A treta do copyright: o mito do criador.
Muitos vêem a criatividade artística como provindo do indivíduo. O autor merece direitos exclusivos porque cria a obra. A sociedade é um mero conjunto de consumidores, está em dívida para com o criador e, por isso, tem que lhe conceder direitos sobre a representação daquilo que este criou. Deixo para depois o problema ético desses direitos. Neste post ponho em causa a premissa que o copyright compensa a criatividade individual da qual a sociedade beneficia sem dar nada em troca.
Primeiro, o copyright premeia a distribuição comercial em massa. Esta depende mais da publicidade e da comunicação social que da criatividade do artista. Em segundo lugar o copyright cobre a expressão da ideia. O texto, a gravação da música, a película com o filme. Ou seja, representações que dependem da tecnologia, de convenções linguísticas e da cultura que é de todos. Camões usou a cultura e a língua da sua sociedade de forma excepcional, mas os textos que escreveu foram como esculturas na areia. Moldou numa forma criada por si aquilo que era de todos.
Mas estes são apenas problemas de implementação. Mesmo aceitando que o copyright não cobre a verdadeira inovação pode-se vê-lo como uma recompensa justa pela criação de ideias novas. A sociedade dá ao autor um direito exclusivo sobre partes de um bem público, como a linguagem, porque a sociedade está em dívida para com o autor. O autor criou uma ideia que beneficia a sociedade e a sociedade tem o dever de beneficiar o autor.
Mas imaginem que Shakespeare nascia na Amazónia ou Bach na Sumatra. O resultado não era umas peças de teatro geniais sobre a vida dos Yanomamo nem a celebração em música barroca dos rituais dos Karo. Diz-se que para criar um ser humano é preciso uma aldeia, mas isso é só para o básico. Comida, roupa, um sítio para dormir e alguém que o ensine a falar e sobreviver. Para criar um génio artístico é preciso uma sociedade muito mais complexa. É preciso escrita, escolas, espectáculos, pessoas que apreciem arte e, acima de tudo, o acesso ao registo de muitas criações culturais anteriores.
Até os maiores génios precisam de receber muito da sua sociedade para poderem criar o que criam. O que está certo. Afinal, a sociedade serve para o proveito de cada um. E é um privilégio viver numa sociedade em que se pode ouvir Bach. Mas maior privilégio ainda é ser Bach numa sociedade que lhe pode dar o que ele precisa. E a maioria não é Bach. A maioria recebe tanto ou mais da sociedade em troca de muito menos.
Este é o problema fundamental de usar o copyright para pagar a alegada dívida da sociedade ao autor. Não há dívida, porque o autor precisa que a sociedade lhe dê a educação, os recursos e o acesso às obras daqueles que o precederam. E não é justo que seja exclusivo do autor aquilo que ele cria usando as ideias de todos.