico. Mas poucos podiam fazê-lo, porque maioria não tinha dinheiro para mandar cantar o cego. Literalmente. Com a industrialização os artistas passaram a ser pagos pelo distribuidor, para quem a arte é um negócio e que só paga o que tem que pagar. Daí a necessidade da lei, e a inevitável deturpação por parte do intermediário para servir cada vez mais os seus interesses. E com o distribuidor no meio a arte passou a ser como salsichas e papel higiénico. Comprar um CD na loja é uma compra como qualquer outra, e é neste contexto da arte como bem comercial que estas leis fazem sentido. Pagamos pelo CD na loja para ter o CD, e se podemos ter o CD mais barato obviamente que o preferimos.

Mas pagando directamente ao artista a situação é diferente. Mais de um milhão de fãs já pagaram aos Radiohead uma média de seis euros cada pelo download do álbum In Rainbows, quando os próprios artistas disseram que podiam descarregar o álbum de graça (1). E é esta a arte que queremos incentivar, a arte que cria apreciadores que querem participar apoiando o artista. A «arte» de consumo, da salsicha e do papel higiénico, essa não vale a pena. Mas hoje é esta e o seu distribuidor que precisam do copyright.

Daqui tiro duas conclusões. Primeiro, nos casos em que não é preciso proteger o intermediário podemos esquecer o copyright. É o que já fazemos com a moda e a culinária, e o que podemos fazer com a música. Os intermediários prosperem ou pereçam conforme a sua utilidade, sem privilégios legais. E, segundo, que qualquer forma de copyright será para benefício de um modelo de comércio e deve restringir-se à regulação comercial. Deve ficar fora da vida pessoal de cada um. Porque a arte que vale a pena é aquela que o artista faz por gosto e que o apreciador tem vontade de recompensar. Para essa não precisamos destas tretas.

1- Miguel Caetano, 15-10-07, Fãs de Radiohead pagam média de 4 libras por download de In Rainbows

O Portador da Pipa.

A sabedoria popular tem muita razão quando nos diz que ele há com cada coisa. Movido por uma curiosidade masoquista, estava a ler umas páginas da lista de «facilitadores» no Universo de Luz (1) quando encontrei a do Miguel Ruah, sobre «Cerimónias Índias do Caminho Vermelho» (2).

O Miguel tem um curriculum invejável. Estudou Cabala e Tarot em Israel. Conheceu o Caminho Vermelho, que é mais que uma tradição. É uma Tradição. E foi «reconhecido perante os Concelhos de Anciãos dos países de todo o mundo como um ancião.» Um feito notável. Se a fotografia na página é recente, é o ancião mais bem conservado que eu já vi.

De notar também que já fez a sua terceira Dança do Sol (de um total de quatro), e que, por isso, agora é o Portador da Pipa: «como Portador, a tarefa que aceitei é guardar e carregar essa pipa até àqueles que querem dirigir-se ao alto através dela.» Sim, caro leitor. Também me pareceu de início que a Pipa seria um cachimbo, e pensei ora, isso até eu fazia. Mas se é para se dirigirem ao alto através dela tem que ser uma grande pipa. Não é qualquer ancião que a Porta.

Não sendo pessoa de descansar sobre os louros, o Miguel promoveu também «várias Cerimónias do Tabaquinho Sagrado». Talvez por modéstia, não menciona o Sacramento da Bica Curta nem a Benção do Copo De Água, nas quais presumo ser igualmente dotado.

Pela sua dedicação a uma investigação séria e à divulgação dos seus conhecimentos, decidi premiar o Miguel Ruah com um ano de assinatura gratuita deste blog. Parabéns, Miguel.

1- Universo de Luz, Lista de Facilitadores por Zona e Terapia
2- Miguel Ruah

domingo, outubro 14, 2007

Treta da Semana: Cura com Cristais.

Os cristais têm propriedades interessantes que podemos aproveitar em relógios, lasers, lentes, mostradores, determinação de estruturas moleculares e outras aplicações. Além destas, segundo Isabel Leal

«Os cristais tem a particularidade fantástica de emitir energia por longos períodos de tempo e de multiplicar a intenção ou energia solicitada. [...] A aplicação de cristais pode expandir consciência, consciencializar sobre o poder da intenção humana, promover o alinhamento com a Alma, aprender a arte do equilíbrio energético e abertura de chakras, limpeza de aura, fortificação do campo mental e emocional bem como libertação de bloqueios energéticos.» (1)

Distinguir as propriedades reais das imaginárias pode ser um problema. Considerem os cristais piezoeléctricos, que, segundo a Wikipedia, têm a capacidade de

«gerar um potencial eléctrico em resposta à aplicação de tensão mecânica. Isto pode tomar a forma de uma separação de carga eléctrica através da matriz cristalina. Se não estiver em curto-circuito, a carga aplicada induz uma diferença de potencial ao longo do material.» (2)

Para quem estes conceitos são apenas uma memória vaga do liceu a carga eléctrica na matriz cristalina pode não parecer diferente da libertação de bloqueios energéticos. A complexidade da ciência ajuda as tretologias a disfarçar-se de conhecimento legítimo, confundindo-nos com «campos mentais», «bloqueios energéticos» e afins. Mas proponho três testes simples que, não protegendo de toda a treta, sempre descobrem a careca à maioria.

Primeiro, recordar que energia é a quantidade de trabalho que um sistema pode fazer. Não é uma coisa, mas a medida da capacidade de alterar um sistema. A mola estica e empurra um peso ou a gasolina queima e aquece o ar. É uma quantidade. Aquele peso, aquela massa de ar àquela temperatura, aquela força ao longo daquela distância. Quem se lembrar disto já não cai na treta dos bloqueios energéticos e das energias positivas, uma grande fatia do bolo da treta.

