Treta da semana: Culturalismos.
Numa sociedade moderna convivem várias culturas, grupos de pessoas com tradições e valores que muitas vezes chocam. O multiculturalismo defende o respeito mutuo e a preservação desta diversidade. Os muçulmanos que construam mesquitas à vontade, os hindus que celebrem o casamento como quiserem. O monoculturalismo aconselha cautela. Não apedrejem pessoas só porque têm um amante e não cortem o clitóris às raparigas. E muitos procuram o equilíbrio entre as várias culturas. Não impor a nossa cultura ocidental mas defender as nossas tradições. Respeitar outras culturas sem perder a nossa identidade cultural. E assim por diante.
Mas a cultura, neste sentido, é abstracta e arbitrária. Na cultura Portuguesa incluem os descobrimentos mas não a escravatura, a religião católica mas não a inquisição e a perseguição religiosa, a tourada mas não o trabalho infantil. Agrupam umas pessoas pelo sítio onde nasceram, outras pela religião dos pais, outras por alguns costumes que a família tem. Nada disto tem mal se for só para classificar e organizar a informação. Mas é mau quando faz ver o conflito como sendo entre grupos e culturas. É treta. É entre pessoas.
Quando o pai quer cortar prepúcio ao filho há um conflito de interesses entre o pai e o filho. Não interessa se o pai é gordo, magro, judeu, católico ou simplesmente doido. Nem interessa se o pai dele lhe cortou o prepúcio, e o avô ao pai. O puto não tem nada a ver com isso. Dizer que é questão cultural assume que a criança já nasceu com a cultura enfiada e que não tem o direito de escolher que partes desta cultura lhe interessam e que partes prefere ir buscar a outras culturas. A cultura é muito bonita, mas não se deita fora o prepúcio assim de ânimo leve.
Foca-se a cultura e o grupo e perde-se o mais importante. O indivíduo. O muçulmano tem tanto direito de ser católico como um católico, e ambos o direito de ser ateus. Não é por ter os pais assim ou assado que se tem mais (ou menos) direito a uma ideologia, religião ou comportamento. E é errado dar prioridade a conceitos abstractos como cultura e tradição. Essas coisas não sentem, não sofrem, não desejam, não pensam.
Isto é grave porque qualquer cultura inclui mecanismos de preservação de tradições, de resistência a ideias novas, e de educação das crianças de acordo com os preceitos da cultura. É de esperar que assim seja, porque dura mais a cultura que melhor se preserva. Mas uma boa ideia não precisa da tradição para a justificar, e uma má ideia é má mesmo que seja antiga. Nem sempre é bom preservar a tradição, e é de desconfiar daquilo que se faz só porque sempre se fez.
Dar prioridade ao indivíduo é especialmente importante na educação. Não é correcto assumir que a criança vai seguir os preceitos dos pais. Tem o direito de os seguir, mas também tem o direito de conhecer alternativas para, quando adulta, orientar a sua vida à sua maneira. Não deve haver escolas católicas, judaicas, orientais ou ocidentais porque as crianças não são nada disso. São crianças, e as escolas devem mostrar-lhes a diversidade de opções de uma forma neutra que ensine sem coagir.
Há quem acuse isto de impor a cultura ocidental aos outros. Treta. Esta ideia não se justifica por ser do ocidente. Justifica-se porque quem sofre ou beneficia é sempre a pessoa e nunca a abstracção sociológica. Somos nós que merecemos respeito, e não as idiossincrasias dos nossos antepassados. E o problema principal é uma comunidade impor a sua cultura aos seus próprios membros. Ao contrário do que muitos julgam isto não é bom. É mau. Tão mau como impô-la aos membros de outras comunidades, porque identificarmo-nos com esta ou aquela tradição deve ser um acto voluntário e não mera função do sitio onde nascemos ou do ventre de onde saímos.
A mulher deve andar tapada dos pés à cabeça só se quiser, e não por obrigação ou tradição. A liberdade religiosa deve ser pessoal. Não deve ser a liberdade de obrigar os filhos a ter a mesma religião. As tradições valem pelo que valem. Não devem ganhar pontos por antiguidade. E, acima de tudo, a cultura de cada pessoa deve ser aquilo que ela escolhe, e não um defeito de nascença.