Em segundo lugar, considerar como sabem o que afirmam. Por exemplo, que os cristais promovem «o alinhamento com a Alma». Como se mede o alinhamento? E em relação a quê? Ou que «Cada pedra ou cristal tem uma cor e sua personalidade». Como determinam a personalidade de uma pedra, à parte dos traços triviais de tímida, calada, sisuda, sem iniciativa... ?

Finalmente, considerar as consequências. Por exemplo, uso os cristais para procurar emprego e «Uma forte energia positiva fica associada a este tema da vida corrente ajudando a que a procura seja bem sucedida e sempre de acordo com o propósito da alma.». Isto quer dizer que quem me contrata vai ser influenciado por um factor estranho às minhas qualificações, tirando o lugar a um candidato mais merecedor que o perde só porque não usou os cristais. Se isto fosse mesmo verdade teria que se proteger os entrevistadores destas influências, banir o uso de cristais antes de provas desportivas, julgamentos, exames, e assim por diante.

Resumindo, sugiro considerar o que estão a dizer, como é que o sabem e o que aconteceria se fosse mesmo verdade. Três testes simples que põem a terapia por cristais no lugar que merece.

1- Isabel Leal, Cura com ajuda de Cristais
2- Traduzido da Wikipedia, Piezoelectricity

sábado, outubro 13, 2007

Acreditar na ciência.

O leitor que assina «Alf» comentou:

«As pessoas deste blogue escolheram acreditar na Ciência e vêem aqui justificar esta escolha. [...]
Outras pessoas não têm necessidade de acreditar. Eu não tenho. Não é qualidade nem defeito, eu sou assim, outras pessoas são doutra maneira e ainda bem que somos diferentes, e há vantagem nisso.»


Acreditar na ciência é como comer culinária ou comprar economia. Podemos comer o que a culinária produz, comprar os bens que se trocam numa economia ou acreditar nas hipóteses que a ciência propõe. Mas não se confunda o processo com o produto. É importante distingui-los porque muitos dizem que não acreditam na ciência por se ter enganado nisto ou não concordarem com aquilo. Ou seja, rejeitam a culinária por não gostar de feijão frade.

«Alf» diz que não tem necessidade de acreditar. É improvável. Qualquer pessoa que ande de automóvel ou elevador, use electrodomésticos ou more num prédio de vários andares confia mais na ciência que a maioria dos devotos confia nos seus deuses. Confiamos à ciência a nossa vida, todos os dias, e é tanta a confiança que nem nos apercebemos disso.

Parece-me que confunde a crença, que é aceitar algo como verdadeiro, com o que motiva a crença. Aí há uma grande diferença entre as crenças que tiramos da ciência e as que tiramos de ideologias, seculares ou religiosas. A ciência dá-nos crenças que são ferramentas, sem as quais nem a luz da cozinha conseguíamos acender.

Mas as ideologias propõem certas crenças como um bem em si. É bom acreditar num Deus, por exemplo, não por ser prático ou útil mas porque é o que devemos fazer. Nem é bem visto que se acredite por interesse, mesmo que recompensas e castigos façam parte da propaganda.

Desfazendo estas confusões é mais fácil perceber o que é a ciência. É o método de gerar crenças úteis. Não é, em si, algo em que se creia. O método não é verdadeiro nem falso, tal como a culinária não é crua nem queimada. Não dá crenças boas ou louváveis. Não exige o dever de acreditarmos. Simplesmente procura hipóteses que sirvam para compreender e manipular o que nos rodeia quando as assumimos verdadeiras. A conservação do momento angular, a electricidade, a evolução por herança e modificações, e assim por diante.

Vários comentadores têm afirmado aqui não acreditar na ciência ou em certas teorias que esta propõe. A mecânica quântica, a relatividade, ou a evolução. No sentido de crer por dever, como quem tem fé porque acha que é assim que deve ser, eu também não acredito. Mas no sentido de aceitar como verdadeiro, é claro que acredito, e vejo essa alegada descrença como alguém que diz não acreditar na combustão mas que vai de carro para o emprego todos os dias. É mais confusão que cepticismo informado.

1- Comentário a Pode-se curar. Mas é incurável.

sexta-feira, outubro 12, 2007

Fora da escala.

A nossa sociedade apoia certas actividades que beneficiam todos. Subsídios e quotas na agricultura reduzem as flutuações do mercado, o estado financia grande parte da educação e investigação, saúde, infra-estruturas e outras. Algumas são beneficiadas conferindo direitos exclusivos.

Destas, a indústria da moda está num extremo. Na prática, apenas a marca registada a protege, proibindo o uso comercial de uma marca sem autorização do detentor. É uma restrição leve e razoável. Protege tanto o dono da marca como o consumidor e cinge-se ao uso comercial. Ninguém me proíbe de mencionar Versace ou Pierre Cardin as vezes que quiser.

A industria farmacêutica está no outro extremo de regulação e protecção. Patentes conferem às empresas um monopólio comercial durante 20 anos, mas as regulações da venda de medicamentos exigem um período de cerca de dez anos de desenvolvimento e ensaios clínicos financiados pela empresa. A importância dos medicamentos justifica a comparticipação pelo serviço de saúde, o que beneficia as empresas. Por outro lado, a patente protege apenas a inovação que é divulgada. A aplicação comercial é protegida como contrapartida por colocarem a informação no domínio público.

Há duas coisas comuns a todas estas formas de apoio. Seja o subsídio aos pescadores, a marca registada, a patente, a bolsa de investigação, a escola pública ou o serviço de saúde, o incentivo incide sobre a vida pública. Sobre salários e comércio. Não justifica a invasão do foro privado nem restringe interacções pessoais sem fins lucrativos ou troca de informação. Além disso, o apoio a cada actividade é proporcional á sua importância e limita-se ao necessário para a manter.

O copyright é a excepção. A maior facilidade de distribuição fez aumentar os privilégios concedidos aos detentores de direitos, em vez de os reduzir. Direitos conexos, direitos de transmissão e direitos sobre cada vez mais meios como discos, CDs e cassetes. Gravar uma canção exige uma fracção ínfima do esforço de desenvolvimento de um medicamento, mas a protecção dura cinco vezes mais, não exige qualquer contrapartida e nem sequer um mínimo de originalidade. Quanto menos apoio necessita, mais protecção legal lhe conferem.

Pior, com a tecnologia digital o copyright invadiu o foro privado. Copiar uma cassete, tirar fotocópias de um livro ou gravar um filme da televisão não era um problema legal. Mas agora passar dados de um computador para outro é punível. Único em todas as formas de incentivo, o copyright restringe a informação que podemos trocar com outras pessoas.

Podemos apontar efeitos negativos de enfraquecer ou eliminar o copyright. Sempre que se reduz privilégios os privilegiados sofrem. Pobrezitos. Mas este apoio à industria do entretenimento é um exagero. As editoras discográficas têm direitos exclusivos sobre sequências de números e andam a policiar os dados que trocamos com outras pessoas. Nem pela cura da SIDA aceitaríamos que a Bayer bisbilhotasse os nossos computadores ou processasse pessoas por partilhar ficheiros. Mas, como sapos em água quente, somos tramados aos poucos e até nos convencem que é uma forma normal de incentivar a criatividade.

quinta-feira, outubro 11, 2007

Pode-se curar. Mas é incurável.

Ontem ouvi que o processo de canonização da Jacinta e do Francisco estava parado. Num milagre a meias, os dois pastorinhos terão curado uma criança diabética. Mas a Igreja quer avançar com cuidado porque não sabe se seria um tipo de diabetes incurável ou não. Eu digo-lhes já. Se se curou, não era incurável. Mas como não percebo de teologia não me ligam nenhuma, e o putativo milagre

«está a ser analisado pelos médicos da congregação. São eles que vão dizer se houve, de facto, milagre ou não. [...] Se houver uma explicação científica para a cura, ou até se for admitida essa possibilidade, a tese de milagre é, de imediato abandonada» (1)

Esta treta chateia. Tanto me faz se querem acreditar que é milagre. Fé por fé, mais uma não faz diferença. Mas a ciência não tem nada a ver com isto. A legitimidade da ciência vem de fazer o contrário do que eles querem. Se a medicina diz que uma doença é incurável e observa alguém que se cura, o dever da medicina, como ciência, é rever a teoria. O que eles chamam milagre chama-se observação que refuta a hipótese.

Mais do que uma questão de método científico, é uma questão de honestidade. O honesto é dizer enganei-me, afinal não era diabetes incurável. É preciso ser presunçoso e desonesto para dizer eu tinha razão, é mesmo incurável, mas curou-se por milagre por isso não conta.

1- Fátima : cura de criança diabética não convence Vaticano (Correio da Manhã de 15-8-07)

quarta-feira, outubro 10, 2007

Exclusividade de cópia e outras coisas.

O meu truque retórico sobre o copyright criou alguma confusão (1). Dou-me por culpado e vou tentar resolver os equívocos, apesar de já ter escrito sobre estas coisas antes. Começo pelos comentários do Joaquim Amado Lopes:

«Imagine que eu escrevia um livro. Isso dava-me x trabalho e eu era pago (por quem?)»

Seja livro, seja o que for, o trabalho será pago por quem concordou que o iria pagar. É uma transacção voluntária. Daí o ridículo de eu vos pedir dinheiro pelos posts que leram quando nenhum de vós se comprometera a fazê-lo. Quem me paga pelo trabalho que eu faço sem combinar pagamento com ninguém? Pois. Ninguém. Pensem no que sentem quando param num semáforo e um tipo vos limpa os vidros sem pedirem e depois vem pedir dinheiro. O Joaquim continua:

«Mas o meu livro não interessava a ninguém e, assim, ninguém o lia. O do Ludwig, pelo contrário era tão interessante que todos o que o liam o recomendavam aos seus conhecidos, que acabavam por o ler também e recomendar a outros. Faz algum sentido que o Ludwig e eu recebamos o mesmo?»

Talvez. Se ambos tivemos X de trabalho e se estamos a ser pagos pelo trabalho, faz sentido. Não fará menos sentido que um cantor ganhar milhares de vezes o que ganha um bombeiro ou um polícia. Se for um mercado livre, se cada um paga o que acha bem pagar, faz sentido. Mas não faz sentido criar leis só para que um cantor ganhe mil vezes mais que um polícia.

O Joaquim também sugeriu: «Implemente um sistema de acesso em que apenas quem estiver registado pode ler os seus posts. Assim, pode cobrar o que quiser.» E tem razão. Mas não preciso do copyright para criar um site em que se paga para ler as páginas. Como notou o João Vasco, acerca da minha posição:

«agora que eu adquiri o produto - o livro, vamos supor - devo ter o direito de contar a história a quem quiser, com o detalhe que quiser. Mesmo que isso implique divulgar o livro a quem quiser ler.
Se isso não tirar aos autores qualquer incentivo para escrever bons livros, eu estaria 100% de acordo com ele. Mas é óbvio que tira.»


O copyright serve apenas para restringir o que os outros fazem com o que eu já distribuí. A remuneração pelo meu trabalho depende do acordo que faço com quem me paga. A injustiça de uns receberem mais que outros não é corrigida pelo copyright. E a divulgação daquilo que eu escrevo ou componho é protegida pelas leis de privacidade. Só se torna conhecimento público o que eu quiser.

A maioria dos argumentos a favor do copyright não têm nada a ver com o copyright. E até na questão do incentivo há confusão. Se queremos incentivar um médico a curar pessoas devemos pagar-lhe para curar pessoas. Um rendimento vitalício em função das que já curou é incentivá-lo a não fazer mais nada.

O copyright protegia o investimento de imprimir e distribuir um livro, que há cem anos era considerável. Mas agora é um incentivo à compra de direitos exclusivos, pois beneficia principalmente quem é dono dos direitos sobre algo que já foi criado. Com a tecnologia e sociedade que temos, incentivar a criatividade artística é investir em escolas, dar bolsas a jovens artistas e financiar instituições que promovam a criação artística. Exactamente como se faz quando se quer incentivar a ciência ou o desporto.

O sucesso de cada artista deixa-se por conta do mercado. Se muitos quiserem comprar ficará rico. Se ninguém achar que vale a pena, que arranje outra profissão e escreva um blog. Como este, por exemplo. Tem mais de quatrocentas visitas diárias porque o preço cobrado ao leitor corresponde exactamente ao valor do que aqui se compra.

1- Os meus direitos de autor

terça-feira, outubro 09, 2007

O horror da razão.

João César das Neves, com a sua fluência característica, avisa-nos que:

«O nosso mundo está refém de duas terríveis formas de obstinação. De um lado, a intolerância totalitária de uma fé imposta pela força; do outro a desorientação confusa de um agnosticismo arrogante.» (1)

O primeiro lado são os países islâmicos como o Irão. O segundo lado é difícil de identificar. Duvido que haja muitos agnósticos confusos, arrogantes e desorientados. Mas, a haver, não vão formar um lado. Pela descrição de César das Neves, imagino-os a cambalear de nariz no ar em direcções diferentes, murmurando «não sei, não sei...».

E devo dizer que o primeiro lado também é pouco claro, pois diz do Irão que «o primeiro regime teocrático xiita da História não é uma ditadura desmiolada. É uma democracia que há quase três décadas manobra com argúcia na cena mundial.»(1). Desorientação, confusão, agnosticismo e arrogância. Podendo evitar um, César das Neves safou-se do menos mau...

Após muitos adjectivos conclui que «A única salvação é aderir à razão serena e ao Deus do amor». Estamos tramados. Se a única salvação é uma contradição ninguém se vai safar. Fé e razão são incompatíveis. A primeira é a certeza numa afirmação, a segunda é a forma de usar informação incompleta para obter conclusões incertas.

É errada esta imagem da Igreja Católica como mediador racional tentando separar os dois antagonistas obstinados. A razão está de um lado, sim. Na tecnologia e ciência, no debate civilizado, na troca livre de ideias. Não garante uma opinião uniforme, mas torna a diversidade de opinião numa forma de colaboração, num esforço colectivo para compreender a realidade. As fés não são um lado. Estão espalhadas por toda a parte, e muito se antagonizam entre si. E o catolicismo é apenas mais uma.

Os crentes gostam de apontar a longa tradição religiosa da humanidade. Milhares de anos de crença no sobrenatural. Mas esquecem a tradição igualmente longa, e coincidente, de total ignorância. Só nas últimas gerações é que percebemos o tamanho do universo, que há micróbios a causar doenças, para que serve o cérebro, como surgem as espécies, o que é a trovoada, e muitos outros fenómenos que se julgava manifestação do sobrenatural. Ainda se tenta guardar um cantinho escuro no «espiritual», mas mesmo isso não se justifica com o que já se sabe da neurologia.

É esse o horror da razão. Se está tudo às escuras e ninguém sabe o que se passa, a razão pode justificar acreditar no Papão. Mas quando se acende a luz e não está lá nada a razão diz para mudar de opinião. Para qualquer fé, mudar de opinião é horrível.

A causa desta crise é a realidade mostrar que são treta as crenças que tivemos durante milhares de anos. Força-nos a mudar de opinião ou a tapar os olhos e gritar «Acredito!». Não há meio termo, e a segunda opção dá asneira. A salvação é ver as coisas como elas são ou, no mínimo, não deixar armas nucleares com quem anda de olhos tapados.

1- Entre os horrores do fanatismo e do relativismo

segunda-feira, outubro 08, 2007

Os meus direitos de autor.

Voltei a discutir com o António que direitos o autor deve ter sobre o que os outros fazem com o que ele criou. Defendi e defendo que as ideias não são de ninguém e que a liberdade de expressão vale muito mais que o comércio de músicas e livros. Por isso não acho direito de ninguém restringir por razões monetárias o que os outros dizem ou partilham.

Mas há quem discorde, e devo respeitar a sua opinião. Este post é dedicado àqueles que, como o António, defendem que «Quando alguém pretende o beneficio, deve pagar por ele, por baixo que seja o custo. Nada é gratuito...». A esses peço que me enviem 1€ por cada post meu que tenham lido. Custa-me receber dinheiro, como sei que custa a qualquer pessoa. Mas sinto que é um sacrifício que tenho que fazer, como sinal do respeito que tenho pela coerência da vossa posição.

Este blog continua gratuito para os que acham que não é por um tipo escrever umas tretas que pode mandar na carteira dos outros. E eu continuo a achar que os direitos de um têm que acabar logo antes dos direitos dos outros, senão ninguém se entende.

Nota, que espero desnecessária: não estou a pedir dinheiro. É apenas um golpe de retórica. Mas se alguém se sentir motivado a pagar por isto, deixo uma sugestão.

domingo, outubro 07, 2007

Treta da Semana: Índigo, Cristal, Arco-Íris, Raio Azul, Super Psíquicas, etc...

Em 1982, Nancy Ann Tappe publicou Understanding Your Life Through Color, onde relatou as auras que via com os seus poderes psíquicos. Foi a primeira a «notar» que cada vez nasciam mais crianças com aura índigo. Em 1999, Lee Carroll e Jan Tober partilharam a sabedoria do mestre angélico Kyron no seu The Indigo Children: The New Kids Have Arrived. Nancy Ann Tappe estima que hoje em dia 97% das crianças com menos de 10 anos sejam crianças índigo (1).

Mas também há as crianças cristal, super-psíquicas, raio azul e arco-íris (2,3). O total já deve ultrapassar os 100%, mas não há problema. Estamos a lidar com verdades espirituais, domínio onde não conta o senso comum, nem a razão, nem sequer a álgebra.

A Isabel Leal é licenciada em gestão e dá consultas «de acompanhamento e orientação familiar [a] casos que necessitam de melhoria no rendimento escolar, resolução de terrores nocturnos, dificuldades do sono, desequilíbrios alimentares e comportamentais.». Segundo ela, as crianças Índigo

«São crianças tão terrestres como seus pais, a única diferença é sua tarefa espiritual de impulsionar mudanças na humanidade.
Os especialistas chamam estas crianças de crianças Índigo, e atribuem-lhes grande dose de intuição, inclusive telepatia, qualidades de prever o futuro, e até reconhecer a presença de seres etéreos como as fadas e os duendes que segundo alguns, nos rodeiam.»
(4)

Por outro lado, às crianças Cristal

«É habitual ouvi-los a falar com amigos imaginários com uma expressão de absoluta verdade e presença. A vibração que os caracteriza desde o seu nascimento está em harmonia com tudo o que vive e com tudo o que os rodeia, mesmo no que se refere aos reinos invisíveis à maioria dos habitantes da Terra. Podem ser pessoas, animais, ou Seres de luz e elementais.» (5)

E há que ver isto no seu contexto. As consultas da Isabel Leal são anunciadas no site do «É o Nosso Espaço» juntamente com outros serviços de grande interesse público (6). Como a limpeza espiritual da Leontina Almeida, a «Biodanza» (7) e consultas com o anjo da guarda dadas por Maria Lizete Soares.

Antecipando eventuais protestos, quero esclarecer que qualquer pessoa tem o direito de acreditar no que quiser. Tal como eu tenho o direito de chamar treta a este fungágá do disparate. São direitos consagrados no artigo 37º da nossa constituição (esta é para os advogados), que reconheço de bom grado. Mas passa-se os limites destes direitos quando se vende serviços. De consultoria com anjos da guarda, de limpeza espiritual ou, pior de tudo, de consultas a crianças, classificando-as pela aura e data de nascimento.

Mesmo que o dever de zelar pelas crianças seja principalmente dos pais, a nossa sociedade partilha a responsabilidade e sujeita a um controlo rigoroso tudo o que é dirigido às crianças. Sejam brinquedos, infantários, programas de televisão ou comida para bébé. Se até para o ursinho de peluche há normas de segurança, é razoável regular com rigor o acompanhamento psicológico de crianças e exigir dos praticantes uma formação reconhecida e adequada.

1- Wikipedia, Indigo Children
2- Who are the Psychic, Crystal, Rainbow and Indigo children?
3- Children of the Blue Ray
4- Crianças Índigo
5- Crianças Cristal
6- É o Nosso Espaço
7- Eu, 28-3-07, Biodança

sábado, outubro 06, 2007

O preço da arte.

O João Vasco chamou-me a atenção para um artigo no Wall Street Journal acerca do último álbum dos Radiohead. O álbum In Rainbows está à venda online pelo preço que cada um quiser pagar. Até agora, o preço médio tem sido de cerca de $10. Os autores do artigo dizem que a banda está a aldrabar os fãs, e o raciocínio é fascinante.

Tendo abandonado a EMI, os Radiohead não têm que pagar nada à editora. Além disso gastam menos em publicidade que outras bandas. Como $10 é o preço normal de um álbum online e os Radiohead têm menos custos, os autores do artigo concluem que os fãs estão «a pagar demais».

Não percebem que alguém pague uma música porque acha que os artistas merecem. A arte não é salsichas, que, sendo a qualidade idêntica, se compra onde for mais barato. Quem aprecia arte quer participar, nem que seja contribuindo para encorajar o artista. O copyright serve para incentivar um mercado de consumo em que se controla a oferta e a publicidade para vender um produto, mas há muito que perdeu de vista o incentivo à arte.

Para incentivar a arte temos que incentivar esta participação. Por um lado, tornando a arte livre no sentido de não haver restrições à criação de obras derivadas. Como fizeram os Nine Inch Nails, por exemplo, ao distribuir gratuitamente as pistas de várias faixas do álbum Year Zero (1). E, por outro lado, fazer do preço da música um acto voluntário de participação no processo criativo em vez do que se faz à saída do supermercado. Isto acabaria com o copyright e com o negócio dos distribuidores, mas seria um incentivo melhor à arte.

A objecção que surge sempre nesta altura é que se deve deixar que os artistas o façam apenas se quiserem, mas continuar a proteger a sua obra se não a quiserem distribuir desta forma. É uma confusão. Justificava-se se esta protecção fosse um direito moral do artista. Mas não é. Ninguém tem o direito moral de restringir a liberdade de expressão de outros apenas por ser o primeiro a ter a tal ideia.

O fundamento do copyright é apenas de ordem prática. Era preciso subsidiar a industria, e a concessão de monopólios foi a melhor forma de incentivar a produção e distribuição. Mas já não é, e agora tem o efeito contrário. Ficamos melhor servidos se a participação na arte for livre e voluntária, seja com criatividade seja com dinheiro.

O artigo original está disponível apenas para subscritores do Wall Street Journal, mas podem lê-lo no Unsettling Economics.

1- Miguel Caetano, 11-9-07, Remisturas open-source de Nine Inch Nails já disponíveis em BitTorrent

sexta-feira, outubro 05, 2007

$9.250 por canção.

No Minesota, a RIAA exigiu a Jammie Thomas uns milhares de dólares por partilhar canções na rede Kazaa. Jammie levou o caso a tribunal e foi ontem condenada a pagar duzentos e vinte mil dólares. Por ter partilhado 24 canções. Compradas legalmente têm um valor total inferior a $24.

A única prova da acusação foi o endereço IP onde a RIAA afirma ter encontrado as canções, e que estava atribuído a Jammie. Mas esta prova foi obtida por empresas contratadas pela RIAA, e não por uma investigação oficial. Além disso o endereço IP pode ser falsificado e apenas identifica um computador, não a pessoa que o usa. Também não apresentaram evidências que alguém tenha copiado as músicas que Jammie alegadamente teria no seu computador. Foi condenada a pagar 10,000 vezes o preço de cada música apenas por se julgar que as tinha disponíveis, mas sem indícios que as tenha transmitido a alguém. E para enviar 10,000 vezes cada uma das 24 músicas precisaria de cerca de 3 anos de transmissão ininterrupta, mesmo com uma ligação de banda larga.

Um dos advogados da RIAA afirmou que «Isto mostra, espero eu, que descarregar e distribuir as nossas gravações não é aceitável» (1). Eu diria que mostra que a lei não é aceitável, e que por muito que apregoem justiça o que os motiva é simples ganância.

Detalhes legais no Recording Industry vs The People.

1- BBC, 5-10-07, Huge fine for music file-sharer

Teorias.

O universo começou com o Big Bang. Deus criou o universo. As espécies evoluíram. Deus criou cada espécie. São teorias. Segundo o leitor Joaquim Amado Lopes:

«O que acho realmente assombroso é que existam pessoas que sejam capazes de defender essas TEORIAS com cara séria, ao mesmo tempo que classificam as crenças religiosas como superstição [...] Como se acreditar nessas TEORIAS não fosse, acima de tudo, um acto de fé.» (1)

Assombroso não diria. Mas é pena. É pena julgarem que a cosmologia moderna é «Bang!», ou que a biologia se resume a «uns morrem, outros não». Se fosse só isso era mesmo por fé que se preferia estas «teorias» a outras quaisquer. Mas uma teoria científica moderna é muito mais do que isto.

Antigamente, até Galileu, era assim. Segundo Aristóteles as pedras caem porque são da mesma substância que o chão e o fumo sobe porque é da substância do ar. Newton também enunciou leis como estas. Por exemplo, que um objecto em movimento uniforme permanece em movimento uniforme enquanto não sofrer o efeito de uma força. Mas enquanto em Aristóteles a teoria era aquelas afirmações, as leis de Newton são um mero resumo de um modelo muito mais detalhado e poderoso, capaz de dizer onde vai cair a bala de canhão ou como enviar uma sonda a Marte.

Para dar um exemplo mais recente, a teoria da relatividade é testada em cada tubo de raios catódicos, cada espectrometro de massa, cada vez que alguém usa GPS ou em muitos outros casos em que efeitos relativísticos são significativos. Entre 2003 e 2006 astrónomos de Universidade de Manchester recolheram observações de um pulsar duplo para testar esta teoria (2). Um pulsar duplo é um par de estrelas orbitando-se uma à outra, cada uma delas a rodar rapidamente e a emitir um feixe de radiação que só detectamos quando está apontado na nossa direcção. Dois «faróis» a rodopiar num campo gravítico muito forte e a grande velocidade é bom para testar os extremos das previsões de Einstein.

A distorção temporal devido à força gravítica, o atraso nos pulsos devido à distorção no espaço-tempo, o decaimento da órbita e outros valores medidos coincidiram com o que a teoria prevê. No caso do atraso dos pulsos (Shapiro Delay) o erro experimental foi de apenas 0.05%. É isto que devemos ter em conta. Medimos algo com 99.95% de precisão a dois mil anos luz de distância e o valor é o que a teoria prevê. E nos outros parâmetros também. E em todo o lado em que testamos a teoria é a mesma coisa. Ao fim de cem anos disto já não é preciso fé para confiar nesta teoria.

As teorias científicas modernas são modelos detalhados, rigorosos, com previsões exactas e constantemente testados. São o expoente máximo da compreensão humana, pois nunca criamos nada mais detalhado, mais rigoroso, nem mais capaz de prever como o universo funciona. De uma teoria científica podemos resumir certos princípios, como a sobrevivência dos mais aptos ou que a entropia num sistema isolado não diminui, mas estes são como dizer que Os Lusíadas é acerca de uma viagem.

Por isso engana-se quem julgar haver uma simetria entre a teoria do Big Bang e a hipótese que Deus criou o universo. O Big Bang é uma pequena parte de um modelo que prevê com exactidão imensas observações e que é constantemente posto à prova. Que Deus criou o universo é uma ideia vaga, desligada de qualquer outra coisa e sem capacidade de prever seja o que for ou sequer ser testada. É essa que exige fé.

1- Ateísmos
2- Physorg, Setembro 2006, General relativity survives gruelling pulsar test

quinta-feira, outubro 04, 2007

A pedra.

No diálogo com quem defende opiniões que eu critico a diferença de opinião é o menor dos problemas. A diferença no método de formar opiniões, que exemplifiquei com o ateísmo no último post (1), é um problema pior. Em vez de escolher uma hipótese porque acredito nela escolho a que se aguenta quando duvido de todas. Isto faz alguma confusão se assumem que defendo uma posição por crença ou convicção.

Mas o pior problema é a diferença de atitude. Por exemplo, este comentário da leitora Ana Rita:

«Não atirem a pedra... Olhem primeiro para as vossas atitudes antes de julgarem quem não conhecem ou assuntos que nada vos dizem...» (2)

Falo por experiência quando digo que uma crítica é muito melhor que uma pedrada. E mesmo com uma pedra metafórica, conotar a crítica com algo mau e desagradável revela um problema fundamental. Olhemos então para esta atitude.

Muitos crentes coexistem ignorando as crenças dos outros. Chamam-lhe «respeitar» as crenças, mas não é respeito nenhum. É fazer de conta que cada um vive no seu universo separado. Uns vão pela astrologia ocidental, outros pelo tarot, outros pela astrologia chinesa, auras, linhas da palma da mão, a íris e o que mais, e ninguém estranha a esquizofrenia de tantas personalidades diferentes que esta parafernália atribui a cada pessoa. Por vezes o «respeito» é tanto que um crente segue várias crenças incompatíveis ao mesmo tempo.

Mas respeitar é levar a sério. Se respeito alguém, o respeito e a honestidade exigem que o avise quando me parece que diz um disparate. Porque se quer compreender as coisas é do seu interesse perceber os erros e debater ideias. Uma critica fundamentada é uma forma de colaboração. É como se corrige os erros e se aclara o raciocínio. Mas muitos crentes vêm a crítica como antagonismo, e essa atitude é a barreira mais difícil de ultrapassar.

Dentro desta categoria, o comentário da Ana Rita até é dos mais razoáveis. Permite um diálogo melhor que aqueles em letra maiúscula a chamar-me ignorante ou os que ameaçam mandar encerrar este blog. Ou os que se ofendem, vão se embora, não querem discutir, ou nem querem cá aparecer. Noutro comentário, a Ana Rita acrescentou:

«Para pensarmos o que quer que seja acerca de um qualquer assunto temos que ter bases e informação para que o possamos discutir de uma forma coerente...»

E a melhor forma de ter essas bases e informação é pelo diálogo. Um excelente exemplo é o do Nelson Lima, o director do Instituto da Inteligência. Respondeu a muitas das críticas, aceitou algumas, e penso que todos que participaram no diálogo beneficiaram da troca de ideias.

Finalmente, o cerne da questão:

«Antes de pormos em causa o nosso semelhante, tentemos perceber se está certo ou errado...»

É pondo em causa que se percebe se está certo ou errado. A critica fundamentada aponta um possível erro e dá oportunidade ao outro de explicar porque não é um erro ou de se corrigir se concordar que é. É assim que se progride, e o progresso científico atesta o sucesso desta abordagem. Por outro lado, o medo da crítica é o primeiro indício de treta.

1-Ateísmos
2-Socorro!

quarta-feira, outubro 03, 2007

Ateísmos.

Um leitor anónimo comentou recentemente:

«em relação ao zeus e outros deuses existe unanimidade quanto à sua inexistência, quer entre cristãos, muçulmanos, hindus ou ateus. é um problema ultrapassado. a polémica anda à volta do deus cristão. é esse que resiste ao tempo. é o único problema filosófico, teológico ou científico que falta resolver: existe ou não existe?» (1)

Primeiro, quero despachar dois detalhes. A existência de um deus não é função do voto da maioria, até porque na política da religião actual só há maioria por coligação. E para Hindus, Budistas, Confucionistas e milhares de religiões tribais que ainda existem não é o deus cristão que importa.

Mas quero focar uma diferença fundamental entre o ateísmo do crente e o ateísmo que eu defendo, que julgo partilhar com outros ateus. Os crentes são ateus como são crentes. Por princípio. Assumem logo à partida, por fé, que os deuses deles existem e que os deuses dos outros não*. Alguns tentam justificá-lo alegando a opinião da maioria ou uma tradição, como se isso importasse, mas isso nunca é uma causa ou razão. O que vem primeiro é a fé na existência de uns e na inexistência de outros.

Ora eu não sou ateu por princípio. Sou ateu em consequência da forma como avalio qualquer hipótese, comprando-a com as alternativas e optando por aquela que melhor corresponde à informação que tenho. É isto que me faz rejeitar o deus cristão, por exemplo. Omnipotente e omnisciente, pode fazer qualquer coisa que julguemos impossível, refutando toda a ciência moderna. É contraditório, pois sabe de certeza o que vai fazer amanhã mas pode fazer o contrário. E não há vestígio dele.

Não há hipótese menos credível que esta. Por muito incrível que seja uma hipótese este ser poderia torná-la realidade e fazer ainda pior. Vejo como muito mais credível que uma data de gente se tenha entusiasmado com um mito antigo. Afinal, todos os crentes aceitam esta hipótese em relação às outras religiões.

Por isso discordo da afirmação deste leitor anónimo. A divergência não é acerca do deus cristão. É acerca da forma como encaramos afirmações e como decidimos aceitar ou rejeitar uma hipótese. Esta abordagem de fechar o problema num só caso particular atrapalha muito a discussão.

Em parte porque o crente possivelmente assume que eu não acredito no deus dele da mesma forma que ele não acredita em Zeus ou Odin. Por fé. Quando não é nada disso. Simplesmente rejeito a hipótese que existam por ser mais verosímil a hipótese contrária. E apenas enquanto o for. Não por fundamentalismo ateu ou por convicção pessoal, mas somente pelo peso das evidências.

Mas atrapalha principalmente porque esconde o verdadeiro problema. Não estamos a lidar apenas com a hipótese de existir ou não existir um certo deus, mas com a imensidão da fantasia humana. Cobras com asas, escaravelhos gigantes a rebolar o Sol pelo céu, seres invisíveis omnipotentes três em um, o circo inteiro.

A bem do diálogo, não foquem apenas aquelas hipóteses que decidiram favorecer. Considerem-nas como parte da vasta biblioteca da imaginação humana. Cheia de maravilhas, de uma riqueza imensa, mas em que praticamente tudo é treta. É que inventar é fácil, mas a realidade é um alvo muito pequeno para lhe acertar por acaso. Por razões práticas e porque apenas uma ínfima parte do que inventamos corresponde à realidade, justifica-se rejeitar qualquer uma destas hipóteses enquanto não houver evidências a seu favor.

*Isto para as religiões mais populares. Algumas aceitam que todos os deuses existem, apenas preferem os seus.

1- Filosofia e Teologia

terça-feira, outubro 02, 2007

Filosofia e Teologia.

Como disse que aceitava o convide do Bernardo Motta (1) para uma discussão filosófica entre ateísmo e crença, queria esclarecer o que quero dizer com isto. Vou dar um exemplo de um dos meus filósofos preferidos, Bertrand Russell. Russell propôs que não é dever do céptico provar que algo não existe, mas sim de quem afirma a existência de uma coisa apresentar evidências que apoiem a afirmação. O exemplo que deu ficou famoso. É ridículo acreditar que existe um bule de loiça a orbitar o Sol entre a Terra e Marte apenas por não se poder provar que não está lá bule nenhum.

Este é um argumento filosófico. A questão da Trindade não é filosofia, é uma mera questão de facto acerca de um caso particular. Quantos deuses existem? Os católicos acreditam ser um que é três. Eu assumo uma posição por omissão favorecendo o zero que é mesmo zero. Mas esta questão é científica, no sentido original de conhecimento, se a abordarmos com curiosidade. Se questionarmos e procurarmos descobrir se Deus existe e quantos são. Ou então é uma questão de fé, se escolhermos um número e nos agarrarmos a ele. Seja como for, não é um problema filosófico.

O problema filosófico é mais profundo e abrangente. Neste caso, é determinar em que condições é legítimo afirmar que algo existe ou que tem uma certa propriedade. É este o problema que Russell discutiu, propondo que só é legítimo afirmá-lo se houver evidências para tal. Boécio simplesmente ignorou o problema, como era prática na escolástica medieval, e como é usual na fé e na teologia.

Se o Bernardo quer discutir filosoficamente temos que começar pela questão epistemológica da legitimidade destas afirmações. Seja acerca do que for, de Deus, de mim, ou do Super Homem, temos primeiro que acertar o critério para aceitar ou rejeitar uma afirmação. Não pode ser pela fé, pois ter fé é simplesmente aceitar a afirmação e é isso que queremos saber se é legítimo. Também não pode ser pela tradição ou pelo testemunho. O testemunho é a afirmação dada por outrem, e a tradição apenas a repetição dessa afirmação no passado. Nenhum destes é relevante para avaliar a afirmação.

A minha proposta, para começar a discussão, é que tem que ser pelas evidências. Deixo esta citação do An Enquiry Concerning Human Understanding, de outro dos meus favoritos, David Hume.

«The plain consequence is (and it is a general maxim worthy of our attention), 'That no testimony is sufficient to establish a miracle, unless the testimony be of such a kind, that its falsehood would be more miraculous, than the fact, which it endeavours to establish....' When anyone tells me, that he saw a dead man restored to life, I immediately consider with myself, whether it be more probable, that this person should either deceive or be deceived, or that the fact, which he relates, should really have happened. I weigh the one miracle against the other; and according to the superiority, which I discover, I pronounce my decision, and always reject the greater miracle. If the falsehood of his testimony would be more miraculous, than the event which he relates; then, and not till then, can he pretend to command my belief or opinion.» (2)

1 2-10-07, Teologia e Filosofia
2 Hume, on miracles

Teologia e Filosofia.

O Bernardo Motta acha que eu escamoteei o seu convite para um debate filosófico (1) quando maltratei o alegado argumento filosófico de Boécio (2). Nem por isso. Estou aberto a um debate filosófico, mas isto é apologia cristã mal disfarçada.

Boécio parte das premissas que Deus é um só, de uma só substância, e que Deus são três pessoas diferentes que têm uma relação entre si no sentido aristotélico do termo. Destas premissas Boécio conclui que Deus é um só na sua substância e é três na relação, no sentido aristotélico do termo. Ora isto não é um argumento filosófico. É uma fantochada.

Primeiro porque parte de premissas contraditórias. Depois, porque conclui o que assumiu: que é um e que é três. Finalmente, por tentar fazer com que algo seja verdade por definição. Usa a definição aristotélica de relação, que Aristóteles define como sendo entre substâncias diferentes, para «provar» que o Pai, o Filho e o Espirito Santo são diferentes. Imediatamente depois de afirmar que são a mesma substância...

A escolástica medieval teve muito pouco de filosofia. Foi praticamente toda uma tentativa de martelar a filosofia Grega até caber no pequenino molde das crenças Cristãs. Este argumento de Boécio era o tipo de coisa que Sócrates demolia com umas perguntas bem metidas, que Platão se fartava de gozar, como fez com os sofistas, e que Aristóteles mandava às couves por ter mais que fazer que aturar disparates.

Eu aceito o convite do Bernardo para discutir filosofia. Mas tem que ser filosofia. Para discutir teologia terá que ser com o Mário Neto.

1- Bernardo Motta, 23-9-07, Filosofia para o ateu moderno
2- 20-9-07, Boécio, e o três em um.